TJ|RS: Apelação Cível – Declaratória de revogação de doação – Ingratidão e descumprimento do encargo – Art. 555 do CC – Preliminar de prescrição de revogação da doação por encargo – Rejeitada – Configuração de doação com encargo verbal – Circunstâncias Fáticas que revelam o descuido dos donatários com a anciã – 1. Da prescrição para revogação da doação por ingratidão – O art. 557 do CC, resume as hipóteses que ensejam a revogação por ingratidão. No caso, podendo ser pleiteada dentro de 01(um) ano, a contar de quando chegue ao doador o fato que autorizar, e de ser o donatário o seu autor. Sentença mantida – 2. Da prescrição para revogação da doação por encargo – A regra aplicável no caso de revogação de doação por descumprimento de encargo é aquela prevista no do art. 205 do novo Código Civil (art. 177 do CC/1916) – Prescrição afastada – Precedentes jurisprudenciais – 3. Da revogação da doação. No caso, conforme o conjunto probatório produzido e acostado no feito, restou demonstrado a instituição de encargo verbal, concluindo-se que a doação somente se operou em favor do casal de mandados na condição dos mesmos cuidarem da autora, pessoa idosa, com dificuldades auditivas, solteira e sem filhos. Desnecessária a situação de desgraça (material e moral) da doadora para configurar a inexecução do encargo, porquanto os fatos narrados na inicial, e, comprovados no tramitar nos feito são suficientes para autorizar o pleito de revogação – Apelação provida.
Íntegra do acórdão:
Acórdão: Apelação Cível n. 70022777452, de Caxias do Sul.
Relator: Des. Glênio José Wasserstein Hekman.
Data da decisão: 09.09.2009.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA DE REVOGAÇÃO DE DOAÇÃO. INGRATIDÃO E DESCUMPRIMENTO DO ENCARGO. ART. 555 DO CC. PRELIMINAR DE PRESCRIÇÃO DE REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO POR ENCARGO. REJEITADA. CONFIGURAÇÃO DE DOAÇÃO COM ENCARGO VERBAL. CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS QUE REVELAM O DESCUIDO DOS DONATÁRIOS COM A ANCIÃ. 1.DA PRECRIÇÃO PARA REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO POR INGRATIDÃO. O art. 557 do CC, resume as hipóteses que ensejam a revogação por ingratidão. No caso, podendo ser pleiteada dentro de 01(um) ano, a contar de quando chegue ao doador o fato que autorizar, e de ser o donatário o seu autor. Sentença mantida. 2.DA PRECRIÇÃO PARA REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO POR ENCARGO. A regra aplicável no caso de revogação de doação por descumprimento de encargo é aquela prevista no do art. 205 do novo Código Civil (art. 177 do CC/1916). Prescrição afastada. Precedentes jurisprudenciais. 3. DA REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO. No caso, conforme o conjunto probatório produzido e acostado no feito, restou demonstrado a instituição de encargo verbal, concluindo-se que a doação somente se operou em favor do casal de mandados na condição dos mesmos cuidarem da autora, pessoa idosa, com dificuldades auditivas, solteira e sem filhos. Desnecessária a situação de desgraça (material e moral) da doadora para configurar a inexecução do encargo, porquanto os fatos narrados na inicial, e, comprovados no tramitar nos feito são suficientes para autorizar o pleito de revogação. APELAÇÃO PROVIDA.
APELAÇÃO CÍVEL
VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL
Nº 70022777452
COMARCA DE CAXIAS DO SUL
ANGELINA MARIA DEMORI
APELANTE
IRACEMA PAIM DEMORI
APELADO
JOAO DEMORI FILHO
APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Magistrados integrantes da Vigésima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento à apelação.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. JOSÉ AQUINO FLÔRES DE CAMARGO (PRESIDENTE) E DR.ª ÂNGELA MARIA SILVEIRA.
Porto Alegre, 09 de setembro de 2009.
DES. GLÊNIO JOSÉ WASSERSTEIN HEKMAN,
RELATÓRIO
DES. GLÊNIO JOSÉ WASSERSTEIN HEKMAN (RELATOR)
ANGELINA MARIA DEMORI interpôs apelação cível em razão da sentença de fls. 208/210, que julgou improcedente “ação declaratória de revogação de doação” ajuizada contra JOÃO DEMORI FILHO E IRACEMA PAIM DEMORI.
Razões recursais (fls. 213/231). Em síntese, a recorrente alega que é latente a ingratidão dos donatários, bem como o descumprimento do encargo previsto na doação. Refere que restou demonstrada com prova testemunhal, especialmente, com o depoimento das partes colhidos no feito, a ingratidão, caracterizada pelo abandono físico e moral ao qual foi submetida, em razão da prática de atos injuriosos praticados pelos donatários que causaram ofensa não só a sua honra como a sua dignidade a justificar a revogação da doação. Defende que, contrariamente do entendimento esposado na sentença a doação foi efetivada com encargo, com finalidade de que seu irmão e sua cunhada cuidassem da doadora na velhice, em que pese não estar expressa na escritura pública.
Insurge-se quanto ao acolhimento da preliminar de prescrição, ao argumento que a hipótese dos autos (gratidão e encargo), tem prazo distintos, consoante estabelecem os arts. 555, 557 e 205, todos do CC. Quanto a ingratidão insurge-se quanto a valoração da prova.
No que refere ao descumprimento do encargo alega que este é de ordem moral. Ademais, ressalta que o próprio demandado admite a obrigação. Irresigna-se com a sentença quanto a necessidade de notificação, na forma do art. 562 do CPC, bem como, com a impossibilidade de revogação da doação em relação a Iracema, argumentando que esta também não cumpria o encargo. Diante de tais circunstâncias, requer o provimento do recurso, para reforma da sentença, bem como inversão do ônus da prova.
A apelação foi recebida no seu duplo efeito (fls. 233).
Contra-razões (fls. 235/247). Os recorridos reeditam a preliminar de prescrição para anulação da doação, porquanto esta foi perfectibilizada na vigência do CC/1916 e, já tinha passado mais da metade do prazo prescricional quando da entrada em vigor do novo Código Civil, aplicando-se, no caso, as disposições do art. 178, § 6º, do CC/1916 combinado com art. 2.028 do CC/2002. Com efeito, requerem seja extinto o processo sem julgamento de mérito. No mérito, asseveram que não houve condição na doação e impugnam as alegações de maus tratos alegados na inicial. Pugnam pela manutenção da respeitável sentença.
Após, subiram os autos a este e. Tribunal, e vieram conclusos para julgamento.
Sobreveio petição noticiando o falecimento da autora, conforme informado nas fls. 249/252.
Suspenso o prazo, consoante estabelece o art. 265, inc. I, do CPC.
Habilitados os únicos irmãos da de cujus, ANTÔNIO WILSON DEMORI e CLAUDINO ANTOMINIO DEMORI, requereram o prosseguimento do feito (fl. 259/260).
Intimados os demandados da habilitação (fl. 273), permaneceram silentes, transcorrendo o prazo legal (fl. 274).
Retornou o feito para julgamento.
É o relatório.
VOTOS
DES. GLÊNIO JOSÉ WASSERSTEIN HEKMAN (RELATOR)
Eminentes Desembargadores:
Cuida-se de “ação declaratória de revogação de doação” do imóvel localizado na Rua Travessão José Bonifácio, Caxias do Sul/RS, cujo ato jurídico se perfectibilizou-se através de escritura pública nº 6.573 (fls. 11/12 – 05/03/1999), em face da alegação de ocorrência de ingratidão e descumprimento de condição pelos réus.
De modo que, passo imediatamente a decidir.
1. DA PRESCRIÇÃO
Reeditam os demandados – apelados a preliminar de prescrição da pretensão da autora. No entanto, de pronto, vai afastada.
Analiso a questão.
Antes, porém, ressalto que, a questão prescricional em debate, restou reconhecida para revogação por ingratidão (CC/2002, art. 559) e afastada a para revogação por inexecução do encargo (CC/2002, art. 205).
No caso vertente, como se concluí com facilidade do relatório, a pretensão declinada na inicial está embasada na ocorrência das hipóteses do art. 555 do Código Civil, causa peculiar de desconstituição de doação, a saber, ingratidão e o descumprimento do encargo.
O art. 557 do diploma legal antes mencionado, capitula as hipóteses que ensejam a revogação por ingratidão. No caso, podendo ser pleiteada dentro de 01(um) ano, a contar de quando chegue ao doador o fato que autorizar, e de ser o donatário o seu autor.
Ressalto que, no caso sub judice, entendeu a Magistrada sentenciante pela impossibilidade de aferir a obediência do art. 559 do Código Civil (prazo de 01 ano, a contar do fato), em face da ausência de prova do fato tido como mais gravoso a ensejar a revogação da doação.
Ressalto que, dos elementos temporais citados na inicial (“no domingo seguinte”, “no início da semana”, “há aproximadamente seis meses”, “depois dos últimos meses”), bem como da prova oral colhida – referente ao fato mais gravoso praticado pelo réu capaz de comprovar a ingratidão, a saber, a “afronta e ameaça à autora” -, resta impossível aferir o prazo estabelecido no art. 559 do Código Civil para revogação por ingratidão.
Diante disso, neste tópico, estou, pois, mantenho o entendimento sentencial. Para melhor compreensão transcrevo parte do decisum:
“Ante a alegação de prescrição, cabia à autora especificamente demonstrar quando ocorreu a discussão ante a retirada do dinheiro da conta, sendo possível assim a verificação da obediência ao art. 559 do Código Civil de 2002. A prova não era impossível no caso, bastando a apresentação do extrato da conta corrente referida, eis que o fato ocorreu em data próxima e posterior ao saque de R$ 5.000, da conta”. (fl. 209, verso) (grifei)
A propósito, aponto julgado desta c. Câmara Cível:
Imóvel. Doação. Pretensão à revogação por ingratidão da donatária, consubstanciada, sobretudo, em ofensas dirigidas à genitora do doador. I. Fatos ocorridos na vigência do Código Civil de 1916, que admitia a revogação da doação apenas em face de ofensa à pessoa do doador. II. Ajuizamento extemporâneo da demanda, porquanto superado o prazo de um ano, contado do fato revelador da ingratidão, consoante o art. 1.184 do CC/1916 (art. 559 do CC/2002). III. Honorários advocatícios. Manutenção do montante fixado na sentença. APELAÇÃO DESPROVIDA. RECURSO ADESIVO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70011011103, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 09/03/2005)
Da mesma forma, ressalto que, o art. 562 contém a previsão, segundo a qual a doação onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação assumida.
Na lição de Arnaldo Rizzardo , o prazo para promover a revogação da doação por descumprimento de encargo não é o mesmo que o adotado para a hipótese da revogação por ingratidão.
“A revogação deve ser pleiteada mediante uma ação própria. Há de ser declarada judicialmente, pois considera-se a doação, enquanto não desconstituída, um ato perfeito e acabado. E o prazo, compreendendo apenas as hipóteses de ingratidão, será de um ano. Visando-se a anulação, ou desconstituir a doação por motivos outros que os capitulados no art. 557 (art. 1.183 do código anterior) e no art. 555 (parágrafo único do art. 1.181 do Código revogado), não mais se aplicará tal lapso prescricional; vigorará, então, o do art. 205 do Código civil (art. 177 do Diploma anterior), de dez anos, com raras exceções previstas expressamente pelo código, quando será, então, decadencial” (grifei)
Tenho, portanto, que a regra aplicável no caso de revogação de doação por descumprimento de encargo é aquela prevista no do art. 205 do novo Código Civil (art. 177 do código anterior). É a orientação do STJ, consoante se extraí da ementa a seguir:
“DOAÇÃO MODAL – INEXECUÇÃO DE ENCARGO – PRAZO PRESCRICIONAL – O prazo de prescrição para a ação tendente a obter a revogação da doação, por inexecução de encargo, é de vinte anos. A prescrição anual refere-se a revogação em virtude de ingratidão do donatário. Por unanimidade, conhecem do recurso e lhe dão provimento.” (STJ, Terceira Turma, Resp 27019/SP, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, julgado em 10.05.1993, DJ de 14.06.1993, p. 11782)
No mesmo sentido, segue jurisprudência desta Corte:
“DOAÇÃO COM ENCARGO. REVOGAÇÃO. PRESCRIÇÃO. DESCUMPRIMENTO. I – Consoante precedentes do STJ, o prazo prescricional para ingressar com a ação de revogação é de vinte anos e tem amparo no disposto no art. 177, e não no art. 178, §6º, I, do CPC. II – O não cumprimento do encargo constante em escritura de doação autoriza à revogação da liberalidade, tanto mais que houve interpelação judicial para que o donatário se desincumbisse do ônus que lhe fora cometido sem que houvesse, de sua parte, adimplemento da condição estabelecida. Apelação desprovida. Reexame Necessário prejudicado. Sentença mantida”. (Apelação e Reexame Necessário nº 70005714 282, Primeira Câmara Especial Cível, tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Corrêa Palmeiro da Fontoura, julgado em 02.12.2003)
Em reforço, segue a posição adotada por esta 20ª Câmara Cível:
“DOAÇÃO MODAL. REVOGAÇÃO. PRAZO DECADENCIAL. ART. 177, CC/1916. O prazo decadencial para a propositura da ação de revogação por inatendimento do encargo é o vintenário, inconfundível a hipótese com aquela do art. 178, §6º, I, CC/1916. HONORÁRIOS DE ADVOGADO. VERBA FIXADA EM CONSONÂNCIA COM O RELEVO DO TEMA. Não se apresenta exagerada a venda de R$ 1.000,00, em se considerando o relevo jurídico e a repercussão econômica da demanda.” (Apelação Cível nº 70009952672, Vigésima câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Rel. Des. Armínio José Abreu Lima da Rosa, Julgado em 15.12.2004.
E, de tais prazos, evidentemente, não se distanciou a sentença fustiga. Veja-se:
“Também não merece amparo o pedido de revogação da doação pela inexecução do encargo. Não há falar em prescrição no caso, considerando que a ação foi interposta em 14/05/2004 e a doação efetivada em 05/03/1999 (fls. 11 e 12), ou seja, antes de dez anos (art. 205 do novo Código Civil). Além disso, corre o prazo prescricional da época do descumprimento do encargo” (fl. 209v.)
Merece, portanto, ser afastada a prefacial de prescrição por descumprimento do encargo, reeditada pelos apelados.
2. NO MÉRITO
No mérito, melhor sorte assiste a apelante.
Em razão do antes apreciado, analiso a possibilidade de revogação da doação apenas pelo viés do descumprimento do encargo pelos donatários.
De pronto, oriento meu voto, perfiliando entendimento no sentido de possibilidade de existência de encargo verbal, especialmente, no caso dos autos, onde os próprios donatários estão a admitir tal obrigação.
Assim, diferentemente do entendimento adotado na sentença de que, no caso dos autos, deve prevalecer a “doação pura” e o seu “caráter fundamental da irrevogabilidade”, vez se trata de “doação de contrato formal”, não podendo ser “invocado o encargo verbal e moral fixado para se pleitear a revogação do contrato” (fl. 210), tenho que, é possível o reconhecimento do encargo estipulado verbalmente entre as partes, o seu descumprimento, e, em decorrência a anulação do ato jurídico. Para tanto indispensável, apenas, prova inequívoca da estipulação do encargo e de seu descumprimento.
Saliento que, a prova oral produzida nos autos, demonstrou, forma cristalina, que a autora efetivou doação com encargo verbal, bem como o desatendimento do ônus por parte dos donatários.
As circunstâncias fáticas trazidas no feito, estão a revelar a sucessão de atos preparatórios à doação do imóvel praticados pela autora Angelina, consubstanciado na reunião com seus três irmãos – Antônio, Claudino e João -, com o intuito de saber qual dos três poderia cuidá-la na velhice, sendo que em troca receberia seu único bem imóvel de sua propriedade a título de doação.
No caso, registro que, a realização da reunião para escolha do cuidador da idosa restou ratificada pelo próprio demandado JOÃO DEMORI, que em audiência relatou:
“Olha, ela fez uma reunião com três irmãos que somos nós, e naquela noite nós tava só nós três e ela, ela pediu se alguém quisesse auxiliar ela, que ela tava com uma idade que ela precisaria de gente para ajudá-la, como sempre foi ajudada, que ela é irmã minha, que eu considero como irmã mesmo. E, o mais velho disse não que tenho a mãe que tá mal, o segundo disse assim: “olha, hoje eu não posso dar resposta, eu tenho que falar com a família”, e, eu disse assim: “sozinha tu não vai ficar, tu é minha irmã e pelo fato, não é pela terra que eu vou querer te auxiliar, porque eu terra eu tenho”.
No mesmo sentido, os irmãos CLAUDINO e ANTÔNIO (ouvidos como informantes), ratificaram as alegações constantes na inicial, quanto a realização de reunião com a finalidade de escolher um irmão que cuidasse da autora.
Assim sendo, CLAUDINO foi firme ao declarar que:
“Ela fez uma reunião porque ela era solteira, ela precisava de quem cuidasse dela, e fez a reunião, então, nós estávamos em quatro, eu não podia porque eu tinha a mãe e uma guria doente, o outro meu irmão disse que se a mulher cuidasse ele ia assumir, se não, não. (…) ela ia deixar a casa para essa pessoa”. (fls. 128 e 129). (Grifei)
No mesmo passo, a testemunha ALICE VERGANI STURNER, fl. 133, declarou ter a autora lhe comentado que “ela iria fazer assim com os irmãos, e que se um deles assumisse ela, que ela daria os próprios bens dela para assumir ela né”.
A testemunha MÁRCIA ISABEL TROIS GOMES, fl. 141, também, disse que sabia “que ela pediu para ele cuidar dela né, que daí ela passava as terras para ele”.
MARIA IONE PEREIRA MENDES, testemunha arrolada pelos demandados, ao ser inquirida pelo Juiz sobre os termos da doação, fl. 139, revelou “só sei assim por exemplo que ela passou para eles, para eles cuidarem dela”. Refere que foi a própria demandada Iracema que lhe contou que tinha assumido o compromisso de cuidar de Dona Angelina.
Como se defluí do exame da prova oral, o encargo recaiu sobre o irmão João e sua esposa, ante a negativa dos irmãos Antônio e Claudino em assumir o compromisso – em face das obrigações pessoais-, bem como a confirmação do demandado para assumir a obrigação.
Com efeito, o encargo instituído verbalmente restou inequivocamente demonstrado, concluindo-se que a doação somente se operou em favor do casal de mandados na condição dos mesmos cuidarem da autora Angelina Maria Demori, pessoa idosa, portadora de surdez, solteira, sem filhos. Sem dúvida, essa foi a principal razão para a doação do único imóvel da autora, ainda que não tenha constado expressamente da escritura pública o dever de cuidado dos donatários (irmão e cunhada) para com a doadora.
Neste tópico – existência de doação com encargo – outro não foi o entendimento da Magistrada a quo. Veja-se:
“entendo do conjunto probatório que restou esclarecido aos irmãos da autora, que o irmão que se responsabilizasse pelos cuidados de Angelina na velhice seria o beneficiado com a doação do único imóvel pertencente à autora, com reserva de usufruto vitalício. Na contestação foi admitida a existência de reunião de família para tratar de amparo da autora na velhice. Ainda que considerada a tese do réu de que a doação não foi tratada propriamente na reunião, ocorrendo logo após os réus terem assumido que cuidariam da autora, verifico que existia no âmbito verbal a vinculação entre o encargo e o benefício. Neste sentido a prova testemunhal. Não apenas dos outros irmãos da autora, ouvidos sem compromisso, declararam a vinculação da doação aos cuidados da autora pelos donatários, mas ainda das testemunhas arroladas pelos réus. (fl. 209v.) (grifei)
Ainda que a ação de doar imóvel prescinda de ato formal (CC, art. 541), pois em tal caso considera-se indispensável a lavratura do ato em escritura pública, sob pena de nulidade absoluta, o mesmo não é exigível no caso do encargo, podendo ser este estabelecido de forma tácita – como a hipótese que se julga -, onde a manifestação de vontade e os atos das partes convergem, modo indubitável, para a configuração de situação de doação com encargo.
Os próprios demandados estão a exteriorizar, no início da doação (até maio/2002), atos compatíveis com a aceitação e exercício do encargo. Exemplificando, juntaram ao feito comprovante de que cuidaram à autora por ocasião de uma das suas hospitalização e notas fiscais de despesas despendidas com serviço de telefonia referente aos meses de novembro/2001 e maio de 2002, instalada no imóvel da autora.
As alegações constantes no feito convergem para atribuição de de encargo consubstanciado em cuidados, acompanhamento, atenção, zelo com a idosa. Do que resulta que, o dever dos demandados não se esgotava nas prestações iniciais (telefonia por três ou quatro meses e cuidados com uma hospitalização), mas num conjunto de atos praticados ao longo do tempo, consoante à necessidade da autora, digo, enquanto essa vivesse.
In casu, no entanto, o descumprimento do encargo restou ratificado. CLAUDINO declarou que a demandada esteve hospitalizada, sendo que tal fato era de conhecimento dos donatários. Diz que estes durante as internações da autora sequer compareceram ao hospital.
“ela foi duas vezes para o hospital e eles nunca foram visitar ela no hospital, quem cuidou mais no hospital fui eu, porque eu fiquei três, quatro dias no hospital com ela”, fl. 129.
ANTÔNIO DEMORI afirmou que: “Ela se acidentou e eles não ajudaram ela, quem ajudou foi Claudino meu irmão”, fl. 136.
Ao depois, o próprio demandado JOÃO DEMORI, confirmou ao Juízo que quando a autora esteve doente quem a cuidou foi uma vizinha (fl. 120).
Não fosse isso, a própria autora declarou em audiência de instrução que esteve doente, sendo que foi cuidada por vizinhos, “ficou numa casa” e recebeu auxílio do Circulo Operário, fl. 117. Depoimento que, não restou impugnado pelos demandados (memoriais).
Lembro que, no caso vertente, é o descumprimento das obrigações dos donatários, especificamente, a falta de cuidado com a autora nas duas internações hospitalizações (inclusive com hemorragia), que ensejou a propositura da presente demanda por descumprimento do encargo.
Ao meu sentir, desnecessária a situação de desgraça (moral e material) da doadora para configurar a inexecução do encargo, porquanto os fatos narrados na inicial, e, comprovados no tramitar nos feito são suficientes para autorizar o pleito de revogação.
Aliás, disso não se afastou a sentença, ao dizer que “das queixas da autora considero a efetivamente grave o não acompanhamento de Angelina pelos réus quando da hospitalização por atropelamento e problema de hemorragia no nariz”, fl. 210.
No sentido que se julga, aponto precedente a seguir:
APELAÇÃO CÍVEL. DOAÇÃO COM ENCARGO. REVOGAÇÃO. DESCUMPRIMENTO DO DEVER ASSUMIDO PELOS DONATÁRIOS DE DESPENDER CARINHOS E CUIDAR DAS DOADORAS. BEM IMÓVEL RECEBIDO EM DOAÇÃO MODAL. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA ANTE A SUPOSTA AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PARA A AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E SANEAMENTO. DESCABIMENTO. 1) Réus que eram revéis, mas que foram devidamente intimados acerca da realização da audiência de conciliação e saneamento por nota de expediente expedida em nome de seu advogado, o mesmo que subscreve as contra-razões e o recurso adesivo. Não-comparecimento que significou preclusão do direito à produção de prova. Cerceamento de defesa inocorrente. 2) Doação modal. Tendo os donatários abandonado o local onde viviam as doadoras, descumpriram o encargo da doação, correspondente ao dispêndio de cuidados e carinhos para com estas, pessoas solteiras e sem descendentes. Circunstâncias que justificam a revogação da doação por descumprimento de encargo. 3) Inexistência de venda do imóvel e da casa objeto da doação. Venda noticiada na inicial, em realidade, que apenas teria como objeto uma casinha simples de madeira, que os donatários teriam construído. Inexistência da figura de qualquer terceiro de boa-fé, razão pela qual não há motivo para se negar a resolução do contrato e a conseqüente anulação do negócio jurídico. Possibilidade de acolhimento da pretensão das demandantes, notadamente porque os réus, em contra-razões, sequer alegaram a presença desse terceiro. E, também, porque, na matrícula do imóvel, nada consta a respeito de eventual transferência da propriedade. A obrigação só se converte em perdas e danos se impossível a tutela específica ou se requerida pelo autor, o que não se dá no caso concreto. APELAÇÃO PROVIDA. RECURSO ADESIVO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70024721805, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Aquino Flores de Camargo, Julgado em 30/07/2008).
Na hipótese, submete-se a parte autora à previsão contida no art. 562 do Código Civil, que estabelece:”não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação assumida”, não o fazendo, resta-lhe apenas uma opção, isto é, a revogação do negócio jurídico (CC, art. 475). Vale dizer que o doador desistiu da realização dos desideratos que motivaram a liberalidade, apenas, buscando a restituição do bem doado.
Por derradeiro, ressalto que, a única prova vinda nos autos relativamente à cuidados com autora são as representadas pelas notas fiscais de telefonia (fls. 53/55 – período de novembro/2001 a maio/2002) e informações de cuidados hospitalares, atos praticados em 2002 (fevereiro/2002), e, de lá até a propositura da presente demanda, efetivada em maio/2004, nenhuma prova veio no sentido de que tenham os demandados prestado qualquer auxílio, acompanhamento, ajuda à requerente. Pelo que, não se desincumbiram do ônus que lhe impõe o art. 333, II, do CPC.
Apenas para ilustrar a questão fática aqui debatida, chamo atenção para as notícias veiculadas em jornais da localidade, que dão conta da triste e trágica morte da doadora, com matéria com seguinte teor.
“Dois cães da raça pitbull mataram a aposentada Angelina Maria Demori, 79 anos, na tarde de sábado em Caxias do Sul. (…), Angelina Maria Demori, 79 anos, nasceu em Caxias do Sul e sempre morou no interior. Solteira e sem filhos (…). Vizinhos contam que há três meses, Angelina havia sofrido um acidente doméstico e ainda estava com a perna um pouco machucada”, (fls. 250 e 252). (grifei)
Ao meu juízo, tenho que a doadora demonstrou que foi desatendida nas suas necessidades (encargo de cuidar, acompanhar na velhice), configurando-se a omissão dos donatários.
À luz de tais, considerações estou encaminhando meu voto no sentido de dar provimento à apelação para revogar a doação constante na matrícula nº48.324 do Cartório de Registro de Imóveis da 2ª Zona de Caxias do Sul, livro 2 – Registro Geral, fl. 01.
Inverto o ônus sucumbencial.
É o voto.
DR.ª ÂNGELA MARIA SILVEIRA (REVISORA) – De acordo.
DES. JOSÉ AQUINO FLÔRES DE CAMARGO (PRESIDENTE) – De acordo.
DES. JOSÉ AQUINO FLÔRES DE CAMARGO – Presidente – Apelação Cível nº 70022777452, Comarca de Caxias do Sul: “DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME.”