TJ|RS: Apelações Cíveis. Testamento Particular. Não confirmação. Ausência de Testemunhas instrumentárias. Descumprimento das formalidades legais. Art. 1.876, § 2º, do CCB. Testamento inválido.
APELAÇÕES CÍVEIS. TESTAMENTO PARTICULAR. NÃO CONFIRMAÇÃO. AUSÊNCIA DE TESTEMUNHAS INSTRUMENTÁRIAS. DESCUMPRIMENTO DAS FORMALIDADES LEGAIS. ART. 1.876, § 2º, DO CCB. TESTAMENTO INVÁLIDO. Não tendo sido observadas as formalidades do art. 1.876 do CCB, não reclama reparo a sentença que não confirmou o testamento particular.
APELOS DESPROVIDOS.
Apelação Cível: Oitava Câmara Cível
Nº 70062647268 (N° CNJ: 0457289-25.2014.8.21.7000) – Comarca de Porto Alegre
MARIA DO ROSARIO KURBAN JOBIM: APELANTE/APELADO
ADIB PAULO ABDALLA KURBAN: APELANTE/APELADO
MARIA CLARA DA SILVA KURBAN: APELANTE/APELADO
ANIS CARLOS ABDALLA KURBAN: APELADO
AMIR ELIAS ABDALLA KURBAN: APELANTE/APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Magistrados integrantes da Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento aos apelos, nos termos dos votos a seguir transcritos.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des.ª Liselena Schifino Robles Ribeiro (Presidente) e Dr. José Pedro de Oliveira Eckert.
Porto Alegre, 09 de abril de 2015.
DES. RICARDO MOREIRA LINS PASTL,
RELATÓRIO
Des. Ricardo Moreira Lins Pastl (RELATOR)
Trata-se de recursos de apelação interpostos por MARIA DO ROSÁRIO K. J., ADIB PAULO A. K., MARIA CLARA da S. K e AMIR ELIAS A. K., inconformados com a sentença que julgou improcedente o pedido de confirmação do testamento deixado por CLARA A. K.
Maria do Rosário, Adib Paulo e Maria Clara, primeiros apelantes, mencionam que a vontade da testadora de beneficiar o neto Bernardo era incontestável, salientando que, ao tempo da confecção do testamento, a falecida era absolutamente capaz.
Alegam que a ação de registro de testamento é um procedimento especial de jurisdição voluntária em que não há lide, mas apenas confirmação de um negócio jurídico, não ingressando o juiz em questão de alta indagação.
Defendem que, embora as testemunhas não estivessem presentes no momento da feitura do testamento e documento não tenha sido lido pela testadora, não há que se falar em invalidade do ato.
Renovam que a vontade da testadora em beneficiar o neto, que com ela vivia, é incontroversa e foi confirmada por duas testemunhas inquiridas em juízo, as quais conheciam Clara, sustentando que o fato de uma das testemunhas signatárias não ter lido o documento não pode macular o testamento, sob pena de inviabilizar o cumprimento da última disposição de vontade.
Colacionando jurisprudência, pugnam pelo provimento do recurso (fls. 184/192).
Amir Elias A. K, segundo apelante, menciona que todos os filhos, inclusive Anis, tinham conhecimento da manifestação da vontade da testadora em beneficiar o neto Bernardo.
Defende que a falecida tinha capacidade testamentária ativa ao tempo da testificação, asseverando que as testemunhas, Laura e Maria, confirmaram a veracidade da vontade da falecida em beneficiar o neto e que Gilmara reconheceu sua assinatura no testamento.
Alegando que a vontade da testadora merece ser respeitada, a despeito de o testamento não ter observado o rigor da forma, requer o provimento do apelo (fls. 211/216).
Apresentadas as contrarrazões (fls. 197/201 e 220/221), os autos foram remetidos a esta Corte para julgamento, opinando a douta Procuradoria de Justiça pelo provimento dos apelos (fls. 206/208).
Registro que foi observado o disposto nos artigos 549, 551 e 552, do Código de Processo Civil, tendo em vista a adoção do sistema informatizado.
É o relatório.
VOTOS
Des. Ricardo Moreira Lins Pastl (RELATOR)
Eminentes colegas, os recursos de apelação são próprios, tempestivos (interpostos no prazo legal, fls. 176/177 e fls. 209 e 211) e foram preparados (fls. 193 e 217).
Como relatado, os filhos da de cujus, Maria do Rosário, Adib Paulo e Amir Elias, bem como a neta Maria Clara (herdeira por direito de representação ao pai pré-morto, Antonio Jorge, conforme informação da fl. 24), insurgem-se contra sentença julgou improcedente o pedido de confirmação do testamento particular, sob o fundamento de inobservância de requisito contido no art. 1.876, § 2º, do CC.
Por este testamento particular, confeccionado em 10.07.2006, Clara A. K. declarou que “estando em perfeito juízo e entendimento, decidi fazer este testamento na presença das testemunhas adiante nomeadas e qualificadas, declarando o seguinte: 1) que sou brasileira, viúva, filha de Jorge A. e Rahje A., ambos já falecidos; 2) que ‘deixo os bens relativos a 40% (quarenta por cento) da parte disponível a meu neto Bernardo Adib Paulo a. k.’ […]” (fl. 6).
Inicio pela transcrição da fundamentação sentencial, de lavra da culta Juíza de Direito, Dra. CARMEM MARIA AZAMBUJA FARIAS:
Trata-se de ação ajuizada por Maria do Rosário Kurban Jobim requerendo a publicação em juízo e a confirmação do testamento particular deixado por sua mãe, Clara Abdalla Kurban.
No entanto, o pedido é improcedente, pois o instrumento particular de fl. 06 não preenche os requisitos estabelecidos pelo artigo 1.876 e seguintes do Código Civil.
Sobre o testamento particular e seus requisitos de validade, ensina Maria Berenice Dias:
“Os requisitos são: (a) escrito pelo testador, de forma manuscrita ou mediante processo mecânico; (b) lido pelo testador perante três testemunhas; (c) assinado pelo testador e pelas testemunhas. As exigências não são muitas, mas todas essenciais, sob pena de comprometer sua validade.
O primeiro requisito é que o testador seja alfabetizado e tenha condições de ler e escrever. Quando escrito manualmente, deve ser de próprio punho. Não pode ser redigido a rogo. No entanto, quando feito de forma mecânica, ou seja, datilografado ou digitalizado, não é necessário que o testador domine estas técnicas. A digitação pode ficar a cargo de outra pessoa. Quando redigido à mão, rasuras, correções e acréscimos devidamente ressalvados não o invalidam. Mas a lei é mais severa quando feito por processo mecânico. O texto não pode ter rasuras e nem espaços em branco (CC 1.876 § 2º). Não há qualquer referência sobre a inclusão da data e do local em que foi confeccionado. Estes requisitos, apesar de importantes, não são essenciais e a omissão não afeta a validade do testamento.
As testemunhas não precisam presenciar a confecção do testamento. São convocadas pelo testador para ouvirem sua leitura. É necessária a presença das três testemunhas simultaneamente. É requisito essencial. Se as testemunhas apenas assinaram, o testamento é nulo por falta de solenidade indispensável. É obrigatório que a leitura seja levada a efeito pelo próprio testador. A exigência é legal (CC 1.876 § 1º): é requisito essencial à sua validade ser lido e assinado por quem o escreveu.” (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 351).
No caso dos autos, todas as testemunhas do testamento, Laura Fernandes Parchen, Maria Solonir Fernandes Parchen e Gilmara Lima dos Santos, foram ouvidas em juízo. Ocorre que as duas primeiras, embora tenham informado que todas estavam reunidas na ocasião em que firmaram o instrumento particular (fls. 109 e 111), admitiram que a testadora não se encontrava presente ao ato (fls. 109v e 111), fato que também foi confirmado por Gilmara.
Como consequência lógica disso, verifica-se que o texto do instrumento particular não foi lido pela testadora às testemunhas, conforme exige o parágrafo 2º do artigo 1.876 do Código Civil. Além disso, a testemunha Gilmara afirmou que nem mesmo leu o documento (fl. 113) e o teor de seu depoimento indica que sequer tinha conhecimento do ato que estava praticando.
Nesse contexto, tendo em vista que a elaboração do instrumento particular deixou de observou todas as formalidades essenciais previstas em lei, provocando a nulidade do ato, não é possível a confirmação do testamento particular.
ISSO POSTO, nos termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil, JULGO IMPROCEDENTE o pedido.
Como visto, a decisão no sentido da não confirmação do testamento particular levou em consideração especialmente que o instrumento não foi lido pela testadora às testemunhas e que uma dessas afirmou que nem mesmo leu o documento, não tendo sequer conhecimento do ato que praticava.
Estipula o art. 1.876 do Código Civil que:
Art. 1.876. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante processo mecânico.
§ 1º Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever.
§ 2º Se elaborado por processo mecânico, não pode conter rasuras ou espaços em branco, devendo ser assinado pelo testador, depois de o ter lido na presença de pelo menos três testemunhas, que o subscreverão.
Como consignado na sentença, o testamento em estudo foi confeccionado pela Advogada Nara P. T., assinado pela testadora e, depois, firmado pelas testemunhas, documento que não foi lido pela testadora perante as três testemunhas signatárias, Laura F. P, Maria Solonir F. P. e Gilmara L. dos S., observando-se que essa última sequer o leu.
Se apenas a ausência de leitura do testamento fosse o efetivo problema a ser superado à sua confirmação, até haveria margem ao êxito das insurgências, já que não se deve alimentar demasiada homenagem ao formalismo.
Ocorre que esse não é o único defeito da alegada testificação, com a devida licença, e para tudo há limite, sobretudo na esfera da sucessão testamentária, já que as formas nessa seara do Direito operam como direito cogente.
Na sucessão testamentária, a formalidade é da essência do ato, visando as formas a garantir a autenticidade do testamento e a preservar a vontade livre do testador, para que seja emitida isenta de interferências externas, conscientemente. Daí que o testamento é um ato jurídico essencialmente solene, tendo na forma seu requisito substancial, sob pena de nulidade absoluta, nos termos da previsão do art. 166, IV, do CCB.
Em resumo, ainda que se possa relativizar em parte os aspectos formais de um testamento para que prevaleça a intenção da testadora, esse temperamento em relação à formalidade não pode ser tamanho a ponto de autorizar seja recebido como testamento um documento feito para a testadora assinar, apenas pela profissional que a assistia na ocasião, sem que ninguém assistisse e presenciasse essa deliberação, não se podendo dar azo à interpretação tendente a prestigiar um não-acontecimento, vale dizer, a admitir como testemunha quem nada presenciou, a rigor.
Por incrível que pareça, o fato é que não houve testemunhas do ato de testificação. Repriso: ninguém, a não ser a testamenteira, que redigiu o documento para Clara assinar, presenciou o momento em que feitas as supostas disposições de última vontade.
Laura, questionada pela Magistrada se estava presente quando da confecção do documento, disse que não, que já estava assinado e que lhe foi levado para assinar pela testamenteira Nara, sua irmã (fl. 109). Maria Solonir, mãe da testamenteira, no mesmo sentido, disse que não estava presente quando feito o testamento (fl. 111), sendo ainda pior a situação narrada pela testemunha Gilmara, empregada doméstica da testamenteira Nara, que também disse que não estava presente quando da testificação (fl. 113) e que sequer leu o documento (fl. 113).
Repito: essas “testemunhas” (que são a irmã, a mãe e a empregada doméstica da advogada que redigiu o documento da fl. 6), a respeito do ato de testar, rigorosamente nada testemunharam.
Ora, testemunha é a pessoa que viu ou que ouviu. É aquela que assiste a realização de um ato para dar-lhe validade legal. É a que acaba por presenciar uma ação ou um fato. A que de um fato tem conhecimento. A que presencia um fato qualquer. É o espectador.
Em direito, testemunho é o meio de prova consistente na declaração feita por terceiro, pessoa estranha às partes litigantes, a respeito de determinado fato de que soube. É aquela pessoa que merece fé em juízo. Ser testemunha é assistir, é presenciar, é ser, é estar presente.
Que pormenores poderiam dar Laura, Maria Solonir e Gilmara de um fato que não presenciaram? Como atestar a autenticidade e a validade de um ato a que não assistiram?
Após referir que se dizem instrumentárias as testemunhas porque utilizadas para servirem de provas em um documento feito sem o crivo do Judiciário, ARNALDO RIZZARDO consigna que “a primordial função das testemunhas é ver e ouvir o testador, de modo a saber identificá-lo e confirmar que as disposições de última vontade são do testador e autênticas, posto que ouviram serem proferidas por ele. Elas são chamadas para assistir não apenas a realização do testamento, mas especialmente para comprovar o cumprimento das exigências legais. Imprimem solenidade ao ato, ou possuem também a finalidade de dar seriedade ao testamento, ou para emprestar rigorismo formal” (em “Direito das Sucessões”, vol. I, AIDE, 1996, p. 288).
Conclui o insigne doutrinador grifando que às testemunhas cumpre ouvir e ver, destacando que não bastam a simples presença e a assinatura, já que o texto do instrumento confeccionado deve ser conhecido, para concluir que a leitura repita ou reproduza aquilo que nele está escrito.
Embora até não fosse necessário, acrescento que confirmar que o documento já assinado foi apresentado depois para que as “testemunhas” assinassem não é o mesmo que confirmar que a manifestação de última vontade foi externada de modo livre. Nem de longe.
E confirmar que a autora da herança tinha essa intenção (o que as “testemunhas” mencionaram ter percebido de todos os seus demais atos praticados em vida) também não significa confirmar a realização da testificação.
Em suma, Laura, Maria Solonir e Gilmara são meras “testemunhas auriculares”, que souberam do fato por terem ouvido dizer. E, como tal, não se prestam à pretendida confirmação.
Para arrematar, realço que esse documento foi firmado em meados de 2006, falecendo a testadora mais de quatro anos depois, em novembro de 2010, dispondo de tempo suficiente para testar regularmente, o que não fez.
ANTE O EXPOSTO, voto pelo desprovimento dos apelos.
Dr. José Pedro de Oliveira Eckert (REVISOR) – De acordo com o(a) Relator(a).
Des.ª Liselena Schifino Robles Ribeiro (PRESIDENTE) –
Pedi vista dos autos para melhor examinar os fundamentos alinhados pelo em. Procurador de Justiça no sentido do provimento dos recursos, mas cheguei à idêntica conclusão à do relator, com o que também nego provimento às apelações.
DES.ª LISELENA SCHIFINO ROBLES RIBEIRO – Presidente – Apelação Cível nº 70062647268, Comarca de Porto Alegre: “NEGARAM PROVIMENTO AOS APELOS. UNÂNIME.”
Julgador(a) de 1º Grau: CARMEM MARIA AZAMBUJA FARIAS