Artigo: Por uma alteração do atual modelo contratual notarial
Fernanda de Freitas Leitão*
Escrevi este artigo em julho de 2001, precisamente há 14 anos, logo após o meu ingresso como Delegatária do 15º Ofício de Notas da Capital, por meio de concurso público de provas e títulos, sendo aquele o primeiro realizado no Brasil.
Já naquela época, insurgi-me contra a forma em que eram lavradas as escrituras públicas, reputava-as prolixas, com diversos termos desnecessários e anacrônicos.
Muito falei sobre esse assunto, no entanto, confesso-lhes que penso que, até agora, nada mudou nesse sentido.
Como sou persistente, decidi reescrevê-lo, no intuito de tentar mudar um pouco dessa cultura notarial, inclusive na minha Serventia.
Estamos vivendo uma época de grandes e incessantes transformações, tanto sociais como tecnológicas. As pessoas buscam, cada vez mais, a praticidade e a objetividade na sua vida cotidiana, mormente nas suas relações profissionais. A linguagem moderna se caracteriza pela sua clareza e objetividade, dispensando palavras ou termos ininteligíveis para o cidadão comum.
Vejam como são as mensagens transmitidas pelo WhatsApp! Curtas e diretas. Essa é a linguagem atual.
Tenho convicção de que a elaboração de um bom contrato não está calcada no uso de palavras difíceis ou num amontoado de folhas, que o leigo não entende, tampouco pelo uso de frases e termos inúteis para a confecção daquele documento.
A partir dessa minha observação, resolvi proceder a algumas modificações nas escrituras públicas que, a meu ver, guardam em si uma grande carga de termos desnecessários, repetição de palavras sinônimas, termos jurídicos que, na maioria das vezes, não são entendidos por aquele indivíduo leigo, que está comprando um imóvel, e por vezes nem mesmo por aquele escrevente que redigiu o documento e está lendo a aludida escritura.
Exemplificando melhor, entendo como termos redundantes e dispensáveis os adiante expostos: partes entre si, justas e contratadas. Não seria melhor dizer: “compareceu, como outorgante vendedor, fulano de tal”? Outro termo: bem como farei enviar nota ao competente ofício distribuidor, no prazo e na forma da lei. “O ato da distribuição da escritura pública compete ao Ofício de Notas, que lavrou o aludido ato, e ao Registro Imobiliário competente.” Portanto, trata-se de uma frase que pode e deve ser abolida.
Vale, igualmente, destacarmos outro grande exagero, é quando se trata da quitação.
Normalmente, nas escrituras públicas de compra e venda, quando o vendedor dá a quitação, coloca-se que o vendedor dá a mais ampla, plena, irrevogável e rasa quitação.
Ora, se o vendedor deu a quitação, está quitado. Se fosse quitação parcial ou com ressalva, aí sim, deveríamos consignar expressamente essa situação.
Outro exemplo: O outorgante vende, como de fato vendido o tem, pelo preço certo e ajustado de R$. Não seria melhor dizermos: “O outorgante vende ao outorgado o imóvel supracitado pelo preço de R$ …”? A presente promessa é irrevogável e irretratável. “Não seria melhor escolhermos um dos dois adjetivos”? Este instrumento é celebrado nos melhores termos de direito… “Alguém já firmou algum documento, nos piores termos de direito?
Outro termo jurídico desnecessário que, normalmente, consta em todas as escrituras, é a evicção de direito. O art. 447, do Código Civil, determina que, nos contratos onerosos, o alienante responde pela evicção.
Por que ninguém se refere aos vícios redibitórios? Porque as consequências jurídicas dos vícios redibitórios se encontram na lei, exatamente como na evicção de direito.
Ora, se o alienante é obrigado a resguardar o adquirente dos riscos da evicção, penso que só deveríamos inserir o mencionado termo na hipótese de o alienante não responder ou quando houver reforço, diminuição da garantia ou a exclusão da responsabilidade, fora esses casos, a colocação do termo evicção de direito é, sob a minha ótica, totalmente despicienda.
Por que se coloca “Saibam quantas estas virem…”? Indago, alguém atualmente se expressa dessa forma? Não seria mais apropriado colocarmos: Aos …. dias do mês….?
O constituto-possessório ou clausula constituti é outro problema que atormenta o mundo notarial. Será que alguém sabe o momento correto de imitir o outorgado no imóvel, por meio do constituto-possessório?
Sabemos que o constituto-possessório se dá quando se transfere a posse ficticiamente.
Mas será que todos realmente sabem o exato momento para utilizá-lo de forma correta?
O constituto-possessório estava positivado no inciso IV, do art. 494 e inciso V, do art. 520, do antigo Código Civil, que tratava respectivamente de modos de aquisição e perda da posse.
O Código Civil de 2002 não o previu expressamente.
No entanto, a melhor doutrina entende que o instituto permanece no nosso sistema jurídico, todavia, de forma implícita no art. 1.204 (vejam o Enunciado nº 77, da Jornada de Direito Civil).
Dando prosseguimento às minhas observações, outra frase que considero dispensável é aquela que diz: “…O presente contrato é extensivo aos seus herdeiros e sucessores.” Nós, operadores do direito, conhecemos a norma legal, ou seja, no tocante aos contratos impessoais, transmitem-se os direitos aos respectivos herdeiros ou sucessores, não se aplicando essa regra quando se tratar de contratos personalíssimos. Mais uma vez, a consequência jurídica está na lei.
Nesse mesmo diapasão, reitero o que escrevi no texto sobre o bem de família contratual.
Temos o hábito de sermos prolixos, quando lavramos uma procuração para alienar determinado imóvel, devemos deixar expresso que o mandatário poderá vender, dar quitação, transmitir domínio, responder pela evicção, e por aí afora, sob pena de a mencionada procuração não ser aceita no Serviço Notarial ou Registral, que se pretende realizar o ato.
Não bastaria dizermos que o mandatário X tem poderes para a venda, os outros poderes não seriam corolários do primeiro, que é a venda. Aprendemos desde cedo na Faculdade de Direito que quem pode o mais, pode o menos, mas na prática notarial essa máxima não surte quase nenhum efeito. Se posso vender, a fortiori, posso dar quitação, não seria o lógico?
Isso, apesar de aparentemente ser um detalhe irrelevante, gera, a meu ver, um grande problema ao sistema notarial, posto que provoca insegurança quando se lavra o ato, haja vista que não sabemos de antemão se aquela procuração será aceita ou não perante a outra Serventia, principalmente quando a procuração é dirigida à prática do ato principal em outro estado da nossa Federação ou quando é originária de outro país.
Enfim, acredito que essas mudanças propostas não se trata simplesmente de querer por diletantismo alterar a forma em que são lavradas a maioria das escrituras no nosso país, mas, sim, de adequá-las às normas e aos princípios determinados tanto na Constituição da República como no Código Civil, como, por exemplo, o princípio da boa-fé objetiva, assim como os seus deveres anexos (proteção, informação e cooperação – inobservância, violação positiva do contrato), da função social do contrato e da justiça contratual.
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*Bacharel em Direito em 1991 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Exerceu a advocacia na iniciativa privada, em seguida, admitida em concurso público, exerceu o cargo de Procuradora do Estado do Rio de Janeiro e, a partir de 1998, passou a atuar como quinta Tabeliã do 15º Ofício de Notas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.
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