TJ|SP: Inventário. Sucessão testamentária. Regime da separação obrigatória de bens. Sub-rogação. Não aplicação da Súmula 377. Quinhões desiguais. Necessidade de avaliação. Recurso provido.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODER JUDICIÁRIO
São Paulo
Registro: 2015.0000746923
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº 0065903-12.2005.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes C. L. de P. S., F. de P. S., N. de P. S., O. S. N., E. M. T. S. e C. DE P. S., são apelados Y. D. A. S. (INVENTARIANTE) e M. L. S. (ESPÓLIO).
ACORDAM, em 10ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso. V. U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos.
Desembargadores JOÃO CARLOS SALETTI (Presidente) e CARLOS ALBERTO GARBI.
São Paulo, 6 de outubro de 2015
CESAR CIAMPOLINI
RELATOR
Assinatura Eletrônica
Comarca: São Paulo 7ª Vara da Família e Sucessões
Juíza de Direito Dra. Alice Galhano Pereira da Silva
Apelantes: C. L. de P. S. e outros
Apelados: Y. D. A. S. e outro
VOTO Nº 12.500
Inventário. Sucessão testamentária à qual concorrem viúva, que era casada com o “de cujus” sob o regime da separação obrigatória de bens, e filhos do primeiro casamento deste.
Caso em que, patente a sub-rogação (provada documentalmente e incontroversa entre as partes) do preço da venda de valioso ativo de propriedade exclusiva do de cujus nos imóveis inventariados, não se aplica a presunção “hominis” de comunicação dos aquestos (Súmula 377/STF). Fato que pode ser declarado nos próprios autos do inventário.
Jurisprudência, inclusive do STJ, a respeito do art. 984 do CPC. Herança, consistente na parte disponível do “de cujus”, deixada “universalitatem” (parte do conjunto de bens componentes do monte) à viúva, para ser paga preferencialmente em determinados imóveis. Impossibilidade da partilha dita aritmética, isto é, de todos os bens em partes ideais. Necessidade de avaliação, o que não sucederia se a deixa tivesse caráter de legado (correspondendo a determinado bem, dentre os componentes do monte).
Princípio da maior igualdade possível dos quinhões. Código Civil, art. 2.017.
Sentença homologatória de partilha, mal esboçada pelo Partidor, anulada, determinando-se, no prosseguimento do inventário, a realização de avaliação.
Apelação provida.
RELATÓRIO.
Trata-se de apelação (fls. 860/866) a pedir a declaração de nulidade de r. sentença (fls. 840/841) que, nos autos da sucessão testamentária do saudoso Milton Lebert Salles, homologou partilha esboçada pelo Partidor (fls. 768/774).
É inventariante a viúva, casada com o de cujus sob o regime da separação obrigatória de bens.
Com ela concorrem os filhos de primeiro casamento do de cujus.
Pelo público testamento (fls. 13/15), a viúva foi instituída herdeira da parte disponível de todos os bens da então futura sucessão, devendo ser paga “preferencialmente” pela “garagem da Rua Taquá, nº 291, nesta Capital”.
Além desse mencionado imóvel, mais precisamente consistente em 80 vagas no edifício que leva tal número da Rua Taquá, cada qual objeto de matrícula imobiliária própria (fls. 30 e seguintes), a sucessão compreende ainda outro imóvel, na cidade do Guarujá (apartamento 152 do Edifício Manihi, Astúrias), numerário em aplicações financeiras, um automóvel (cf. retificação das primeiras declarações constante de fls. 626/630) e cotas de sociedade limitada (fls. 825/828).
Não oficia o M.P., em que pese o disposto no art. 82, I, do CPC, e apesar de tê-lo feito até fls. 727/728, quando apresentou suas razões para deixar de atuar.
Não se avaliaram os bens e a partilha fez-se em partes ideais, mediante utilização dos valores venais dos imóveis, sob pressuposição de ser a viúva, além de herdeira testamentária da disponível, também meeira dos bens, isto à vista do disposto na Súmula 377 do Pretório Excelso (“No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”).
Daí ter sido atribuída à viúva a parte ideal de 88,695863% de cada uma das 80 vagas na garagem. Aos filhos tocaram as partes ideais restante nas vagas e, em condomínio, os demais bens.
No apelo, que interpõem após rejeitados embargos de declaração (fls. 848/849; fl. 855), os filhos alegam cerceamento de defesa e ofensa ao contraditório, pois desejavam mais amplamente manifestar-se acerca da defesa, pelo Partidor, de seu esboço.
No mérito, essencialmente, aduzem que o reconhecimento da meação é indevido, na medida em que isto jamais foi antes declarado nos autos, e ainda que, de todo o modo, não se tratando a deixa testamentária de legado, mas de herança, havia que se fazer avaliação dos bens do monte, não cabendo divisão em partes ideais.
Contrarrazões a fls. 875/880.
Determinei (fl. 892) a juntada aos autos do v. acórdão que julgou o primeiro agravo de instrumento interposto pelos herdeiros filhos, ora apelantes, de que foi relator o Desembargador ARY BAUER (como se menciona no v. acórdão em embargos de declaração fls. 738/739).
O v. decisório foi junto e se estampa a fls. 894/899.
É o relatório.
FUNDAMENTAÇÃO.
Fica prejudicado o exame da matéria preliminar, diante do que proponho se decida quanto ao mérito.
A primeira questão que deve ser resolvida diz com a meação que se afirmou na r. sentença em prol da viúva, com base na Súmula do Supremo Tribunal Federal.
É certo que se presume meeira a viúva casada sob o regime da separação legal de bens com o finado, consoante a Súmula 377/STF. Não se trata, porém, também é certo, naturalmente, de presunção juris et de jure, mas relativa.
Existe a presunção de que os bens foram adquiridos com o esforço comum, ou, conceda-se, com o produto de poupança, da economia, que os cônjuges esforçaram-se em fazer dos frutos, da renda de bens, ainda que particulares.
Todavia, se houver prova contrária, não se aplica a Súmula 377, como apontam THEOTONIO NEGRÃO et alii:
“Segue a interpretação da jurisprudência para essa Súmula: ‘Em se tratando de regime de separação obrigatória (CC, art. 258 – art. 1.641 do CC atual), comunicam-se os bens adquiridos na constância do casamento pelo esforço comum. O enunciado n. 377 da Súmula do STF deve restringir-se aos aquestos resultantes da conjugação de esforços do casal, em exegese que se afeiçoa à evolução do pensamento jurídico e repudia o enriquecimento sem causa’ (RSTJ 39/413, STJ-RT 691/194, STJ-RF 320/84). No mesmo sentido: RT 846/256.
‘Apesar de o casamento haver sido contraído pelo regime de separação der bens no exterior, os bens adquiridos na constância da vida comum, quase à totalidade transcorrida no Brasil, devem se comunicar, desde que resultantes do esforço comum. Exclusão, portanto, do patrimônio existente em nome da viúva, obtido em labor individual, doação ou herança, incorporando-se os demais ao espólio do cônjuge varão, para partilha e meação, a serem apurados em ação própria’ (STJ-4ªT., REsp 123.633, Min. Aldir Passarinho Jr., j. 17.3.09, maioria, DJ 30.3.09).” (Código Civil, 33ª ed., pág. 612).
Ora, no caso dos autos, é fato incontroverso, afirmado repetidamente pelos filhos (v. g. a fls. 327/328) e admitido expressamente pela viúva (fl. 461), que, após o casamento, o de cujus não mais trabalhou, passando a viver de rendas e da venda de patrimônio.
Igualmente, é incontroverso, fato afirmado pelo filhos (fl. 328/329; fls. 397/398) e nunca negado pela viúva, que as vagas na garagem do prédio da Rua Taquá foram adquiridas por sub-rogação parcial do produto da venda do valioso imóvel da Avenida Angélica, 672, de propriedade exclusiva do finado.
E disso há irretorquível prova documental.
Com efeito, o dito “palacete” da Avenida Angélica foi vendido em 5/8/1986, por escritura das notas do 1º Cartório desta Capital, livro 2.014, fls. 210 e seguintes, pelo de cujus, à Construtora Elias Victor Nigri Ltda., com sede nesta Capital na própria Avenida Angélica, 2.318, 6º andar (fl. 416, verso, matrícula imobiliária).
Isto enquanto as vagas foram compradas pelo finado, no mesmo dia, no mesmo Cartório, por escritura do mesmo livro, folhas sequenciais à da venda do palacete (213 e seguintes), da Planalto Planejamento Construções e Administrações Ltda., por igual com sede na Avenida Angélica 2.318, 6º andar, representada por seu sócio gerente, Engenheiro Elias Victor Nigri (vejam-se, no primeiro e no segundo volumes dos autos, as 80 matrículas imobiliárias que acompanham as primeiras declarações; e, a fls. 435/437, a escritura de compra e venda celebrada entre a Planalto e o finado).
Mais, na compra das vagas, pelo total de Cz$ 1.200.00,00 (o palacete havia sido vendido por Cz$ 14.481.000,00 – fl. 416 verso), não circulou dinheiro para quitação do preço, dito “recebido anteriormente” (escritura mencionada, fl. 436).
Sub-rogação evidente.
Há eloquente indício, ainda, de que subrrogação também tenha ocorrido relativamente ao imóvel do Guarujá, por igual comprado da Planalto Planejamento Construções e Administrações Ltda., de que sócio gerente o mesmo Engenheiro Elias Victor Nigri, titular da construtora que porta seu nome empreendedor (matrícula à fl. 278).
Logo, ao menos relativamente aos imóveis componentes do monte, não há que se falar em comunicação, em aquestos, mediante aplicação direta da Súmula 377/STF.
Entendimento sumular, que, de resto, por configurar exceção à regra geral de que os patrimônios, no regime da total separação, não se comunicam (art. 1.687 do Código Civil), há de ser interpretada restritivamente.
Ressalto, finalizando este primeiro tópico do recurso, que, não se está diante de questão de maior indagação, ao menos para os fins do art. 984 do CPC. Decorrendo, como com efeito decorre, a evidencia de sub-rogação, de documentos constantes dos autos e de fatos incontroversos, pode ser declarada nos próprios autos do inventário, pelo Juízo da Sucessão.
É ler, mais uma vez, THEOTONIO NEGRÃO e continuadores:
“Questões de direito, mesmo intrincadas, e questões de fato documentadas resolvem-se no juízo do inventário, e não na via ordinária” (STJ-4ª T., REsp 114.524, Min. Sálvio de Figueiredo, j. 27.5.03, DJU 23.6.03). No mesmo sentido: STJ-3ª T., AI 855.543-AgRg. Min. Gomes de Barros, j. 21.6.07, DJU 1.8.07. Questão de alta indagação ‘não é uma intrincada, difícil e debatida questão de direito, mas o fato incerto que depende de prova aliunde, isto é, de prova a vir de fora do processo, a ser colhida em outro feito’ (JTJ 171/197). No mesmo sentido: RT 603/63, JTJ 211/98, Bol. AASP 1.567/301.” (CPC, 46ª ed., pág. 1.049).
Resta o outro ponto do recurso, o da avaliação.
Aqui também assiste razão aos herdeiros filhos, sendo de se ver que, no caso dos autos, era a estimação dos bens impositiva, em obediência ao princípio da igualdade dos quinhões, hoje consubstanciado no art. 2.017 do Código Civil:
“Art. 2.017. No partilhar os bens, observar-se-á quanto ao seu valor, natureza e qualidade, a maior igualdade possível.”
Não houvesse a disposição testamentária no sentido de que a herança da viúva fosse paga preferencialmente com as vagas na garagem, aí sim, estabelecido qual o percentual no monte a ela cabente, estando certa a legítima de cada filho, poderia ser feita a partilha em partes ideais (dita partilha aritmética), em que pesem seus notórios inconvenientes.
Não é o que sucede aqui. É preciso haver avaliação para que se estabeleça o valor real do monte a partir da estimativa de cada um dos bens. Assim, apurado o total a partilhar, será então a viúva paga preferencialmente com as garagens. Da estimativa global da herança, vis à vis o valor das vagas, decorrerá o percentual nas mesmas cabentes à viúva.
Ou então, melhor, será possível, posto que se trata de 80 imóveis individualizados no registro imobiliário, evitar-se, senão totalmente, em grande parte, condomínio, sempre odioso e criador de litígios. E é bastante provável que isto seja possível, dado o grande número de vagas, presumivelmente de valor igual entre si.
Poder-se-ão, aparentemente, atribuir à viúva e a cada herdeiro bens individualizados, como sempre é de se desejar.
Noutras palavras, prevendo o testador, no testamento, desigualdade na qualidade dos bens, não pode haver partilha ideal, pena de afronta ao art. 2.017 do Código Civil.
Como pondera JAMES EDUARDO OLIVEIRA:
“Na sucessão testamentária, tudo vai depender da vontade do testador, exceto no que se refere aos herdeiros necessários, dado que as quotas legítimas necessárias estão sob o mesmo princípio da igualdade” (Código Civil Anotado e Comentado, 2ª ed., pág. 1.781).
É o que sucede aqui, com a determinação de última vontade de pagamento preferencial em vagas na garagem.
Se ocorresse o inverso, isto é, se todos os herdeiros tivessem sido aquinhoados em partes de todos os bens componentes do monte, aí sim, poder-se-ia cogitar de dispensa de avaliação: outro prejuízo não haveria, senão a sempre indesejável criação de condomínio.
Assim:
“INVENTÁRIO. PARTILHA. MEEIRA E HERDEIROS AQUINHOADOS EM PARTES IDEAIS DE TODOS OS BENS QUE COMPÕEM O MONTE PARTÍVEL. RECLAMO CONTRA A FALTA DE AVALIAÇÃO IMPROCEDENTE. IMPREQUESTIONAMENTO DOS TEMAS INVOCADOS. MATÉRIA DE FATO. – AUSENTE O REQUISITO DO PREQUESTIONAMENTO TOCANTE AOS TEMAS DOS ARTS. 243 A 250, 1.014 E PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC, E 1.778 DO CÓDIGO CIVIL. – AVALIAÇÃO DESNECESSÁRIA NO CASO, POIS AQUINHOADOS MEEIRA E HERDEIROS EM PARTES IDEAIS DE TODOS OS BENS QUE COMPÕEM A HERANÇA. – INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO A PARTE COM A PROLAÇÃO DA SENTENÇA DE PARTILHA NO DÉCIMO DIA APÓS A INTIMAÇÃO. – ASSERTIVA DE QUE OS BENS ADMITEM A DIVISÃO CÔMODA IMPORTA EM REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA NA VIA ANGUSTA DO RECURSO ESPECIAL (SÚMULA N. 07-STJ. IDÊNTICA PRETENSÃO DO RECORRENTE QUANTO AOS FRUTOS E AOS BENS ORIUNDOS DO INVENTARIO DE SEU PROGENITOR. – RECURSO NÃO CONHECIDO.” (REsp 37.890, BARROS MONTEIRO).
E, de todo o modo, ad argumentandum, não fosse a impossibilidade prática de se fazer o que fez o Partidor, e foi homologado pela r. sentença apelada, seria de se lembrar a tradição do direito pátrio a respeito do princípio da igualdade dos quinhões, hoje objeto do art. 2.017 do Código Civil:
“Segundo Carlos Maximiliano, considera-se uma boa partilha ‘quando os quinhões de herdeiros do mesmo grau mais ou menos se equiparam’ (Direito das Sucessões, II, p. 625). Essa igualdade deve ter como critérios o valor, a natureza e a qualidade dos bens que constituirão os quinhões hereditários. Neste sentido: ‘Partilha em inventário. A regra da igualdade na partilha não assenta em atribuir a todos os herdeiros uma parte ideal em todos os imóveis da herança, pois assim o juiz manteria o condomínio, fonte de discórdias e de pleitos. A equidade não obsta, antes aconselha a que se atribua um bem, tanto quanto possível, ao herdeiro que já o utiliza ou o detém, ou nele fez benfeitorias ou é titular de uma parte dele’ (TJRS, 3ª C.C., AC 22.374, Rel. Athos Gusmão Carneiro, julg. 18.04.1974).” (GUSTAVO TEPEDINO et alii, Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, 2014, vol. IV, pág. 893).
A r. sentença, portanto, deve ser anulada.
Na baixa dos autos, (a) determinar-se-á a avaliação dos bens componentes do monte; (b) far-se-á novo esboço de partilha em que a herança testamentária (50% do monte, posto que a viúva meeira não é) seja paga preferencialmente com vagas na garagem do prédio da Rua Taquá, em observância à disposição testamentária, cabendo os demais ativos da herança aos filhos, extremados no possível, como avençarem entre si, formulando pedido consensual de quinhões (CPC, art. 1.022).
Finalizando, para que não haja a costumeira oposição de embargos declaratórios voltados ao prequestionamento, tenho por expressamente ventilados, neste grau de jurisdição, todos os dispositivos constitucionais e legais citados em sede recursal. Vale lembrar que a função do juiz é decidir a lide e apontar, direta e objetivamente, os fundamentos que, para julgar, lhe pareceram suficientes. Não é necessário que aprecie todos os argumentos deduzidos pelas partes, um a um, como que respondendo a um questionário (STF, RT 703/226; STJ-Corte Especial, RSTJ 157/27 e ainda ED no REsp 161.419). Sobre o tema, confiram-se ainda: EDcl no REsp 497.941, FRANCIULLI NETTO; EDcl no AgRg no Ag 522.074, DENISE ARRUDA.
DISPOSITIVO.
Dou provimento ao recurso para anular a r. sentença apelada, seguindo-se, na sequência do inventário, como indicado acima.
É como voto.
CESAR CIAMPOLINI
Relator