TJ|SP: Deserdação – Causa fundada em desamparo imputado pelo testador gravemente enfermo a seus filhos e herdeiros necessários – Eficácia da disposição subordinada à efetiva prova de ocorrência da causa expressa no testamento – Desamparo não comprovado – Testador que não necessitava de auxílio econômico, pois provido de recursos – Insuficiência de prova quanto à ausência de amparo emocional dos filhos ao pai, enquanto se encontrava gravemente enfermo – Ônus da prova do alegado desamparo a cargo dos herdeiros instituídos ou legatários a quem aproveite a deserdação – Parte disponível da herança não atingida pela ausência de prova da causa da deserdação, como, de resto, já previsto e disposto no testamento – Sentença correta, que analisou com serenidade a prova dos autos – Recurso improvido.
Registro: 2016.0000432612
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação nº 0605333-94.2008.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes R. S. J. (TESTAMENTEIRO(A)) e F. D. N. P. C., são apelados F. B. E G. e F. DE B. E G.
ACORDAM, em 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso. V. U.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores CLAUDIO GODOY (Presidente) e CHRISTINE SANTINI.
São Paulo, 21 de junho de 2016
FRANCISCO LOUREIRO
RELATOR
Assinatura Eletrônica
Apelação Cível nº 0605333-94.2008.8.26.0100
Comarca: SÃO PAULO
Juiz: JOSÉ WALTER CHACON CARDOSO
Apelante: R. S. J. E OUTRO
Apelado: F. B. E G. E OUTRO
Interessado: F. DE B. E G. (ESPÓLIO)
VOTO Nº 29.453
DESERDAÇÃO. Causa fundada em desamparo imputado pelo testador gravemente enfermo a seus filhos e herdeiros necessários. Eficácia da disposição subordinada à efetiva prova de ocorrência da causa expressa no testamento. Desamparo não comprovado. Testador que não necessitava de auxílio econômico, pois provido de recursos. Insuficiência de prova quanto à ausência de amparo emocional dos filhos ao pai, enquanto se encontrava gravemente enfermo. Ônus da prova do alegado desamparo a cargo dos herdeiros instituídos ou legatários a quem aproveite a deserdação. Parte disponível da herança não atingida pela ausência de prova da causa da deserdação, como, de resto, já previsto e disposto no testamento. Sentença correta, que analisou com serenidade a prova dos autos. Recurso improvido.
Cuida-se de recurso de apelação interposto contra a r. sentença de fls. 1.547/1.553, que julgou parcialmente procedente a ação anulatória de testamento ajuizada por F. B. E G. E F. R. E G. DA S. em face de F. D. N. P. C. E R. S. J., para (a) declarar ineficaz a deserdação imposta aos autores, pois não provada a sua causa e (b) declarar válido o testamento no que tange à fração disponível da herança.
A sentença julgou improcedente a reconvenção em que litigam as partes em polos opostos, com a qual se pretendia o reconhecimento da eficácia da deserdação.
Fê-lo a r. sentença, basicamente sob o fundamento de que o testamento não padece de invalidade por incapacidade do testador, que, apesar de gravemente enfermo, preservou incólumes as faculdades mentais. Por outro lado, a deserdação contida no testamento é ineficaz, pois não há prova de que os filhos tenham abandonado o pai enquanto se encontrava este gravemente enfermo.
Os réus apelantes sustentam, em síntese, a validade da cláusula de deserdação inserida no testamento. Aduzem que os filhos herdeiros realmente abandonaram o genitor enquanto se encontrava internado, acometido da grave enfermidade que o levou à morte. Assim, há fundamento suficiente para que o autor da herança os deserdasse.
Em razão do exposto e pelo que mais argumentam às fls. 1.557/1.575, pede o provimento de seu recurso.
O apelo foi contrariado (fls. 1.583/1.593).
A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo improvimento do recurso (fls. 1.673/1.674), fazendo referencia ao parecer da D. Promotora de Justiça.
É o relatório.
1. O recurso não comporta provimento, e a sentença, que analisou com profundidade e cuidado a prova, merece ser mantida por seus fundamentos.
O autor da herança F. R. e G. da S. elaborou em 20 de julho de 2.007 testamento público, pelo qual deserdou os filhos por terem-no desamparado enquanto padecia de leucemia, doença que o levou à morte meses depois.
A disposição testamentária indica a causa da deserdação (inciso IV do artigo 1.962 do código Civil):
“o absoluto desamparo e falta de assistência de seus referidos descendentes, quando se viu acometido de graves enfermidades e se encontrava internado no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, abandono esse que persiste até os dias de hoje” (fl. 99, item 4º).
Funda-se a cláusula testamentária, portanto, no inciso IV do artigo 1.962 do Código Civil, que se lê:
“desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade”.
O testador, em razão da cláusula de deserdação que afastou os filhos e herdeiros necessários, legou todos os seus bens à FUNDAÇÃO D. N. P. C. e ao testamenteiro R. S. J. (fls. 27/28), ora recorrentes.
O testador faleceu em 02 de outubro de 2.007 e, diante do ajuizamento de ação de cumprimento de testamento público pelo testamenteiro (fls. 23/24), os herdeiros deserdados ajuizaram a presente ação anulatória de testamento, sob alegação de incapacidade absoluta do testador e ausência de fundamento para a deserdação.
Os legatários instituídos, a quem aproveita a deserdação, não apenas contestaram a ação, mas ofertaram reconvenção na qual postulam ação de deserdação, mediante reconhecimento da prova da veracidade da causa alegada pelo testador.
Foi colhida ampla prova documental e oral em audiência, com oitiva de diversas testemunhas.
Contra o acolhimento da tese de ineficácia da deserdação, insurgem-se os legatários, beneficiários do testamento.
Esses, os fatos postos a julgamento.
2. A deserdação consiste na privação da legítima por vontade do autor da herança, mediante disposição testamentária, por algumas das causas taxativamente relacionadas pelos arts. 1.962 e 1.963 do Código Civil.
Trata-se de instituto afim à indignidade, ambos com o efeito de excluir da sucessão os herdeiros necessários. Entretanto, conforme a lição de Mauro Antonini,
“há diferenças importantes entre deserdação e indignidade. A deserdação decorre de disposição testamentária; a indignidade, da lei. A deserdação só priva da sucessão herdeiros necessários; a indignidade, todo tipo de sucessor (herdeiros necessários, facultativos, testamentários e legatários). A causa da deserdação, devendo ser declarada por testamento, necessariamente antecede a abertura da sucessão; a da indignidade pode-lhe ser posterior. Todas as causas de indignidade justificam deserdação, como prevê expressamente o art. 1.961, mas, além delas, há outras causas de deserdação, arroladas nos arts. 1.962 e 1.963, que não configuram indignidade” (Código Civil Comentado, diversos autores coordenados por Antonio Cezar Peluso, Manole, 2.006, p. 2.186).
Para se efetivar a penalidade, é indispensável, na clássica doutrina de Carlos Maximiliano,
“o concurso de quatro requisitos: 1.º ocorrer, pelo menos, uma das causas previstas em lei; 2.º consistir motivo da privação da legítima um fato já ocorrido quando foi lavrado o testamento; 3.º acharem-se declaradas em ato de última vontade a deserdação e a causa da mesma; 4.º ser provada a existência da causa por aquêle a quem aproveita a deserdação, ou pelo indivíduo que pretende tornar efetivo este castigo ao desamoroso” (Direito das Sucessões, Vol. III, 3ª Ed., p. 151).
3. Ao caso, interessa o quarto requisito, que subordina a eficácia da deserdação à prova da veracidade da causa alegada pelo testador, nos moldes do que exige o art. 1.965 do Código Civil.
De fato, a deserdação depende de prova precisa do mal que lhe serve de causa, que deve ser uma daquelas taxativamente relacionadas nos arts. 1.962 e 1.814 do Código Civil.
Conforme ensina Zeno Veloso,
“para que a deserdação tenha eficácia, como vimos, não basta que conste em testamento, com expressa declaração de causa. É preciso, ainda, com a morte do autor da herança e a abertura da sucessão, que o herdeiro instituído, ou aquele a quem aproveita a deserdação, prove a veracidade da causa alegada pelo testador, intentando-se a necessária ação judicial, cujo prazo de decadência é de quatro anos, contados da abertura do testamento. A prova póstuma da causa da deserdação é requisito essencial para a eficácia da cláusula testamentária que priva da legítima o herdeiro ingrato ou desamoroso. Assim sendo, a deserdação não opera de pleno direito” (Comentários ao Código Civil, V. 21, coord. Antonio Junqueira de Azevedo, Saraiva, p. 316).
No mesmo sentido, ensina o clássico Carlos Maximiliano que
“a declaração, aliás indispensável, da causa por que se prova alguém da reserva sucessória, facilita, mas não supre, a prova do fato alegado; esta precisa ser produzida em juízo e julgada por sentença; pois, se bastasse a simples referência do testador a um ato ou omissão, êle teria ensêjo para deserdar à vontade os ascendentes e os descendentes, haveria, na realidade, a liberdade ampla de testar” (op. cit, p. 151).
Cumpre aos herdeiros ou legatários beneficiários da deserdação, portanto, comprovar a causa da deserdação invocada no testamento, a saber, desamparo do testador gravemente enfermo.
O artigo 1.965 do Código Civil é absolutamente claro ao dispor que
“ao herdeiro instituído, ou aquele a quem aproveite a doação, incumbe provar a veracidade da causa apegada pelo testador”.
Logo, cabia aos réus reconvintes, ora recorrentes, o ônus de demonstrar que os filhos autores deixaram ao desamparo o pai e testador enfermo. Essa é a jurisprudência pacífica dos tribunais (TJSP AI 205486-4/6, Rel. Cezar Peluso; no mesmo sentido, JTJ 252/369 e JTJ 162/164).
4. O desamparo do ascendente gravemente enfermo, a que se refere o art. 1.962, IV, do Código Civil, deve ser provado pelos réus recorrentes, beneficiários da deserdação.
Admito que o desamparo a que alude a lei pode ser material ou moral.
De desamparo material não se cogita, diante da visível abastança do enfermo, autor da herança.
O testador era pessoa de posses, sócio majoritário de empresa de empreendimentos imobiliários e proprietário de ao menos dezoito imóveis em bairro valorizado de São Paulo, entre outros bens, conforme se pode verificar das disposições testamentárias (fls. 59/60).
Certamente, não necessitava de amparo material dos filhos em meio à grave enfermidade que enfrentou, de modo que aos herdeiros não pesava o correlato dever de assisti-lo materialmente durante o tratamento.
Aliás, a cláusula testamentária não reclama de abandono material, e nem a reconvenção se abalança a suscitar tal tese.
Sob essa perspectiva, portanto, a deserdação seria claramente ineficaz, a dispensar até mesmo dilação probatória.
5. O desamparo a que se refere o art. 1.962, IV do Código Civil pode assumir carga semântica mais ampla, a abarcar a falta de apoio afetivo e emocional ao enfermo.
Tal acepção afigura-se mais consentânea com o princípio constitucional da solidariedade e com as concepções contemporâneas do Direito de Família, que conferem prevalência à afetividade nas relações familiares em detrimento do aspecto meramente patrimonial.
Como lembra Maria Celina Bodin de Moraes, as entidades familiares passaram a ter caráter instrumental, voltadas para a realização dos interesses e da formação e felicidade de seus membros. Desapareceram a rígida hierarquia do matrimônio e do patrimônio familiar, que cederam espaço para a dignidade de seus membros (O princípio da solidariedade, in Na medida da pessoa humana, estudos de direito civil-constitucional, Renovar, p. 252).
Por esse aspecto, o amparo devido pelo descendente ao ascendente passa a abranger também apoio emocional, cuja expressão mais evidente, no caso, seria a presença física e o conforto dos filhos, durante visitação ao local de internação do pai enfermo.
Tampouco sob essa ótica se tem por verificada a causa da deserdação.
A prova testemunhal foi francamente dividida a respeito do desamparo emocional dos filhos ao pai enfermo.
A depoente M. F. L. B., ex-advogada do de cujus e testemunha no testamento, relatou ouvir dele que não via os filhos havia anos, e que o raro contato se relacionava com interesses meramente econômicos (fl. 1.097).
O distanciamento é confirmado pela médica M. C. M. de A. M. e pelas enfermeiras Z. J. da S. e M. B. da S., que assistiram o de cujus já em fase terminal da doença (fls. 1.052, 1.054 e 1.095).
R. M. L. G., que trabalhou por nove anos com o de cujus confirma o abandono, embora reconheça que em uma das internações ocorridas ao longo do tratamento da leucemia, no ano de 2.006, os autores se fizeram mais presentes (fl. 1.056).
Por outro lado, há diversos outros relatos francamente favoráveis à tese dos autores.
A testemunha D. C. era recepcionista do hospital e afirma que os autores compareciam cinco vezes por semana para visitar o pai (fl. 791).
Particularmente relevante o depoimento de I. R. B., amiga de longa data do falecido desde a adolescência e, portanto, conhecedora da dinâmica familiar. Segundo seu testemunho, era harmônico o relacionamento entre pai e filhos, que o visitavam regularmente durante as internações (fl. 793).
O advogado G. C. K., que advogou para a ex-mulher do falecido em razão de questões registrárias, descreveu com riqueza de detalhes o relacionamento da família, algo tumultuado, nos últimos meses de vida do de cujus. O depoimento confirma a impressão deixada pelas demais testemunhas, de que o convívio oscilava entre altos e baixos, com alguns momentos de maior proximidade e outros de distanciamento. Aparentemente, por vezes era o próprio pai quem rejeitava os filhos, chegando a repelir energicamente visitas (fl. 796).
Acresçam-se a tais depoimentos as procurações que o de cujus passou em nome próprio e de sua empresa aos herdeiros, datadas de 22 de maio de 2.007 (fls. 70/72), revogados por telegrama apenas cinco dias depois (fl. 74). A celebração dos contratos de mandatos, ainda que seguidos de imediata resilição, indicam que as partes com razoável assiduidade se relacionavam, de modo a incutir no mandante confiança suficiente para constituí-los mandatários.
A mesma conclusão é sugerida pelo ofício encaminhado pelo Hospital Oswaldo Cruz, segundo o qual a autora foi responsável por duas das três internações do de cujus no ano de 2.007 (fls. 618/619), o que seria pouco provável se houvesse distanciamento entre eles.
Em síntese, o conjunto das provas, se não permite concluir pelo mais harmônico relacionamento dos autores com o de cujus, no mínimo opõem grave dúvida à causa da deserdação. Diante de depoimentos conflitantes, não se pode afirmar que os herdeiros desampararam o pai enquanto esteve internado.
É dizer, mesmo diante da relativa animosidade que havia entre os familiares, e ainda que se tome por verdadeiro que os filhos não visitaram o pai durante alguns períodos da internação, fato é que no contexto geral havia bom relacionamento, ao invés da indiferença filial que caracterizaria o desamparo afirmado pelo testador.
Considerando que a prova da causa é fator de eficácia da deserdação, a ser realizada por quem dela se beneficie, e que o desamparo econômico ou emocional pelos autores não foi comprovado, forçoso concluir que a disposição testamentária, embora válida, é ineficaz.
Destaco que a parte disponível da herança do testador não é atingida pela ineficácia da cláusula de deserdação. Tal efeito decorre não apenas do sistema, como também e, sobretudo, do próprio conteúdo do testamento. O testador deixou expresso que, caso reconhecida a ineficácia da deserdação, mantinha os legados aos beneficiários, apenas com a redução legal.
A sentença analisou com profundidade e serenidade a prova dos autos, e merece ser prestigiada por seus fundamentos.
Nego provimento ao recurso.
FRANCISCO LOUREIRO
Relator
Data do Julgado: 21/06/2016