TJ|SP: Interdição – Ação julgada procedente – Acerto – Alegação de nulidade da sentença por violação ao disposto no art. 433 do CPC/73 não merece prosperar – Inexistência de efetivo prejuízo às partes em virtude da inobservância de regra legal de procedimento – Contraditório e ampla defesa preservados no caso concreto – Sentença de procedência proferida com base em prova técnica impugnada pela apelante – Perícia oficial, contudo, apenas corroborou provas documentais e interrogatório judicial indicativos de que a ré não possui plena capacidade para a prática dos atos da vida civil, pois padece de demência por multi infartos, permanente e progressiva – Curatela corretamente instituída em favor da requerida, nos termos do Código Civil e do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Recurso não provido.
Apelação Cível nº ***********************
Comarca: SÃO PAULO
Juiz: PATRÍCIA MAIELLO RIBEIRO PRADO
Apelante: ***********************
Apelado: ***********************
VOTO nº 29.643
INTERDIÇÃO – Ação julgada procedente – Acerto – Alegação de nulidade da sentença por violação ao disposto no art. 433 do CPC/73 não merece prosperar – Inexistência de efetivo prejuízo às partes em virtude da inobservância de regra legal de procedimento – Contraditório e ampla defesa preservados no caso concreto – Sentença de procedência proferida com base em prova técnica impugnada pela apelante – Perícia oficial, contudo, apenas corroborou provas documentais e interrogatório judicial indicativos de que a ré não possui plena capacidade para a prática dos atos da vida civil, pois padece de demência por multi infartos, permanente e progressiva – Curatela corretamente instituída em favor da requerida, nos termos do Código Civil e do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Recurso não provido.
Cuida-se de recurso de apelação interposto contra a r. sentença de fls. 1248 dos autos, que deferiu o pedido de interdição de ***********************.
Fê-lo a r. sentença, basicamente sob o argumento de que a prova pericial produzida confirmou a incapacidade da interditanda narrada na inicial.
Recorre a interditanda, alegando, preliminarmente, nulidade da sentença em virtude da inobservância ao disposto no art. 433 do CPC/73.
No mérito, aduz, em síntese, que a sentença não poderia ter acolhido as conclusões do laudo pericial, pois este se baseou apenas em exame clínico.
Afirma inexistir nos autos prova robusta e incontestável da incapacidade da interditanda, acrescentando que a demanda foi ajuizada como instrumento de pressão e vingança por sua filha, com quem litiga em outras três ações.
Em razão do exposto e pelo que mais argumenta às fls. 1255/1268, pede o provimento de seu recurso.
O apelo foi contrariado (fls. 1323/1326 e 1421/1423).
A D. Procuradoria Geral de Justiça manifestou- se às fls. 1430/1437 pelo desprovimento do recurso.
É o relatório.
1. Inicialmente, cumpre rejeitar o pedido de fls. 1451/1461 de concessão de efeito suspensivo ao recurso de apelação.
A decisão de fls. 1.282 da MMa. Juíza de primeiro grau corretamente recebeu o apelo apenas no efeito devolutivo, em observância ao disposto no art. 1.184 do Código de Processo Civil de 1973, então vigente.
Ressalte-se que o Código de Processo Civil de 2015 também previu expressamente como uma das hipóteses excepcionais de recebimento do recurso de apelação apenas no efeito devolutivo a sentença que decreta a interdição (art. 1.012, § 1º, VI).
Referida previsão tem como principal fundamento evitar que o interditando pratique atos lesivos a si próprio, em especial ao seu patrimônio, no interregno entre a prolação da sentença que já concluiu pela necessidade de interdição e o julgamento do recurso de apelação.
José Olympio de Castro Filho complementa ainda que a sentença que declara a interdição produz efeitos desde logo “para o fim de ser imediatamente publicada, para conhecimento de terceiros, assim como para o fim de ser nomeado, na própria sentença, um curador” (cf. Comentários ao Código de Processo Civil, 6ª ed., vol. X, Ed. Forense, 2007, p. 295).
No caso em tela, diferentemente do que alega o advogado da ré, a manutenção do efeito suspensivo atribuído ao recurso de apelação em nada prejudica a interditanda. As críticas formuladas à atuação da curadora anteriormente nomeada pelo Juízo a quo não devem ser resolvidas através da concessão do efeito suspensivo ao apelo.
Aliás, a própria curadora *********************** manifestou-se às fls. 1440/1441 dos autos, asseverando sua intenção de declinar do encargo por motivos de foro íntimo, inclusive de saúde, tendo a Secretaria providenciado a formação de autos suplementares na origem para nomeação de novo curador (cf. fls. 1444 e 1448).
A MMa. Juíza de primeiro grau certamente levará em conta as peculiaridades do caso concreto para nomear curador que melhor atenda aos interesses e necessidades da interditanda. De qualquer forma, é imperioso salientar desde logo que na remota hipótese de nomeação de curador cujos interesses conflitem com os da requerida em determinadas circunstâncias, será perfeitamente possível a nomeação de curador especial para representar a interditanda.
Em outras palavras, se for o caso, nada impede a nomeação de curador especial para defender a interditanda em ação de alimentos em que contende com sua filha. Tal situação não implica conferir efeito suspensivo ao recurso, postergando a medida protetiva da interdição ao transito em julgado.
Diante de todo o exposto, inviável a concessão do efeito suspensivo pretendido.
2. A preliminar de nulidade da sentença por inobservância do disposto no art. 433 do CPC/73 deve ser rejeitada.
Referido dispositivo legal, vigente à época da prolação da sentença, estabelecia que “o perito apresentará o laudo em cartório, no prazo fixado pelo juiz, pelo menos 20 (vinte) dias antes da audiência de instrução e julgamento”. O preceito foi em grande parte reproduzido no art. 477, caput do CPC/15.
É bem verdade que, no caso em tela, o laudo pericial foi juntado aos autos no dia da audiência de conciliação (cf. fls. 1240/1245), em que a D. Magistrada a quo houve por bem prolatar a sentença (cf. fls. 1246).
No entanto, a despeito da violação ao procedimento previsto no art. 433 do CPC/73, não há que se cogitar de nulidade da sentença, diante da inexistência de efetivo prejuízo a qualquer das partes.
A razão de ser da regra estatuída pelo art. 433 do CPC/73 e reproduzida no art. 477 do CPC/15 é permitir às partes manifestar-se sobre o conteúdo do laudo pericial, exercitando os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa.
Na lição de Fábio Tabosa, são as próprias partes as beneficiárias diretas da disposição em análise, “preocupando-se o legislador em criar condições para eventuais impugnações ao laudo e mesmo para pedidos de convocação do perito e assistentes à prestação de esclarecimentos verbais” (cf. Código de Processo Civil Interpretado, coord. Antonio Carlos Marcato, Ed. Atlas, São Paulo, 2005, p. 1373).
No caso em tela, evidente que o contraditório e a ampla defesa teriam sido melhor exercidos caso às partes tivesse sido disponibilizado o conteúdo da prova técnica com a antecedência prevista em lei.
No entanto, não se pode olvidar que a MMa. Juíza de primeiro grau facultou às partes a apresentação oral de memoriais no dia da audiência de conciliação em que o laudo foi juntado e a sentença proferida.
Ademais, com o recurso de apelação a ré trouxe aos autos parecer de seu assistente técnico (fls. 1272/1273), sobre o qual tiveram os envolvidos oportunidade de se manifestar nas contrarrazões de apelação, e que será devidamente apreciado por este Relator na análise do mérito.
Considerando, pois, todo o exposto, afigura-se inviável a anular a sentença por inobservância do disposto no art. 433 do CPC/73.
Ainda que os direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa fossem melhor assegurados mediante o cumprimento da regra estabelecida pelo referido dispositivo legal, o feito sofreria lastimável retrocesso, e os autos retornariam ao Juízo a quo para prolação de nova sentença com base nos mesmos elementos de informação que serão apreciados por este Relator, sem qualquer indicativo de que a convicção da D. Magistrada de primeiro grau seria alterada pelas manifestações escritas posteriores das partes.
Não se pode esquecer, mais, que a interdição é instituto protetivo dos interesses do incapaz, de modo que a nulidade da sentença, em última análise, deixaria a interditanda a descoberto por lapso expressivo de tempo.
Diante de todo o exposto, rejeito a preliminar arguida.
3. No mérito, o recurso não comporta provimento.
A autora *********************** requereu a interdição de sua mãe, Sra. ***********************, ao argumento de que ela sofre de demência senil.
A inicial e as demais manifestações processuais da demandante contêm uma série de acusações contra a interditanda, como a de que se trata de estelionatária. A ré, por sua vez, também imputa à filha diversas condutas desabonadoras, a exemplo de abandono material.
A animosidade entre as partes é latente, tanto que litigam em ao menos três outras ações judiciais, uma delas de alimentos movida pela mãe contra a filha.
Para os fins dessa demanda, contudo, o que importa é saber se a demandante apresenta ou não plena capacidade para a prática dos atos da vida civil.
Em outros termos, se tem ou não discernimento. Não é relevante saber a razão pela qual a filha pediu a interdição da genitora, mas sim se existe – ou não – real incapacidade.
4. Neste ponto, cumpre salientar que a disciplina das capacidades no Código Civil, calcada na ideia de discernimento, foi bastante alterada pelo art. 114 do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/15).
Para a aferição do discernimento, foram eleitos basicamente dois critérios, um deles objetivo (idade) e outro subjetivo (psicológico).
Sobre o assunto, esclarecem Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto que “quando se trata de incapacidade decorrente de critério cronológico (etário), a situação é facilmente demonstrável, porque submetida a um requisito objetivo, qual seja, a comprovação da idade da pessoa. Comprovada a idade, naturalmente, decorrem os efeitos jurídicos da incapacidade, vinculando todos os atos praticados pelo titular. No entanto, em se tratando de incapacidade (relativa) fundada em critério subjetivo (psicológico), considerando que a incapacidade é excepcional, é exigível o reconhecimento judicial da causa geradora da incapacidade, através de uma ação judicial a ser proferida em ação específica” (cf. Estatuto da pessoa com deficiência comentado artigo por artigo, Ed. Jus Podivm, 2016, p. 240).
Pois bem. Com a alteração promovida pelo art. 114 da Lei n. 13.146/15, o Código Civil passou a prever como absolutamente incapazes, em seu art. 3º, apenas os menores de 16 (dezesseis) anos. Segundo o art. 4º do mesmo texto legal, deverão ser considerados relativamente incapazes os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, os ébrios habituais e os viciados em tóxico, aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade, e os pródigos.
5. Ou seja, com a modificação legal promovida, buscou-se esclarecer que a deficiência física, mental ou intelectual não gera, a priori, incapacidade absoluta ou relativa.
Sobre o assunto, observa Milton Paulo de Carvalho que “a pessoa com deficiência tem assegurado pelo novo estatuto o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. A garantia de igualdade reconhece uma presunção geral de plena capacidade a favor das pessoas com deficiência. A deficiência é um impedimento duradouro físico, mental ou sensorial que não induz, em princípio, a qualquer forma de incapacidade, apenas a uma vulnerabilidade, pois a garantia de igualdade reconhece uma presunção geral de plena capacidade a favor das pessoas com deficiência. Com isso, a incapacidade surgirá excepcionalmente e amplamente justificada” (cf. Código Civil Comentado, diversos autores coordenados pelo Min. Cezar Peluso, Manole, 2016, p. 2004).
Complementou ainda o referido autor que “o objetivo do legislador ao alterar as normas contidas nos arts. 3º e 4º deste Código foi o de suprimir a incapacidade absoluta do regramento jurídico da pessoa com deficiência psíquica ou intelectual, já que fere a regra da proporcionalidade. É que, diante da infinidade de hipóteses configuradoras de transtornos mentais ou déficits intelectuais, seja pela origem, graduação do transtorno ou pela extensão dos efeitos, tornou-se insustentável a tentativa do direito privado do século atual de persistir na homogeinização da amplíssima gama de deficiências psíquicas, ao binômio incapacidade absoluta ou relativa, segundo a pessoa se encontre em uma situação de ausência ou de redução do discernimento” (op. cit, p. 2005).
Também na opinião de Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, “o simples fato de uma pessoa humana ter algum tipo de deficiência (física, mental ou intelectual), por si só, não é bastante para caracterizar uma incapacidade jurídica. Um dos grandes méritos do Estatuto da Pessoa com Deficiência é o absoluto desatrelamento entre os conceitos de incapacidade civil e de deficiência. São ideias autônomas e independentes. Uma pessoa com deficiência, em regra, é plenamente capaz e, por outro lado, um ser humano pode ser reputado incapaz independentemente de qualquer deficiência” (op. cit., p. 240).
Imperioso ressaltar que a previsão dos artigos 3º e 4º do Código Civil, alterados pelo art. 114 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, é complementada pelo disposto no art. 6º do último diploma, que tem a seguinte redação:
“Art. 6º. A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I – casar-se e constituir união estável;
II- exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.
Note-se que o preceito supra transcrito não menciona que a incapacidade decorrente da ausência de discernimento (que não é sinônimo de deficiência) preserva a autonomia privada no campo patrimonial.
6. As disposições legais alhures referidas têm sido alvo de muitas discussões e polêmicas no meio jurídico, pois sua leitura rápida e superficial pode levar à conclusão de que todas as pessoas com enfermidade ou deficiência mental e que não tiverem condições de exprimir sua vontade por causa transitória ou permanente, antes consideradas absolutamente incapazes, a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência deixaram de sê-lo, e não mais se sujeitam à interdição, cujo procedimento deixou de ter previsão legal expressa no Código Civil.
No entanto, as previsões legais mencionadas devem ser interpretadas teleológica e sistematicamente, a fim de que alcancem seu verdadeiro intento e se compatibilizem com as demais normas do ordenamento jurídico.
7. É inegável que o novel diploma buscou conferir maior autonomia às pessoas com deficiência, retirando-lhe possíveis estigmas decorrentes do processo de interdição.
Todavia, como já dito, uma interpretação meramente literal de suas regras poderia retirar a proteção que o ordenamento quis conferir às pessoas que, por razões diversas, não apresentam total discernimento para a prática dos atos da vida civil.
Em outras palavras, no intuito de dar efetividade à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, já incorporados definitivamente ao ordenamento jurídico brasileiro, algumas disposições do novo diploma, se não forem corretamente interpretadas, podem suprimir do sistema regras que, na verdade, visam a proteger as pessoas com o discernimento comprometido em razão de doença física, psíquica ou intelectual.
Sendo assim, a previsão do art. 6º do Estatuto, no sentido de que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para a prática dos atos ali arrolados, de ordem eminentemente existencial, deve ser interpretada no sentido de que a pessoa com deficiência pode praticar os atos da civil, especialmente aqueles ligados aos direitos da personalidade.
Se a capacidade de entendimento e autodeterminação da pessoa com deficiência for, porém, reduzida em maior ou menor grau, afigura-se perfeitamente possível a recomendável a instituição de curatela ou do procedimento de tomada de decisão apoiada para a consecução de determinados atos, especialmente aqueles de ordem patrimonial.
Ressalte-se que mesmo a curatela poderá ser parcial ou total, dependendo do grau de comprometimento das faculdades mentais do interessado, a ser avaliado por meio de perícia.
8. O entendimento acima explicitado encontra supedâneo no art. 84 do próprio Estatuto da Pessoa com Deficiência, pois embora o caput do dispositivo estabeleça que a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas, o § 1o estabelece que, quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei, ao passo que o § 2º faculta à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.
Lembram Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto que a curatela pode apresentar diferentes extensões, a depender do grau de deficiência física, mental ou intelectual do necessitado, e propõem os autores basicamente três espécies de curatela: “i) o curador pode se apresentar como um representante do relativamente incapaz para todos os atos jurídicos, porque este não possui qualquer condição de praticá-los, sequer em conjunto. Seria o caso de alguém que se encontra no coma ou a quem falta qualquer discernimento; ii) o curador pode ser representante para certos e específicos atos e assistente para outros, em um regime misto, quando se percebe que o curatelando tem condições de praticar alguns atos, devidamente assistido, mas não possui qualquer possibilidade de praticar outros, como, por exemplo, os atos patrimoniais; iii) o curador será sempre um assistente, na hipótese em que o curatelando tem condições de praticar todo e qualquer ato, desde que devidamente acompanhado, para sua proteção” (cf. Estatuto da pessoa com deficiência comentado artigo por artigo, Ed. Jus Podivm, 2016, p. 243).
Em outras palavras, a intensidade da intervenção de terceiros (representação legal ou assistência) estará diretamente ligada ao grau de discernimento (ou sua falta) que ocorrer no caso concreto. O exame de tal situação é tópico, levando em conta as circunstancias do caso concreto.
O processo de tomada de decisão apoiada, por sua vez, seria aplicável às pessoas com deficiência que, embora capazes, necessitem de auxílio de outrem para decidir sobre determinadas questões.
Nos termos do art. 1.783-A do Código Civil, introduzido pelo art. 116 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a tomada de decisão apoiada consiste exatamente no “processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade”.
Milton Paulo de Carvalho distingue bem a curatela do processo de tomada de decisão apoiada, ao asseverar que “se a deficiência se qualifica pelo fato de a pessoa não conseguir se autodeterminar, o ordenamento lhe conferirá proteção ainda mais densa que aquela deferida a um deficiente capaz, demandando o devido processo legal de curatela. Já quando a pessoa deficiente possui limitações no exercício do autogoverno, mas prescreve de forma precária a aptidão de se expressar e de se fazer compreender, o caminho não será o binômio incapacidade relativa/curatela, mas o procedimento criado pelo Estatuto da tomada de decisão apoiada, em que pessoas com deficiência buscam sua capacidade de exercício em condições de igualdade com os demais” (op. cit., p. 2005).
Imperioso ainda salientar que o art. 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência restringe a curatela apenas aos atos de natureza patrimonial e negocial, excluindo de sua abrangência as decisões relacionadas aos direitos da personalidade e de ordem existencial, como o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
9. Em suma, uma interpretação sistemática e teleológica do Estatuto da Pessoa com Deficiência impõe a conclusão de que as pessoas que não consigam exprimir sua vontade por causa transitória ou permanente – por exemplo, doença mental que reduza seu discernimento –, devem ser consideradas relativamente incapazes, pois em geral conservam sua autonomia para a prática de atos de natureza existencial, relacionados aos direitos da personalidade, a exemplo dos direitos sexuais e reprodutivos, e aqueles relacionados ao planejamento familiar.
Todavia, dependendo do grau de comprometimento das faculdades mentais da pessoa, poderá ela submeter-se à curatela total ou parcial, que abrangerá eminentemente os atos de natureza patrimonial e negocial, ou então optar pelo processo de tomada de decisão apoiada para a prática de atos diversos.
10. E em que pese a supressão do procedimento de interdição do Código Civil pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, com a revogação dos artigos 1.768 a 1.773 do diploma, tem prevalecido o entendimento de que a curatela ainda deve ser instituída mediante processo de interdição, até porque o Código de Processo Civil de 2015 é lei posterior ao Estatuto e regulou o referido procedimento.
Ao que parece, a exclusão da disciplina da interdição do Código Civil visou a retirar a carga negativa normalmente atrelada ao respectivo procedimento.
No entanto, para a instituição de curatela ainda se faz necessário um processo judicial, que segundo Cristiano Chaves de Farias, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto deve ser chamado de “ação de curatela, e não mais ação de interdição, para garantir o império da filosofia implantada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência” (op. cit., p. 240).
Como já adiantado alhures, não se pode desconsiderar que o próprio Código de Processo Civil de 2015, posterior ao Estatuto, regulou o processo de interdição em seus artigos 747 a 758.
Ademais, o nomen juris atribuído à demanda – ação de curatela ou ação de interdição – não apresenta maior relevância. Importa, sim, a existência no ordenamento jurídico de um procedimento detalhado para a instituição de curatela em favor da pessoa com o discernimento mental reduzido e que não possa exprimir sua vontade, a fim de que seus direitos restem plenamente assegurados, e de que o comprometimento de suas faculdades mentais seja idônea e inequivocamente atestado.
No caso concreto afigura-se perfeitamente cabível o prosseguimento da ação de interdição proposta antes da entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência, para que se verifique a alegada necessidade de instituição de curatela em benefício da ré. Afinal, segundo a autora, as capacidades de entendimento e autodeterminação da requerida estariam comprometidas em virtude de doença mental.
11. Na demanda em comento, a prova pericial realizada em 29 de maio de 2015 (fls. 1241/1245) constatou o seguinte acerca do estado mental da interditanda:
“(…) não se comunica, não compreende o que lhe é dito, a sua fala é em voz baixa, com balbucios, tipo salada de palavras. Não tem noção da natureza e finalidade deste exame. Desorientada no tempo e espaço e circunstâncias por desinteresse. As memórias de fixação e evocação, a atenção espontânea e sustentada, estão prejudicadas. Não há relato de distúrbios sensoperceptivos atuais, nem suas atitudes os faz supor. A ideação está prejudicada evidenciando capacidade de abstração, análise e interpretação comprometidas. O pragmatismo, as funções executivas estão deterioradas. As capacidades de julgamento e planejamento estão comprometidas” (fls. 1243).
Observou ainda o expert que “a periciada apresenta perturbação da saúde mental compatível com demência por multi infartos, permanente e progressiva”, e que a enfermidade já era manifesta ao menos desde 03 de junho de 2009, conforme o atestado médico de fls. 107 (fls. 1243/1244).
Concluiu, finalmente, o laudo pericial que “as capacidades de discernimento, entendimento e determinação estão prejudicadas. As funções mentais da periciada não apresentam integridade suficiente para que ela possa gerir a si, nem os seus bens.
Sendo considerada, sob a ótica médico-jurídica psiquiátrica, total e permanentemente incapaz para os atos da vida civil” (fls. 1244).
12. O laudo pericial produzido, na verdade, só corroborou o que os demais elementos de informação trazidos aos autos, em especial o atestado médico de fls. 106, já sinalizavam: que a interditanda apresenta um quadro de senilidade que lhe retira o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil.
O parecer do assistente técnico contratado pela requerida (fls. 1272/1273) critica as conclusões da prova técnica, basicamente sob o argumento de que se fazia necessária a realização de exames de imagem e complementares para a obtenção da conclusão de que a ré padece de demência por multi infartos, afigurando-se insuficiente a realização de exames clínicos para esse fim.
Todavia, não se pode desconsiderar que a ré foi sim submetida também a exames complementares, como atestam os documentos de fls. 112 e 374. Tais exames constataram justamente ter padecido a autora de pequenos infartos intraparenquimatosos/AVC, os quais teriam relação direta com seu quadro de demência.
Ademais, por ocasião do interrogatório judicial da interditanda, não soube ela sequer responder às perguntas sobre seu nome completo, atual endereço e pessoa com quem reside (cf. mídia digital de fls. 1104).
13. Vale ainda lembrar que em casos evidentes de enfermidade ou doença mental que retiram a plena capacidade da pessoa para a prática dos atos da vida civil, os tribunais dispensam até mesmo a realização de prova pericial para sua constatação.
O C. Superior Tribunal de Justiça já asseverou a prescindibilidade da perícia, em casos excepcionais e no exclusivo interesse do interditando, quando houver laudo pericial extrajudicial concludente e interrogatório judicial, de modo a eliminar a mais remota possibilidade de fraude (Resp 253.733-MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves).
Em caso análogo ao presente, este Relator também já asseverou a desnecessidade de prova pericial para atestar a existência de doença mental incapacitante evidente, nos seguintes termos:
“INTERDIÇÃO – Sentença que reconheceu a incapacidade do interditando após interrogatório, dispensando a prova pericial – Elementos de convencimento fidedignos da incapacidade absoluta do interditando, que eliminam a mais remota possibilidade de fraude – Prescindibilidade da prova pericial no caso em tela, a despeito da previsão do art. 1.183 do CPC – Inexigência, ademais, de que os outros filhos do interditando sejam intimados a se manifestar sobre o pedido – Ausência de provas de que a autora ajuizou a presente demanda com finalidade escusa, a permitir a dispensa da hipoteca legal, nos termos do art. 1.190 do CPC – Sentença mantida – Recurso não provido” (Apelação n. 0010616-93.2011.8.26.0084)
14. Logo, a despeito das críticas tecidas pelo assistente técnico da ré à perícia oficial, a conclusão desta deve prevalecer, não só porque foi elaborada por médico idôneo, mas também porque tal prova é que se mostra consentânea com todas as outras produzidas no curso do processo.
A quase total falta de discernimento da requerida para os atos da vida civil foi percebida e retratada nitidamente nos autos, não restando a mais pálida dúvida sobre a inexistência de plena capacidade da interditanda.
Sendo assim, a sentença que determinou a submissão da ré à curatela total deve ser mantida. Ressalvo apenas que em caso de descumprimento das determinações impostas pelo Juízo a quo ao filho da interditanda (que com ela reside), ou de dificuldades no estabelecimento de contato entre a curadora outrora nomeada e a ré, não será devida a institucionalização da última. Trata- se de medida extrema, que só deve ser adotada em benefício do interditanda, e não como forma de sancionar a conduta daqueles que com ela convivem.
Nego provimento ao recurso.
FRANCISCO LOUREIRO
Relator