1ª VRP|SP: Dúvida imobiliária – Recusa de registro de escritura de doação com cláusula de reversão – Afastamento do óbice, pois a cláusula não viola o ordenamento jurídico – Interessados maiores e capazes – Ausência prejuízo a terceiros – Improcedência.
Processo nº 583.00.2008.105272-6
Dúvida imobiliária – Recusa de registro de escritura de doação com cláusula de reversão – Afastamento do óbice, pois a cláusula não viola o ordenamento jurídico – Interessados maiores e capazes – Ausência prejuízo a terceiros – Improcedência.
Vistos.
Cuida-se de dúvida imobiliária suscitada pelo 11º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, por requerimento de R. M. A. e K. B., que pretendem registrar a Escritura Pública de Doação, com reserva de usufruto e com as cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade, inalienabilidade e reversão, lavrada nas Notas do 14º Tabelião de São Paulo, tendo por objeto os imóveis matriculados sob os nºs 106.124, 106.125, 106.126 e 106.127, todos daquela Circunscrição Imobiliária.
Alega o Registrador que a cláusula de reversão segundo a qual o bem doado volta ao patrimônio do doador no caso de extinção de união estável em razão de comprovada ou confessada infidelidade da donatária não tem fundamento jurídico, uma vez que o Código Civil de 2002, em seu art. 547, prevê a cláusula de reversão apenas no caso em que o doador sobrevive ao donatário (fls. 02/04).
Os interessados impugnaram o feito sustentando a validade do ato com fundamento na autonomia privada da vontade e que a cláusula de reversão deve ser interpretada extensivamente e em consonância com a sistemática jurídica vigente (fls. 29/36).
O Ministério Público opinou pela procedência da dúvida aduzindo que se trata de doação modal ou com encargo previsto no artigo 553 do Novo Código Civil, devendo a escritura pública ser retificada (fls. 38/42).
É o relatório.
Fundamento e decido.
O cerne da questão reside em saber se a hipótese de reversão prevista no art. 547, do Código Civil, é ou não taxativa. A norma em exame está assim redigida:
“O doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário”.
Para Nelson Rosenvald, a norma traz rol meramente exemplificativo, e não taxativo:
“… cumpre admitir a possibilidade de prefixação pelo doador de outro evento futuro como marco para a reversão, anterior ao óbito do donatário. Assim como é viável estipular doação sob condição suspensiva, resolutiva e encargo, não encontramos razão para a autonomia privada desenhar a modalidade do termo para a doação” (Código Civil Comentado, Coord. Min. Cezar Peluso, Ed. Manole, p. 431).
Na mesma linha, a doutrina de Carlos Roberto Gonçalves, para quem:
“Nada impede que se convencione a reversão do bem, ainda vivo o donatário, pois nada há de ilícito, ou de contrário ao nosso sistema, determinar que uma doação se resolva, após o decurso de certo tempo ou verificada certa condição. Com afirma Agostinho Alvim, ‘o texto em exame não quis restringir. Apenas aventou uma hipótese'” (Direito Civil Brasileiro, Vol. III, Ed. Saraiva, p. 272).
Uma vez definido que o rol do art. 547, do Código Civil, é exemplificativo, verifica-se, em obséquio ao princípio da especialidade, a natureza de cláusula de reversão da condição imposta na doação. Afinal, a infidelidade nela prevista, assim como a morte anterior do donatário, é evento futuro e incerto.
Não se pode olvidar, outrossim, que:
“Tradicionalmente, desde o direito romano, as pessoas são livres para contratar. Essa liberdade abrange o direito de contratar se quiserem, com quem quiserem e sobre o que quiserem, ou seja, o direito de contratar e de não contratar, de escolher a pessoa com quem fazê-lo e estabelecer o conteúdo do contrato. O princípio da autonomia da vontade se alicerça exatamente na ampla liberdade contratual, no poder dos contratantes de disciplinar os seus interesses mediante acordo de vontades, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Têm as partes a faculdade de celebrar ou não contratos, sem qualquer interferência do Estado. Podem celebrar contratos nominados ou fazer cominações, dando origem aos contratos inonimados” (idem, pág. 20).
Nessa conformidade encontra-se o caso dos autos: ambos os interessados são maiores e capazes, estão de acordo, o objeto é lícito e possível porque não é defeso em lei, e é determinado e suscetível de apreciação econômica.
Ademais, a cláusula em exame, a despeito de incomum, não viola os bons costumes. Acresça-se, por derradeiro, que na escritura pública ficou expresso a necessidade de que a infidelidade seja comprovada ou confessada mediante decisão judicial, garantindo o contraditório e ampla defesa, preceitos de ordem constitucional, além de preservar a integridade do ato de reversão. Por tais razões, o título merece registro.
Diante do exposto, julgo improcedente a dúvida suscitada pelo 11º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, por requerimento de R. M. A. e K. B., para determinar o registro da Escritura Pública de Doação, com reserva de usufruto e com as cláusulas de incomunicabilidade, impenhorabilidade, inalienabilidade e reversão de fls. 10/12.
Oportunamente cumpra-se o artigo 203, II, da Lei de Registros Públicos, e o disposto na portaria-conjunta 01/2008 das 1ª e 2ª Varas de Registros Públicos de São Paulo.
Nada sendo requerido no prazo legal, ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 05 de junho de 2008.
Gustavo Henrique Bretas Marzagão, Juiz de Direito
DOE de 24.06.2008