Artigo: As cotas sociais e o caso do cônjuge não sócio separado de fato, Por Mário Luiz Delgado
PROCESSO FAMILIAR
As cotas sociais e o caso do cônjuge não sócio separado de fato
9 de abril de 2017, 8h10
Por Mário Luiz Delgado
As demandas que envolvem a partilha de empresa constituída na vigência do casamento são extremamente complexas, especialmente no que tange à avaliação das participações sociais.
A dúvida é se, no caso de separação de fato ou de divórcio sem partilha de bens, deve-se considerar o valor das cotas na data da separação ou do divórcio do casal ou na data da efetiva partilha.
A questão foi facejada pelo STJ, no REsp 1.595.775/AP, onde restou decidido que o valor a ser considerado, como o da expressão patrimonial das cotas, para fins de partilha, seria o do montante do capital social integralizado na data da separação de fato[1].
Entretanto, a questão ainda não foi pacificada no ambiente daquela corte superior, tanto que, no julgamento do REsp 1.537.107/PR, o STJ voltou a discutir se o valor de cotas de sociedade, da qual um dos ex-cônjuges era sócio, “e que foi constituída na constância do casamento, devem coincidir com o seu valor histórico da data da ruptura do relacionamento, ou terem os valores fixados, em data posterior, quando da efetiva apuração dos valores atribuídos às cotas e o pagamento do quinhão à ex-cônjuge, não sócia”.
Na ocasião, a ministra relatora encaminhou o julgamento no sentido de que “o valor das cotas de sociedade empresaria deverá sempre refletir o momento efetivo da partilha”.
Portanto, a contenda ainda remanesce em aberto. No voto-vista que proferiu naquela assentada de julgamento, o ministro Marco Aurélio Bellizze reconheceu, expressamente, que “inexiste disciplina legal quanto à data-base para a apuração do quinhão do ex-cônjuge não sócio da empresa”. Não obstante tenha acompanhado a relatora, o ministro Bellizze ressalvou: “(…) Quanto à tese em si, reservo-me para melhor examiná-la em eventual oportunidade futura, notadamente quando outros forem os contornos do caso”.
Entendo que a solução adotada no julgamento do REsp 1.537.107/PR não deve se repetir para a generalidade dos casos, pois levou em conta situações específicas e particulares próprias daquele feito, como bem ressaltou o ministro Bellizze em seu voto. O voto da ministra relatora não examinou, por exemplo, a possibilidade de aplicação do artigo 1.031 do CC/2002[2], que determina, de forma categórica, qual a data para apuração da participação social de sócio que se retira de qualquer sociedade, inclusive da “sociedade conjugal”[3].
Com efeito, é a data da dissolução fática da comunhão de bens que deve constituir o marco para monetarização dos haveres do cônjuge que se retira da sociedade conjugal. A extinção da sociedade conjugal tem como efeito direto e imediato a resolução da subsociedade que se formou entre os cônjuges no tocante às cotas. Dessa forma, em relação ao cônjuge não sócio, a resolução ou liquidação da sociedade ocorre no momento da separação de fato, postergando-se, apenas, o pagamento dos haveres para a ocasião seguinte da partilha. Extinto o regime de bens, não há mais sociedade alguma entre os cônjuges.
Ainda que não se possa aplicar, de forma automática, o regime do artigo 1.031 do Código Civil ao casamento, o fato é que o legislador foi muito claro quando elegeu a data em que a sociedade “termina” como aquela em que se dará a apuração dos haveres. Não apenas no artigo 1.031, quando determina que, “nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, liquidar-se-á com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução”, mas igualmente no artigo 1.672, quando disciplina a apuração dos aquestos com base no patrimônio existente “à época da dissolução da sociedade conjugal”.
Ao ocupar-se da ação de dissolução parcial de sociedade, o Código de Processo Civil igualmente dispôs sobre a possibilidade de o cônjuge do sócio, cujo casamento terminou, “requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio” (CPC/2015, art. 600, parágrafo único). E o legislador processual de 2015 foi taxativo quando decretou, no art. 604, que “para apuração dos haveres, o juiz: I – fixará a data da resolução da sociedade”, bem como no art. 606, cuja dicção ordena que, em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução”[4].
Em outras palavras, constitui comando categórico da lei adjetiva que a apuração do valor das participações sociais, salvo previsão diversa em contrato social ou estatuto, tem que ser feita com base na data da resolução da sociedade. E tais regras, conforme se infere da redação do parágrafo único do artigo 600 do CPC/2015, são aplicáveis também às situações em que o cônjuge do sócio se retira da sociedade conjugal.
A “resolução” da sociedade conjugal não se dá por ocasião da partilha dos bens comuns, mas no momento em que cessada a convivência. Com a separação de fato, o cônjuge se retira, não apenas da sociedade conjugal, mas também da “subsociedade” formada com o consorte em relação à empresa da qual apenas um deles integrava o quadro social. As duas sociedades se extinguem na data da separação de fato e é esta a data em que se devem apurar os haveres.
Entender o contrário, ou seja, apurar o valor das cotas no momento efetivo da partilha, que venha a ocorrer decorrido considerável lapso temporal, além de profundamente injusto em relação ao cônjuge que se manteve à frente da sociedade, nos casos em que a empresa cresceu e se desenvolveu às custas de sua exclusiva labuta, é passível, por outro lado, de ocasionar grave risco ao cônjuge não sócio que, se permanecer atrelado à sociedade, pode vir a ser chamado a responder por prejuízos futuros, decorrentes de fatos verificados muito tempo após o término da sociedade conjugal.
Vale dizer, cria-se um precedente perigoso, no qual o ex-cônjuge, que não compõe a sociedade, mas tem direito de meação sobre a expressão econômica das cotas, estaria sujeito, também, aos prejuízos que a empresa experimentasse por conta da má administração dos sócios. E a consequência desse entendimento seria um permanente e incorrigível desequilíbrio na partilha. Isso porque, caso o valor das cotas, apurado na ocasião da partilha, seja superior ao valor da data da separação, haverá um enriquecimento sem causa do ex-cônjuge não sócio, que não contribuiu nem teve qualquer participação no incremento das atividades da sociedade, depois de dissolvido o vínculo. No entanto, se houver um decréscimo no valor das cotas, o enriquecimento sem causa seria do ex-cônjuge que participa da sociedade, pois dividiria os prejuízos com aquele que nada colaborou para o insucesso da empresa.
Por isso, o cônjuge não sócio, depois de terminada a sociedade conjugal, não pode participar do acréscimo nem do eventual decréscimo do valor das cotas, havidos consecutivamente à separação de fato, sob pena de enriquecimento indevido de um dos ex-cônjuges, o que afrontaria o artigo 884 do Código Civil[5]. Demais disso, considerar o valor atual das cotas prolongaria o regime de bens para além do fim da relação conjugal.
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[1] “(…) O valor do capital social integralizado de determinada empresa é parâmetro adequado para a partilha especialmente quando a separação de fato do casal, ocasião em que finda o regime de bens, ocorre em momento muito próximo à sua constituição.6. Ausência de necessidade de realização de balanço contábil referente a apenas um mês para aferir o valor real a ser partilhado, já que o percentual de participação do recorrido em tão curto período de tempo não justificaria a alteração do critério adotado pelo Tribunal de origem, à luz das provas constantes dos autos, insindicáveis no presente momento processual” (REsp 1.595.775/AP, rel. ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 9/8/2016, DJe 16/8/2016).
[2] Art. 1.031. Nos casos em que a sociedade se resolver em relação a um sócio, o valor da sua quota, considerada pelo montante efetivamente realizado, liquidar-se-á, salvo disposição contratual em contrário, com base na situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado.
[3] O voto-vista do ministro Bellizze nesse ponto foi cirúrgico: “Logo, uma equiparação das situações com vistas a aplicar o regime do art. 1.031 do Código Civil para casos como o presente depende de criteriosa reflexão, que só pode ser efetuada em hipótese que não possui os contornos verificados neste processo”.
[4] Art. 606. Em caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.
[5] Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Fonte: Conjur