Artigo: Reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva (parte 2), por José Fernando Simão

PROCESSO FAMILIAR

Reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva (parte 2)

14 de maio de 2017, 8h01

Em nossa última coluna da ConJur, explicamos que o Tribunal de Justiça de Pernambuco, de maneira pioneira, admitiu o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva e que o provimento 9 de 2013 foi copiado por diversos Tribunais do Brasil.

É de se ressaltar que o Tribunal de Justiça de São Paulo, na contramão do Direito de Família da atualidade, ignorando a realidade decorrente da socioafetividade, criou um procedimento assistencial sem qualquer base jurídica denominado “apadrinhamento afetivo” e “apadrinhamento financeiro”. O provimento CG 36 de 2014[1] dispõe que:

Artigo 2º – Apadrinhamento afetivo é um programa para crianças e adolescentes acolhidos institucionalmente, com poucas possibilidades de serem adotados, que tem por objetivo criar e estimular a manutenção de vínculos afetivos, ampliando, assim, as oportunidades de convivência familiar e comunitária.

§ 1º: O apadrinhamento afetivo pressupõe contato direto entre o “padrinho” e o “apadrinhado”, inclusive com autorização para atividades fora do serviço de acolhimento.

§ 2º: Tratando-se de crianças e adolescentes com pouca ou nenhuma perspectiva de adoção, eventual interesse adotivo por parte do “padrinho” não deverá ser considerado burla ao cadastro de pretendentes à adoção, que consultado anteriormente resultou em resposta negativa.

Sobre o apadrinhamento financeiro temos:

“Artigo 3º– Apadrinhamento financeiro consiste em contribuição econômica para atender as necessidades de uma criança ou adolescente acolhidos institucionalmente, sem criar necessariamente com ela vínculos afetivos.

Parágrafo único: O apadrinhamento financeiro não pressupõe contato direto entre “padrinho” e “apadrinhado”, podendo, a critério do “padrinho” ser convertido em apadrinhamento afetivo, com ou sem prejuízo do apadrinhamento financeiro”.

Note-se que os institutos não têm natureza jurídica, não geram efeitos jurídicos, são atos de solidariedade humana transmutados em Provimento da Corregedoria. E mais. Tais atos sempre existiram e nunca precisaram de “regulamentação” por Provimento da Corregedoria. O fato de o artigo 2º prever que se houver interesse do padrinho em adotar o menor isso não implica burla ao cadastro de adoção (parágrafo 2º) é indicação, apenas, de que, na adoção, prevalece o melhor interesse do menor. A orientação do STJ é pacífica: na adoção o que efetivamente prevalece é o melhor interesse da criança, ainda que em detrimento do Cadastro de Adoção[2]

O que pretende o TJ-SP é estabelecer política pública de cuidado de menores que estão em Instituição de Acolhimento (Provimento CG 40 de 2015).[3] Quanto à socioafetividade, a única regra que existe no Provimento 36 de 2014 trata do procedimento judicial que correrá na Vara da Infância e da Juventude.[4]

Note-se que em razão da disciplina que os Tribunais, em regra, deram ao tema, o Conselho Nacional de Justiça, atendendo a um pedido de providências de autoria do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, em 14 de março de 2017, decidiu[5]

“Em analogia ao disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 42, caput e §§ 1º da Lei n. 8069/1990), revela-se imprescindível que o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva somente seja possibilitado aos maiores de dezoito anos de idade, não podendo realizar o mencionado procedimento os ascendentes e os irmãos do adotante, sob pena de gerar confusão entre os graus de parentesco.

Os pretensos pai e filho, ainda, devem guardar diferença de idade mínima de 16 anos, à semelhança do que dispõe o art. 42, § 3º, da Lei nº 8.069/1990 (“O adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho que o adotando”).

O reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva, dependerá, ademais, do consentimento da mãe e do filho maior de doze anos, consoante inteligência dos arts. 45, caput e seu § 2º, da Lei n. 8.069/90).

Em caso de falecimento ou circunstância especial que impeça o expresso consentimento da mãe ou do filho (a exemplo da incapacidade), o procedimento deverá seguir o trâmite judicial.

Dispensar-se-á, por óbvio, estagio de convivência com a criança ou adolescente. Exigir-se-á, contudo, a demonstração inequívoca da existência de relação de pai e filho baseada na afetividade”.

É de se perguntar então se, por orientação do CNJ seguiremos os mesmos requisitos da adoção para o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva, quais seriam as diferenças entre os institutos?

A adoção será utilizada quando a criança ou adolescente não tiver convívio com os futuros pais adotivos. Na hipótese de pessoas cadastradas no Cadastro Nacional de Adoção em que se buscam menores para adoção, em que não há convívio prevalece o processo judicial de adoção. Não se reconhece paternidade socioafetiva nas situações em que não há afeto ou convívio.

E se a criança já conviver com aquele homem e/ou aquela mulher na qualidade fática de filho, mas sem ter sido registrado como tal? Nessa hipótese os pais podem optar pela adoção tradicional ou reconhecimento da paternidade socioafetiva extrajudicial. O vínculo de afeto já está formado. Contudo, há uma ressalva que passo a explicar.

A adoção rompe os vínculos com a família biológica, salvo para fins de impedimentos matrimoniais. Assim, se houver adoção pressupõe-se que haverá destituição do poder familiar quanto aos genitores biológicos e isso exige necessariamente um procedimento judicial. Não se pode destituir alguém do poder familiar sem contraditório e ampla defesa. A criança ou adolescente ganha uma nova família e se desliga da antiga. E mais, para que haja a destituição devem haver fortes motivos tais como violência doméstica, abuso de diversas ordens ou o mais completo abandono e total rompimento por parte daquele que perderá o poder familiar.

Se houver reconhecimento de parentalidade socioafetiva pode haver uma soma, sem qualquer substituição. Foi o que admitiu o STF com a Repercussão Geral 622. Assim, a criança ganha um pai ou uma mãe além dos biológicos. Há apenas uma adição. Nessa hipótese, como não há destituição do poder familiar, a via extrajudicial é adequada.

É de se perguntar se uma criança ou adolescente que tenha um pai e uma mãe em sua certidão de nascimento poderia ser reconhecida extrajudicialmente por seu pai ou mãe afetivo pela via extrajudicial. Em meu sentir a resposta deve ser positiva, desde que ouvidos os genitores registrais e desde que esses concordem com o reconhecimento. Se isso não ocorrer, se houver oposição, só a via judicial restará ao interessado em ter o afeto e seus efeitos reconhecidos, pois tal decisão poderá ter como efeito a multiparentalidade.

[1] http://esaj.tjsp.jus.br/gcnPtl/abrirDetalhesLegislacao.do?cdLegislacaoEdit=135491&flBtVoltar=N
[2] RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ADOÇÃO  INTUITU  PERSONAE.  PRETENDENTE  NÃO INSCRITA NO CADASTRO DE ADOTANTES.   IMPOSSIBILIDADE   JURÍDICA   DO  PEDIDO.  APLICAÇÃO  DO PRINCÍPIO  DO  MELHOR INTERESSE DO MENOR. ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO  DA  CRIANÇA COM A PRETENSA ADOTANTE NÃO CADASTRADA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (REsp 1628245/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 13/12/2016, DJe 15/12/2016)
[3] http://esaj.tjsp.jus.br/gcnPtl/abrirDetalhesLegislacao.do?cdLegislacaoEdit=141110&flBtVoltar=N
[4] Artigo 4º – O pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva, no âmbito da Infância e da Juventude, deverá observar:
I – em relação a adolescentes e crianças maiores de dois anos de idade, o rito previsto na Lei nº. 8.560, de 29 de dezembro de 1992;
II – em relação a crianças menores de dois anos de idade, o procedimento previsto para adoção normatizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, observando se o referido pedido não constitui fraude ao cadastro de pretendentes à adoção e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
[5] http://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/Decisao%20socioafetividade.pdf

Por José Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 14 de maio de 2017, 08h01