Usucapião administrativa – Lei 11.977, de 2009
Usucapião administrativa – Lei 11.977, de 2009
Des. Venício Salles*
A Lei 11.977/09 concebe uma novidade capaz de provocar muita disputa e discussão no mundo jurídico, pois estrutura uma forma rápida e aparentemente eficaz de usucapião administrativa, que prescinde, por óbvio, de qualquer intervenção judicial, incumbindo à Administração Pública, mediante impulso próprio, assim como de interessados e entidades privadas (art. 50), prerrogativas para, através da demarcação e da legitimação de posse – instrumentos voltados à outorga da titulação dominial – , declarar o direito de propriedade privada beneficiando população de baixa renda.
Observe-se que nosso sistema normativo sempre se exigiu a intervenção do Poder Judiciário na resolução das lides que envolvem questões relativas à conquista, alteração, ou supressão do direito de propriedade, e o faz justamente por afetar o foco mais relevante dos direitos individuais privados.
O “princípio da supremacia da jurisdição” sempre atuou no sentido de se exigir a intervenção do Judiciário na superação das contendas envolvendo o direito de propriedade privada. O elenco de ações concebidas pela legislação infraconstitucional fornece a firme indicação desta reserva jurisdicional, tanto que a própria ação expropriatória, prevista no Decreto-lei 3.365/41 como instrumento constitucional pelo qual o Poder Público declara sua supremacia de interesse sobre o privado, excutindo o bem privado, não prescinde da participação do Judiciário, assim como é exigida a intervenção da Justiça em todas as formas de execução forçada que possibilitam a constrição de bens imóveis.
Anote-se, também, as ações destinadas à resolução de divisões e partilhas de bens entre herdeiros, sócios e proprietários, bem como as ações reinvindicató rias e discriminatórias de bens públicos, assim como a própria ação de usucapião, promove e declara originalmente o direito de propriedade dominial decorrente de posse longeva.
Não se altera, modifica ou transfere a propriedade privada sem a força de um ato jurisdicional, dicção extraída do inciso XXII, do art. 5º, que consagra, como direito fundamental e sem restrições maiores, o direito de propriedade.
Em conclusão, ausente a vontade do titular do direito, o trespasse imobiliário depende de sua inserção em ambiente não judicial.
Mesmo assim, não se divisa inconstitucionalida de no texto Lei 11.977/2009, pois esta não estabelece qualquer forma coercitiva de transferência patrimonial, na medida em que preserva o percurso judicial sempre que houver disputa entre possuidores e proprietários.
A usucapião administrativa representa uma forma para o reconhecimento do perecimento do direito de propriedade pela inércia ou descaso de seu titular, por exigir que o proprietário seja notificado, pessoal ou fictamente, quando da averbação do auto de demarcação, podendo promover impugnação. Ademais, dispõe de cinco anos, contados do registro da legitimação de posse, para reclamar ou reivindicar sua propriedade.
A nova lei representa um auspicioso passo no sentido da desburocratização do setor urbanístico, podendo impulsionar, se convenientemente interpretada, o destravamento dos processos e procedimentos necessários para a regularização das cidades.
Estranha-se que a providência tenha vindo inicialmente montada no corpo de Medida Provisória, pois a questão urbana, que é secular, conquanto necessária e impregnada de certa urgência, não atende ou cumpre os pressupostos constitucionais que autorizam produção legislativa direta pelo Executivo. O processo legislativo democrático exige respeito e a tripartição não poderia ser tão vilipendiada pelo açodamento do Chefe de Estado.
Evidente a ausência de uma discussão ampla, com a participação de interlocutores à altura, para esclarecer, reivindicar, interferir, modificar ou acrescentar sugestões e orientações que poderiam afastar pequenas máculas e desvios, dando melhores condições ao projeto e não submetendo o interprete a um grandioso esforço para a superação de entraves e dificuldades. Ademais, a discussão parlamentar daria maior legitimidade ao texto normativo.
A MP 459/2009, convertida na Lei 11.977/2009, tem méritos que devem ser destacados, na medida em que concebe uma forma eficiente para a tramitação da usucapião administrativa, que tem início, sensatamente, na regularização dos parcelamentos do solo irregulares ou clandestinos, mediante o instrumento denominado, corretamente, de demarcação.
A regularização fundiária contempla parcelamentos de interesse social ou interesse específico. No primeiro caso a área deverá atender a um dos três requisitos abaixo:
1. ocupações que cumpram as exigências do usucapião constitucional previsto no art. 183 da lei maior, que são:
o ocupação pacifica por mais de cinco anos;
o áreas de até 250 m²;
o utilizadas como única moradia;
o beneficiando famílias que não tenham propriedade imobiliária urbana ou rural;
2. que a área a ser demarcada esteja situada em zona de interesse social – ZEIS, assim prevista em lei municipal ou no plano diretor.
3. áreas declaradas pelo Poder Público de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social.
As áreas de interesse específico devem envolver o mesmo sentido, prestigiando a população carente ou situações necessárias para a regularização da cidade. Serão peculiaridades constatadas pelas autoridades Municipais, Estaduais ou Federais que determinarão o interesse específico, ato que poderá ser materializado por simples “ato administrativo”.
Regularização de interesse social
O processo de regularização fundiária é concebido, em primeiro lugar, para a regularização de áreas de interesse sócial, que deve ter início com a confecção do projeto previsto no art. 51. A documentação deve ser montada pelo proponente, seja o Poder Público ou o particular. A lei 11.977/2009 legitima a União, Estados e Municípios a dar início ao processo de regularização, assim como aos beneficiários, individual ou coletivamente considerados, e entidades civis que tenham como finalidade o desenvolvimento urbano, como cooperativas habitacionais e associações de moradores.
Um único beneficiário poderá dar inicio ao processo de regularização fundiária ou reclamar seu estudo perante a própria Municipalidade, focando sempre uma situação geral, de uma região ou de um segmento populacional, não podendo postular por uma regularização singular.
O projeto poderá ser instruído com planta e memorial descritivo que individualize a área regularizanda, bem como cada uma das frações da ocupação, tratadas como “lotes”. Neste caso, deve trazer precisa indicação sobre as vias, praças e eventuais áreas institucionais.
O art. 51, no entanto, não exige rigor neste primeiro, tanto que o pedido poderá ser feito pela forma de simples requerimento, com a localização da área, conquistada mediante a indicação do nome das vias públicas que a envolvem, e a indicação das ocupações por seus endereços. As áreas privadas podem ser obtidas do lançamento fiscal ou de medição feita pelos próprios interessados. O critério legal é voltado à instigação da regularização, afastando exigências que possam trazer maiores dificuldades.
O projeto quando feito com todo o rigor e atenção aos interesses maiores da cidade, deverá apresentar solução ou sugestões sobre a sustentabilidade urbanística, social e ambiental da área, indicando a funcionalidade do local como núcleo habitacional, resolvendo ou propondo resolver questões ligadas ao adensamento populacional superveniente, mormente em termos de vias de acesso e escoamento, e a disponibilização de transporte público e locais destinados à edificação de equipamentos públicos.
Questões ambientais também poderão ser atendidas, mormente quando a área regularizanda estiver situada em áreas de preservação ou de mananciais. Nestes casos, a proposta pode conter metas necessárias à melhoria, conservação ou preservação das condições naturais, evitando a poluição das águas e manutenção a cobertura florística, empregando todos os instrumentos necessários, inclusive as “compensações urbanísticas” (que tem sentido mais financeiro, decorrendo do principio do poluidor pagador).
Efetivamente que, por se tratar de regularização fundiária, que tem como propósito primeiro fazer superar dificuldades da população de baixa renda, não há como se cobrar maior rigor na confecção do projeto ou no atendimento das exigências. Portanto, as disposições legais devem ser pensadas e lidas com uma carga de flexibilização, própria do sentido da “função social da propriedade”, relativizando o cumprimento das posturas urbanísticas e prescrições ambientais, em atenção ao propósito da regularização que é o de obter a melhoria ou o aprimoramento dos núcleos habitacionais consolidados.
As exigências devem levar em conta padrões ditados pela razoabilidade, observando, em primeiro lugar, a situação de fato e as peculiaridades próprias e intrínsecas de cada região.
Mesmo assim, em sendo viável, deve ser exigida a contrapartida por meio de “compensações urbanísticas e ambientais”, com o destaque de áreas e espaços próximos, que permitam a implantação de praças e parques. Essas compensações poderão ser apresentadas pelo Poder Público, que dispõe do mecanismo da desapropriação por interesse social, para conquistar o domínio de áreas desocupadas ou semiutilizadas. Excepcionalmente, poderá optar por simples “apossamento administrativo” quando exista prova sólida do abandono, comprovado, por exemplo, pela inadimplência fiscal.
O mais conveniente é que o projeto do art. 51 seja preparado de modo a espelhar a real situação consolidada, destacando, quando possível, as obras de urbanização em execução ou projetadas e as potencialidades que podem ser consideradas em termos de sustentabilidade, item que deve atender aos padrões aceitos pelo Município, pois a este foi franqueada a redução (motivadamente) dos percentuais de áreas destinadas ao uso público, relativamente às vias, praças e áreas institucionais (art. 52).
Esta franquia, conferida ao Município, guarda a lógica do Plano Diretor, pois é a lei local que deve prever a forma de crescimento das cidades em atenção às condições de fato. No caso de regularização, será igualmente o Município que poderá reduzir as exigências urbanísticas e ambientais em atenção às peculiaridades verificadas. A viabilidade da regularização depende apenas da constatação de que a urbanização, ou a simples titulação, poderão alavancar melhorias para a população.
Independentemente de quem impulsione a regularização, a edificação e realização da infra-estrutura básica, assim como as vias de circulação (art. 2º, § 6º, Lei 6.766/73), são de responsabilidade do Poder Público local. A não conclusão destas obras não impede a continuidade do procedimento de regularização tendente à titulação (art. 55).
Observe-se que o projeto feito com adequada técnica, reproduzido em plantas corretamente elaboradas e acompanhado por memoriais, poderá ser utilizado integralmente nas três etapas da regularização, que englobam:
1. a apresentação inicial do projeto;
2. envolve a etapa necessária para a averbação da “demarcação”;
3. e o registro da legitimação de posse.
A presente lei, que não instiga a burocratização, permite, desde que as informações sejam completas e fidedignas, que o mesmo estudo acompanhe o processo até o seu encerramento, se tornando desnecessária a renovação de informações, plantas e memoriais.
Licenciamento ambiental e urbanístico
Uma vez concluído o projeto deve ser submetido à aprovação Municipal, que dotada de Conselho do Meio Ambiente, ostenta poder para conferir o licenciamento ambiental e urbanístico.
Observe-se que os parâmetros urbanísticos e ambientais devem ser estabelecidos em função das características da ocupação e da área ocupada (art. 54), o que confirma que as áreas de ocupação consolidadas devem permitir o licenciamento possível, que prescinde do atendimento dos padrões legais mínimos.
Mesmo as áreas de preservação permanente, como, por exemplo, as áreas de mananciais ocupadas antes de 2008, podem obter licenciamento, desde que as condições ambientais previstas no parcelamento, experimentem melhorias ambientais e urbanísticas em função da intervenção provocada pela regularização (§ 1º e 2º, do art. 54).
Auto de demarcação
Apresentado o projeto e obtido o licenciamento o Município deverá, em prazo razoável, expedir auto de demarcação que deverá ser instruído com os documentos que integraram o projeto. Caso esses se revelem insuficientes, a Municipalidade deverá confeccionar duas novas plantas. A primeira refletirá apenas a área regularizanda, com todas as indicações necessárias para a descrição integral da ocupação, assim como a individualização de cada lote e dos espaços públicos.
O georreferenciamento , em atenção ao principio da economicidade e utilidade, somente deverá ser adotado quando a área não disponha de pontos seguros de amarração.
A segunda será a planta de sobreposição, que deverá reproduzir a área da ocupação em confronto com as indicações da descrição e medidas constantes dos títulos dominiais atingidos. Esta planta deverá ser acompanhada( s) pela(s) certidão(ões) da(s) matricula(s) ou transcrição(ões) atingida(s). A planta de sobreposição deverá indicar se a área regularizanda atinge integralmente ou parcialmente a gleba ou se desfalca mais de uma matrícula ou transcrição.
Não é exigido do Município grande rigor no cumprimento deste item, pois o perfeito enquadramento da área regularizanda aos padrões registrais foi atribuído ao Oficial do Registro de Imóveis. As dúvidas ou incertezas quanto ao mais próprio enquadramento não poderão obstar a expedição do “auto de demarcação”.
Voltamos aqui a ressaltar o sentido da função social da propriedade, que inverte as prioridades, prestigiando o interesse coletivo em contrapartida com o interesse individual. Prevalece, destarte, o impulso para regularizar que não pode ser frustrado pela imperfeita descrição tabular das antigas glebas.
Desta forma, a planta de sobreposição deverá refletir a área regularizanda e a(s) gleba(s) a ser(em) desfalcada(s) , em atenção a critérios e padrões de probabilidade, mormente em face das imperfeições constantes do fólio real. Reafirma-se que a incerteza tabular não pode prejudicar ou emperrar o processo de regularização fundiária.
Nos casos em que a área retificanda venha a confrontar com área pública, salvo quando esta for Municipal, o órgão responsável será notificado previamente para a discriminação de sua propriedade. A previsão encerra uma forma de ação discriminatória incidental inserida na via administrativa da regularização fundiária.
Concluído a instrução do auto de demarcação, este deverá ser remetido ao Registro de Imóveis para que o oficial registrador realize suas buscas visando identificar o proprietário e a(s) matricula(s) ou transcrição(ões) atingidas pelo imóvel demarcado. Caso as dúvidas manifestadas pela Municipalidade não sejam superadas pelo Oficial Registrador, este deverá desfalcar todas as matrículas ou transcrições capazes de abrigar a área regularizanda, mediante averbação que conste todo o histórico. O(s) proprietário( s) será(ão) notificado(s) pessoalmente no endereço constante do registro de imóveis ou naquele fornecido pelo Município extraído do cadastro do IPTU. Caso não seja localizado, o proprietário será notificado por edital. H avendo mais de uma Serventia Imobiliária envolvida, o auto de demarcação deve ser expedido em duplicidade ou em cópia, enviado a ambos os ofícios.
Decorrido o prazo de 15 dias da notificação pessoal ou ficta, a demarcação deve ser averbada junto à(s) matricula(s) ou transcrição(ões).
Da impugnação
O proprietário tabular poderá impugnar perante a Serventia Imobiliária, apresentando seus motivos e fundamentos, caso em que a Municipalidade será chamada para apresentar suas razões em sessenta (60) dias, podendo corrigir o auto de demarcação ou excluir a área impugnada. Nesse caso a regularização fundiária continuará em face da área não questionada.
O Oficial de Registro de Imóveis possui prerrogativa legal para tentar o “acordo”, mas não poderá lançar qualquer tipo de decisão, nem que se limite exclusivamente a critérios técnicos. O conflito de interesse encerra o percurso administrativo, franqueando à Municipalidade ou ao interessado o ingresso judicial. Os interessado poderão, eventualmente, optar pelo caminho do usucapião judicial, preferivelmente plúrimo, alicerçado nas informações constantes da “demarcação” ou no projeto.
Da averbação do auto de demarcação
Averbado o auto de demarcação (art. 58), com ou sem desfalque, o Poder Público deverá providenciar novo projeto ou ratificar as plantas e memoriais já elaborados.
O novo projeto determinará o descerramento de nova matricula considerando o fracionamento do solo, indicando a área total, cada um dos lotes e a áreas públicas (art. 66, I), providência que confere mais certeza à regularização, gerando segurança jurídica ao permitir melhor exame registral, afastando as incertezas determinadas pela imperfeição descritiva das antigas glebas. Como proprietários serão anotados todos os notificados.
Legitimação de posse
O novo projeto determinará o descerramento de nova matricula considerando o fracionamento do solo, indicando a área total, cada um dos lotes e a áreas públicas (art. 66, I), providência que confere maior certeza à regularização, gerando segurança jurídica ao permitir melhor exame registral, afastando as incertezas determinadas pela imperfeição descritiva das antigas glebas. Como proprietários serão anotados todos os notificados.
Aberta nova matricula ou registrando- se em matricula ou transcrição preexistentes, a Municipalidade, procedendo a consulta a seus cadastros constantes do processo de regularização, passará a expedir os títulos de legitimação de posse, que poderão ser registrados na matricula-mãe.
Serão agraciados pelo titulo de legitimação de posse apenas as ocupações de frações inferiores a 250 metros quadrados, mantidas por famílias que residam no local, e não disponham de outro imóvel ou sejam foreiros ou concessionários. Também não poderá receber o título aquele que já tenha se beneficiado de igual favor. O título de legitimação de posse permite o REGISTRO, a despeito de ser direito inerente à posse e não estar, ao que se sabe, discriminado no art. 167 da Lei de Registros Públicos.
Para esse efeito o tempo anterior de posse não pode ser considerado ou contado, devendo o possuidor aguardar cinco (5) anos para requerer a conversão de sua posse em propriedade junto ao Registro Imobiliário, que neste caso inaugurará nova matricula para a unidade autônoma.
Regularização fundiária de interesse específico
São áreas de interesse específico aquelas que, a despeito de não serem enquadradas como ZEIS, ou não atenderem aos padrões de interesse social próprio, conquistam sentido organizacional de interesse para a cidade.
Nesses casos o projeto do art. 51 deve ser apresentado pelo(s) interessado( s), para a devida análise pela autoridade licenciadora. Aparentemente, existe maior rigor para o projeto das áreas de interesse específico, que começam com a observância das restrições à ocupações de áreas de preservação permanente, sendo exigido contrapartidas e compensações urbanísticas e ambientais, quando necessário.
A responsabilidade pela implantação do sistema viário, da infraestrutura básica, dos equipamentos comunitários, e das compensações urbanísticas, deverão ser definidas pela autoridade licenciadora, sendo admitido o compartilhamento dos custos e investimentos, participando a comunidade beneficiada.
Venício Salles é Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Des. Venício Salles*
A Lei 11.977/09 concebe uma novidade capaz de provocar muita disputa e discussão no mundo jurídico, pois estrutura uma forma rápida e aparentemente eficaz de usucapião administrativa, que prescinde, por óbvio, de qualquer intervenção judicial, incumbindo à Administração Pública, mediante impulso próprio, assim como de interessados e entidades privadas (art. 50), prerrogativas para, através da demarcação e da legitimação de posse – instrumentos voltados à outorga da titulação dominial – , declarar o direito de propriedade privada beneficiando população de baixa renda.
Observe-se que nosso sistema normativo sempre se exigiu a intervenção do Poder Judiciário na resolução das lides que envolvem questões relativas à conquista, alteração, ou supressão do direito de propriedade, e o faz justamente por afetar o foco mais relevante dos direitos individuais privados.
O “princípio da supremacia da jurisdição” sempre atuou no sentido de se exigir a intervenção do Judiciário na superação das contendas envolvendo o direito de propriedade privada. O elenco de ações concebidas pela legislação infraconstitucional fornece a firme indicação desta reserva jurisdicional, tanto que a própria ação expropriatória, prevista no Decreto-lei 3.365/41 como instrumento constitucional pelo qual o Poder Público declara sua supremacia de interesse sobre o privado, excutindo o bem privado, não prescinde da participação do Judiciário, assim como é exigida a intervenção da Justiça em todas as formas de execução forçada que possibilitam a constrição de bens imóveis.
Anote-se, também, as ações destinadas à resolução de divisões e partilhas de bens entre herdeiros, sócios e proprietários, bem como as ações reinvindicató rias e discriminatórias de bens públicos, assim como a própria ação de usucapião, promove e declara originalmente o direito de propriedade dominial decorrente de posse longeva.
Não se altera, modifica ou transfere a propriedade privada sem a força de um ato jurisdicional, dicção extraída do inciso XXII, do art. 5º, que consagra, como direito fundamental e sem restrições maiores, o direito de propriedade.
Em conclusão, ausente a vontade do titular do direito, o trespasse imobiliário depende de sua inserção em ambiente não judicial.
Mesmo assim, não se divisa inconstitucionalida de no texto Lei 11.977/2009, pois esta não estabelece qualquer forma coercitiva de transferência patrimonial, na medida em que preserva o percurso judicial sempre que houver disputa entre possuidores e proprietários.
A usucapião administrativa representa uma forma para o reconhecimento do perecimento do direito de propriedade pela inércia ou descaso de seu titular, por exigir que o proprietário seja notificado, pessoal ou fictamente, quando da averbação do auto de demarcação, podendo promover impugnação. Ademais, dispõe de cinco anos, contados do registro da legitimação de posse, para reclamar ou reivindicar sua propriedade.
A nova lei representa um auspicioso passo no sentido da desburocratização do setor urbanístico, podendo impulsionar, se convenientemente interpretada, o destravamento dos processos e procedimentos necessários para a regularização das cidades.
Estranha-se que a providência tenha vindo inicialmente montada no corpo de Medida Provisória, pois a questão urbana, que é secular, conquanto necessária e impregnada de certa urgência, não atende ou cumpre os pressupostos constitucionais que autorizam produção legislativa direta pelo Executivo. O processo legislativo democrático exige respeito e a tripartição não poderia ser tão vilipendiada pelo açodamento do Chefe de Estado.
Evidente a ausência de uma discussão ampla, com a participação de interlocutores à altura, para esclarecer, reivindicar, interferir, modificar ou acrescentar sugestões e orientações que poderiam afastar pequenas máculas e desvios, dando melhores condições ao projeto e não submetendo o interprete a um grandioso esforço para a superação de entraves e dificuldades. Ademais, a discussão parlamentar daria maior legitimidade ao texto normativo.
A MP 459/2009, convertida na Lei 11.977/2009, tem méritos que devem ser destacados, na medida em que concebe uma forma eficiente para a tramitação da usucapião administrativa, que tem início, sensatamente, na regularização dos parcelamentos do solo irregulares ou clandestinos, mediante o instrumento denominado, corretamente, de demarcação.
A regularização fundiária contempla parcelamentos de interesse social ou interesse específico. No primeiro caso a área deverá atender a um dos três requisitos abaixo:
1. ocupações que cumpram as exigências do usucapião constitucional previsto no art. 183 da lei maior, que são:
o ocupação pacifica por mais de cinco anos;
o áreas de até 250 m²;
o utilizadas como única moradia;
o beneficiando famílias que não tenham propriedade imobiliária urbana ou rural;
2. que a área a ser demarcada esteja situada em zona de interesse social – ZEIS, assim prevista em lei municipal ou no plano diretor.
3. áreas declaradas pelo Poder Público de interesse para implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social.
As áreas de interesse específico devem envolver o mesmo sentido, prestigiando a população carente ou situações necessárias para a regularização da cidade. Serão peculiaridades constatadas pelas autoridades Municipais, Estaduais ou Federais que determinarão o interesse específico, ato que poderá ser materializado por simples “ato administrativo”.
Regularização de interesse social
O processo de regularização fundiária é concebido, em primeiro lugar, para a regularização de áreas de interesse sócial, que deve ter início com a confecção do projeto previsto no art. 51. A documentação deve ser montada pelo proponente, seja o Poder Público ou o particular. A lei 11.977/2009 legitima a União, Estados e Municípios a dar início ao processo de regularização, assim como aos beneficiários, individual ou coletivamente considerados, e entidades civis que tenham como finalidade o desenvolvimento urbano, como cooperativas habitacionais e associações de moradores.
Um único beneficiário poderá dar inicio ao processo de regularização fundiária ou reclamar seu estudo perante a própria Municipalidade, focando sempre uma situação geral, de uma região ou de um segmento populacional, não podendo postular por uma regularização singular.
O projeto poderá ser instruído com planta e memorial descritivo que individualize a área regularizanda, bem como cada uma das frações da ocupação, tratadas como “lotes”. Neste caso, deve trazer precisa indicação sobre as vias, praças e eventuais áreas institucionais.
O art. 51, no entanto, não exige rigor neste primeiro, tanto que o pedido poderá ser feito pela forma de simples requerimento, com a localização da área, conquistada mediante a indicação do nome das vias públicas que a envolvem, e a indicação das ocupações por seus endereços. As áreas privadas podem ser obtidas do lançamento fiscal ou de medição feita pelos próprios interessados. O critério legal é voltado à instigação da regularização, afastando exigências que possam trazer maiores dificuldades.
O projeto quando feito com todo o rigor e atenção aos interesses maiores da cidade, deverá apresentar solução ou sugestões sobre a sustentabilidade urbanística, social e ambiental da área, indicando a funcionalidade do local como núcleo habitacional, resolvendo ou propondo resolver questões ligadas ao adensamento populacional superveniente, mormente em termos de vias de acesso e escoamento, e a disponibilização de transporte público e locais destinados à edificação de equipamentos públicos.
Questões ambientais também poderão ser atendidas, mormente quando a área regularizanda estiver situada em áreas de preservação ou de mananciais. Nestes casos, a proposta pode conter metas necessárias à melhoria, conservação ou preservação das condições naturais, evitando a poluição das águas e manutenção a cobertura florística, empregando todos os instrumentos necessários, inclusive as “compensações urbanísticas” (que tem sentido mais financeiro, decorrendo do principio do poluidor pagador).
Efetivamente que, por se tratar de regularização fundiária, que tem como propósito primeiro fazer superar dificuldades da população de baixa renda, não há como se cobrar maior rigor na confecção do projeto ou no atendimento das exigências. Portanto, as disposições legais devem ser pensadas e lidas com uma carga de flexibilização, própria do sentido da “função social da propriedade”, relativizando o cumprimento das posturas urbanísticas e prescrições ambientais, em atenção ao propósito da regularização que é o de obter a melhoria ou o aprimoramento dos núcleos habitacionais consolidados.
As exigências devem levar em conta padrões ditados pela razoabilidade, observando, em primeiro lugar, a situação de fato e as peculiaridades próprias e intrínsecas de cada região.
Mesmo assim, em sendo viável, deve ser exigida a contrapartida por meio de “compensações urbanísticas e ambientais”, com o destaque de áreas e espaços próximos, que permitam a implantação de praças e parques. Essas compensações poderão ser apresentadas pelo Poder Público, que dispõe do mecanismo da desapropriação por interesse social, para conquistar o domínio de áreas desocupadas ou semiutilizadas. Excepcionalmente, poderá optar por simples “apossamento administrativo” quando exista prova sólida do abandono, comprovado, por exemplo, pela inadimplência fiscal.
O mais conveniente é que o projeto do art. 51 seja preparado de modo a espelhar a real situação consolidada, destacando, quando possível, as obras de urbanização em execução ou projetadas e as potencialidades que podem ser consideradas em termos de sustentabilidade, item que deve atender aos padrões aceitos pelo Município, pois a este foi franqueada a redução (motivadamente) dos percentuais de áreas destinadas ao uso público, relativamente às vias, praças e áreas institucionais (art. 52).
Esta franquia, conferida ao Município, guarda a lógica do Plano Diretor, pois é a lei local que deve prever a forma de crescimento das cidades em atenção às condições de fato. No caso de regularização, será igualmente o Município que poderá reduzir as exigências urbanísticas e ambientais em atenção às peculiaridades verificadas. A viabilidade da regularização depende apenas da constatação de que a urbanização, ou a simples titulação, poderão alavancar melhorias para a população.
Independentemente de quem impulsione a regularização, a edificação e realização da infra-estrutura básica, assim como as vias de circulação (art. 2º, § 6º, Lei 6.766/73), são de responsabilidade do Poder Público local. A não conclusão destas obras não impede a continuidade do procedimento de regularização tendente à titulação (art. 55).
Observe-se que o projeto feito com adequada técnica, reproduzido em plantas corretamente elaboradas e acompanhado por memoriais, poderá ser utilizado integralmente nas três etapas da regularização, que englobam:
1. a apresentação inicial do projeto;
2. envolve a etapa necessária para a averbação da “demarcação”;
3. e o registro da legitimação de posse.
A presente lei, que não instiga a burocratização, permite, desde que as informações sejam completas e fidedignas, que o mesmo estudo acompanhe o processo até o seu encerramento, se tornando desnecessária a renovação de informações, plantas e memoriais.
Licenciamento ambiental e urbanístico
Uma vez concluído o projeto deve ser submetido à aprovação Municipal, que dotada de Conselho do Meio Ambiente, ostenta poder para conferir o licenciamento ambiental e urbanístico.
Observe-se que os parâmetros urbanísticos e ambientais devem ser estabelecidos em função das características da ocupação e da área ocupada (art. 54), o que confirma que as áreas de ocupação consolidadas devem permitir o licenciamento possível, que prescinde do atendimento dos padrões legais mínimos.
Mesmo as áreas de preservação permanente, como, por exemplo, as áreas de mananciais ocupadas antes de 2008, podem obter licenciamento, desde que as condições ambientais previstas no parcelamento, experimentem melhorias ambientais e urbanísticas em função da intervenção provocada pela regularização (§ 1º e 2º, do art. 54).
Auto de demarcação
Apresentado o projeto e obtido o licenciamento o Município deverá, em prazo razoável, expedir auto de demarcação que deverá ser instruído com os documentos que integraram o projeto. Caso esses se revelem insuficientes, a Municipalidade deverá confeccionar duas novas plantas. A primeira refletirá apenas a área regularizanda, com todas as indicações necessárias para a descrição integral da ocupação, assim como a individualização de cada lote e dos espaços públicos.
O georreferenciamento , em atenção ao principio da economicidade e utilidade, somente deverá ser adotado quando a área não disponha de pontos seguros de amarração.
A segunda será a planta de sobreposição, que deverá reproduzir a área da ocupação em confronto com as indicações da descrição e medidas constantes dos títulos dominiais atingidos. Esta planta deverá ser acompanhada( s) pela(s) certidão(ões) da(s) matricula(s) ou transcrição(ões) atingida(s). A planta de sobreposição deverá indicar se a área regularizanda atinge integralmente ou parcialmente a gleba ou se desfalca mais de uma matrícula ou transcrição.
Não é exigido do Município grande rigor no cumprimento deste item, pois o perfeito enquadramento da área regularizanda aos padrões registrais foi atribuído ao Oficial do Registro de Imóveis. As dúvidas ou incertezas quanto ao mais próprio enquadramento não poderão obstar a expedição do “auto de demarcação”.
Voltamos aqui a ressaltar o sentido da função social da propriedade, que inverte as prioridades, prestigiando o interesse coletivo em contrapartida com o interesse individual. Prevalece, destarte, o impulso para regularizar que não pode ser frustrado pela imperfeita descrição tabular das antigas glebas.
Desta forma, a planta de sobreposição deverá refletir a área regularizanda e a(s) gleba(s) a ser(em) desfalcada(s) , em atenção a critérios e padrões de probabilidade, mormente em face das imperfeições constantes do fólio real. Reafirma-se que a incerteza tabular não pode prejudicar ou emperrar o processo de regularização fundiária.
Nos casos em que a área retificanda venha a confrontar com área pública, salvo quando esta for Municipal, o órgão responsável será notificado previamente para a discriminação de sua propriedade. A previsão encerra uma forma de ação discriminatória incidental inserida na via administrativa da regularização fundiária.
Concluído a instrução do auto de demarcação, este deverá ser remetido ao Registro de Imóveis para que o oficial registrador realize suas buscas visando identificar o proprietário e a(s) matricula(s) ou transcrição(ões) atingidas pelo imóvel demarcado. Caso as dúvidas manifestadas pela Municipalidade não sejam superadas pelo Oficial Registrador, este deverá desfalcar todas as matrículas ou transcrições capazes de abrigar a área regularizanda, mediante averbação que conste todo o histórico. O(s) proprietário( s) será(ão) notificado(s) pessoalmente no endereço constante do registro de imóveis ou naquele fornecido pelo Município extraído do cadastro do IPTU. Caso não seja localizado, o proprietário será notificado por edital. H avendo mais de uma Serventia Imobiliária envolvida, o auto de demarcação deve ser expedido em duplicidade ou em cópia, enviado a ambos os ofícios.
Decorrido o prazo de 15 dias da notificação pessoal ou ficta, a demarcação deve ser averbada junto à(s) matricula(s) ou transcrição(ões).
Da impugnação
O proprietário tabular poderá impugnar perante a Serventia Imobiliária, apresentando seus motivos e fundamentos, caso em que a Municipalidade será chamada para apresentar suas razões em sessenta (60) dias, podendo corrigir o auto de demarcação ou excluir a área impugnada. Nesse caso a regularização fundiária continuará em face da área não questionada.
O Oficial de Registro de Imóveis possui prerrogativa legal para tentar o “acordo”, mas não poderá lançar qualquer tipo de decisão, nem que se limite exclusivamente a critérios técnicos. O conflito de interesse encerra o percurso administrativo, franqueando à Municipalidade ou ao interessado o ingresso judicial. Os interessado poderão, eventualmente, optar pelo caminho do usucapião judicial, preferivelmente plúrimo, alicerçado nas informações constantes da “demarcação” ou no projeto.
Da averbação do auto de demarcação
Averbado o auto de demarcação (art. 58), com ou sem desfalque, o Poder Público deverá providenciar novo projeto ou ratificar as plantas e memoriais já elaborados.
O novo projeto determinará o descerramento de nova matricula considerando o fracionamento do solo, indicando a área total, cada um dos lotes e a áreas públicas (art. 66, I), providência que confere mais certeza à regularização, gerando segurança jurídica ao permitir melhor exame registral, afastando as incertezas determinadas pela imperfeição descritiva das antigas glebas. Como proprietários serão anotados todos os notificados.
Legitimação de posse
O novo projeto determinará o descerramento de nova matricula considerando o fracionamento do solo, indicando a área total, cada um dos lotes e a áreas públicas (art. 66, I), providência que confere maior certeza à regularização, gerando segurança jurídica ao permitir melhor exame registral, afastando as incertezas determinadas pela imperfeição descritiva das antigas glebas. Como proprietários serão anotados todos os notificados.
Aberta nova matricula ou registrando- se em matricula ou transcrição preexistentes, a Municipalidade, procedendo a consulta a seus cadastros constantes do processo de regularização, passará a expedir os títulos de legitimação de posse, que poderão ser registrados na matricula-mãe.
Serão agraciados pelo titulo de legitimação de posse apenas as ocupações de frações inferiores a 250 metros quadrados, mantidas por famílias que residam no local, e não disponham de outro imóvel ou sejam foreiros ou concessionários. Também não poderá receber o título aquele que já tenha se beneficiado de igual favor. O título de legitimação de posse permite o REGISTRO, a despeito de ser direito inerente à posse e não estar, ao que se sabe, discriminado no art. 167 da Lei de Registros Públicos.
Para esse efeito o tempo anterior de posse não pode ser considerado ou contado, devendo o possuidor aguardar cinco (5) anos para requerer a conversão de sua posse em propriedade junto ao Registro Imobiliário, que neste caso inaugurará nova matricula para a unidade autônoma.
Regularização fundiária de interesse específico
São áreas de interesse específico aquelas que, a despeito de não serem enquadradas como ZEIS, ou não atenderem aos padrões de interesse social próprio, conquistam sentido organizacional de interesse para a cidade.
Nesses casos o projeto do art. 51 deve ser apresentado pelo(s) interessado( s), para a devida análise pela autoridade licenciadora. Aparentemente, existe maior rigor para o projeto das áreas de interesse específico, que começam com a observância das restrições à ocupações de áreas de preservação permanente, sendo exigido contrapartidas e compensações urbanísticas e ambientais, quando necessário.
A responsabilidade pela implantação do sistema viário, da infraestrutura básica, dos equipamentos comunitários, e das compensações urbanísticas, deverão ser definidas pela autoridade licenciadora, sendo admitido o compartilhamento dos custos e investimentos, participando a comunidade beneficiada.
Venício Salles é Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo