CGJ|SP: Registro Civil de Pessoas Naturais – Casamento – Pacto Antenupcial – Separação Obrigatória – Estipulação de Afastamento da Súmula 377 do STF – Possibilidade.
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA
Recurso Administrativo n° 1065469-74.2017.8.26.0100
C O N C L U S Ã O
Em 01 de dezembro de 2017, conclusos ao Excelentíssimo Senhor Desembargador PEREIRA CALÇAS, DD. Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo.
(412/2017-E)
REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS – CASAMENTO – PACTO ANTENUPCIAL – SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA – ESTIPULAÇÃO DE AFASTAMENTO DA SÚMULA 377 DO STF – POSSIBILIDADE. Nas hipóteses em que se impõe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto antenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377 do Excelso Pretório, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória. Situação que não se confunde com a pactuação para alteração do regime de separação obrigatória, para o de separação convencional de bens, que se mostra inadmissível.
Excelentíssimo Senhor Corregedor Geral da Justiça,
Trata-se de recurso administrativo tirado em face de r. decisão que determinou que se proceda à habilitação de casamento dos recorrentes, invalidando, contudo, pacto antenupcial prevendo, a par da manutenção do regime de separação obrigatória de bens, absoluta incomunicabilidade dos aquestos.
Os recorrentes afirmam que a pactuação é válida e buscam resguardar o património de cada um dos nubentes, aumentando a segurança pretendida pelo legislador, nas hipóteses do art. 1641, II, do Código Civil.
Requereram o provimento do recurso, para que se tomem por válido o pacto antenupcial.
É o relatório.
Consoante se extrai do art. 1639 da Lei Civil, a regra, quanto ao regime de bens vigente no casamento, é a liberdade de contratação entre os nubentes. Apenas em hipóteses excepcionais é que cuidou o legislador de traçar limites à livre pactuação.
Foi o que se deu, por exemplo, com o rol do art. 1641, que trata do regime de separação obrigatória de bens. O respectivo inciso II, versado nos presentes autos, impõe ao nubente maior de 70 anos o regime da separação de bens.
Conforme magistérios do Desembargador Milton Paulo de Carvalho Filho:
“O inciso II realça o caráter protetor do legislador, que pretende resguardar o nubente maior de 70 anos de união fugaz e exclusivamente interesseira.” (Código Civil Comentado, SP: Manole, 10ª ed., 2016, p. 1731)
Como se vê, a razão da norma está na proteção que se buscou dispensar ao património do nubente maior de 70 anos. Uma vez que a mens legis do art. 1641 é protetiva e que a regra geral é a livre contratação do regime de bens, afigura-se de todo razoável permitir que ambas as situações incidam cumulativamente, ampliando-se a proteção buscada pela lei, por meio de pactuação entre os nubentes.
O óbice imposto aos recorrentes, na situação em análise, implica rematado contrassenso. Impede que se alargue a proteção pretendida pelo legislador, ao mesmo tempo em que limita o poder de livre pactuação, insista-se, regra geral.
Por se tratar de norma de exceção, a vedação imposta pelo art. 1641 comporta, ademais, interpretação restritiva. O cerceamento do poder de pactuar deve ser o mínimo necessário para que o objetivo da norma seja alcançado. Não se há de impedir, portanto, a contratação de regime que amplie o cunho protetivo almejado pela norma.
Não é outro o entendimento de Flávio Tartuce, em consonância com a posição exposta por Zeno Veloso:
“Em artigo recentemente publicado no Jornal O Liberal, de Belém do Pará, e replicado em várias páginas da internet, o professor Zeno Veloso trouxe a debate um tema instigante, qual seja a possibilidade de afastamento da incidência da súmula 377 do STF por meio de pacto antenupcial celebrado por cônjuges que sofrem a imposição do regime da separação lega! ou obrigatória bens, na hipótese descrita pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil.
(…)
Após tal exposição, o mestre do Pará (referência a Zeno Veloso) expõe sua opinião, sustentando que é possível o afastamento da aplicação da sumular, por não ser o seu conteúdo de ordem pública, mas sim de matéria afeita à disponibilidade de direitos. E lança uma questão de consulta (…). Afinal, podem ou não os nubentes, de atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da Súmula 377?”
Estamos total e unanimemente filiados à opinião de Zeno Veloso, levando-se em conta a opinium daqueles que se manifestaram no nosso grupo. De início, sem dúvida, a Súmula 377 do STF -do remoto ano de 1964 7-, traz como conteúdo matéria de ordem privada, totalmente disponível e afastada por convenção das partes, não só no casamento, como na união estável. Vale lembrar que, pelo teor da sua ementa, “no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.
Pontue-se que, após muito debate na doutrina e na jurisprudência, tem-se aplicado a súmula integralmente, sem a necessidade de prova do esforço comum dos cônjuges para que haja a comunicação de bens, como destaca o próprio professor em seu texto.
Em outras palavras, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe dar a última palavra a respeito do Direito Privado desde a Constituição Federal de 1988, praticamente transformou o regime da separação legal ou obrigatória de bens em um regime de comunhão parcial.
Assim concluindo, por todos, entre os últimos julgamentos: “no regime da separação obrigatória, comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, sendo presumido o esforço comum (Súmula n. 377/STF)” (STJ, AgRg no AREsp 650.390/SP, Rei. ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/10/2015, DJe 03/11/2015).
Além da clareza do argumento, no sentido de se tratar de matéria de ordem privada e, portanto, disponível, acrescente-se, como pontuou Mário Luiz Delgado em nossos debates, que “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver” (art. 1.639, caput, do Código Civil). A única restrição de relevo a essa regra diz respeito às disposições absolutas de lei, consideradas regras cogentes, conforme consta do art. 1.655 da mesma codificação, o que conduziria à nulidade absoluta da previsão. A título de exemplo, se há cláusula no pacto que afaste a incidência do regime da separação obrigatória, essa será nula, pois o art. 1.641 do Código Privado é norma de ordem pública, indisponível, indeclinável pela autonomia privada.
Todavia, não há qualquer problema em se afastar a súmula 377 pela vontade das partes, o que, na verdade, ampliaria os efeitos do regime da separação obrigatória, passando esse a ser uma verdadeira separação absoluta, em que nada se comunica. Tal aspecto foi muito bem desenvolvido por José Fernando Simão também nos debates que travamos.
Em suma, mestre Zeno Veloso, sim, podem os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da súmula 377. Acreditamos que tal afastamento constitui um correto exercício da autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um pacto antenupcial (art. 1.653 do CC/2002).” (http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104.M1239721,61044-Da+possibilidade+de+afastamento+da+sumula+377+do+STF+por+pacto; acesso nesta data)
Em idêntico sentir, a opinião de José Fernando Simão:
“Outra questão relevante diz respeito à perda do direito de escolha do regime decorrente da imposição da separação de bens (art. 1.641 do CC). Em sendo o regime de separação obrigatória, a adoção de qualquer regime que gere comunhão de bens (comunhão parcial, comunhão universal ou participação final nos aquestos) é nula. Também o será se os nubentes optarem por um regime híbrido ou misto que geras a comunhão de alguma espécie.
Note-se, contudo, que se os cônjuges optarem pelo regime de separação convencional de bens, que acaba por gerar efetiva separação absoluta, o pacto é válido. O objetivo da lei ao prever o regime de separação é evitar a comunhão. Ora, o regime de separação convencional garante tal desiderato, enquanto o da separação obrigatória não garante, em razão da aplicação da Súmula 377 do STF pelos Tribunais[1].
Logo, válido será o pacto antenupcial para fins de garantir que nenhuma comunhão se opere, tornando ainda mais rígido o preceito legal cuja ratio é evitar a comunhão.” (http://professorsimao.com.br/artigos/artigo.aspx?id=165; acesso nesta data)
Com amparo em tais entendimentos, aliás, o E. Tribunal de Justiça de Pernambuco expediu o Provimento 8/2016, inserindo, no art. 644-A do respectivo Código de Normas, expressa previsão de dever do Sr. Oficial de Registro Civil de “cientificar os nubentes da possibilidade de afastamento da incidência da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, por meio de pacto antenupcial.”
Note-se que a hipótese vertente é diversa daquela em que os nubentes pleiteiam afastamento do regime de separação obrigatória, para adoção do regime de separação legal de bens, efetivamente inadmissível, dada a diversidade de regramentos entre ambos (e.g., quanto à vocação hereditária entre os nubentes, que ocorre no regime de separação legal, embora ausente no regime de separação obrigatória). Em suma, repise-se, não se há de admitir que, por pacto antenupcial, o regime de separação obrigatória de bens seja substituído pelo de separação legal.
Todavia, viável que, por pacto antenupcial, os nubentes entendam por bem manter o regime de separação obrigatória, vigente em todos os seus termos, com o reforço protetivo de incomunicabilidade dos aquestos, em integral consonância com o intuito do art. 1641.
Nem se olvide a discutível constitucionalidade, para dizer o menos, do dispositivo em voga. É que, ao limitar a liberdade de contratação da pessoa maior de setenta anos, que segue dotada de capacidade, o legislador civil aparenta haver violado os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, grafados na Lei Maior.
Pertinentes, ainda uma vez, os ensinamentos de Milton Paulo de Carvalho Filho:
“A doutrina observa que esse dispositivo fere os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, previstos em norma constitucional. O contraente com 70 anos ou mais é plenamente capaz para o exercício de todos os atos da vida civil e para a livre disposição de seus bens. Não há justificativa plausível que ampare o intuito da disposição legal de reduzir a autonomia do nubente, em evidente contrariedade à Lei Maior, muito embora a redação dada pela Lei n. 12.344, de 10.12.2010, já tenha elevado a idade de 60 para 70 anos, em face do aumento da expectativa de vida da população brasileira.” (Op. Cit., p. 1732)
Ante o exposto, o parecer que submeto a Vossa Excelência propõe, respeitosamente, provimento ao recurso, para que se dê seguimento à habilitação para casamento, com adoção do regime de separação obrigatória de bens, prevalecendo o pacto antenupcial que estipula a incomunicabilidade absoluta de aquestos.
Sub censura.
São Paulo, 5 de dezembro de 2017.
Iberê de Castro Dias
Juiz Assessor da Corregedoria
DECISÃO
Aprovo o parecer do MM. Juiz Assessor da Corregedoria e, por seus fundamentos, que adoto, dou provimento ao recurso administrativo, para que se dê seguimento à habilitação para casamento, com adoção do regime de separação obrigatória de bens, prevalecendo o pacto antenupcial que estipula a incomunicabilidade absoluta de aquestos.
Publique-se.
São Paulo, 6 de dezembro de 2017.
PEREIRA CALÇAS
Corregedor Geral da Justiça
Assinatura Eletrônica
(DJe de 23.01.2018 – SP)