Cessão de direitos hereditários de bens singulares: Sim ou Não?
Cessão de direitos hereditários de bens singulares: possibilidade
Por Zeno Veloso*
Aberta a sucessão, o co-herdeiro pode ceder o seu direito à mesma, bem como o quinhão de que disponha, por escritura pública. Esta forma é da substância do ato; a cessão de direitos hereditários celebrada por instrumento particular é nula de pleno direito. E é necessária a outorga conjugal, a não ser que o regime do casamento seja da separação absoluta.
O art. 1.793, § 2º, dispõe que é ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente. Sem dúvida, o co-herdeiro só pode ceder a sua quota-parte, ou a sua parte ideal na universalidade da herança, mas não a respeito de um bem específico, de um bem determinado ou considerado singularmente. Note-se: a cessão de um bem individuado, dentre os que compõem o espólio, não é negócio jurídico inválido. Não é nulo, nem anulável. A censura da lei está no plano da eficácia. A cessão, neste caso, é ineficaz, não produz efeito, é inoponível aos demais herdeiros, dado que a herança é uma universalidade, e até a partilha, indivisível.
Todavia, a cessão que teve por objeto direito sobre bem determinado recobrir-se-á de eficácia, futuramente, se, na partilha, o aludido bem for efetivamente atribuído ao herdeiro cedente. A questão estará superada, e tudo se resolve. A eficácia opera ex tunc, até por imperativo da lógica e do bom senso.
Considerando a razão da lei, isto é, observando o que pretendeu a norma ao estatuir a ineficácia da cessão de direito hereditário sobre bem considerado singularmente, que foi o objetivo de garantir o direito dos demais co-herdeiros, uma vez que somente com a partilha estará fixado e definido o que cabe materialmente a cada um, sou de opinião de que a cessão de bem determinado é válida e eficaz se existe apenas um herdeiro, pois não há outros interessados (co-herdeiros) que pudessem aspirar ao aludido bem. Do mesmo modo – e por igual razão -, se todos os herdeiros fazem a cessão de direitos hereditários sobre um bem da herança considerado singularmente, não há contra quem opor a ineficácia desta cessão, e a mesma é válida e eficaz, resguardados, sempre, os direitos de credores.
Se há vários herdeiros, e todos eles cedem seus direitos a um bem determinado da herança, isso funciona como verdadeiro acordo de partilha, que só precisa ser homologado pelo juiz, observada a escritura pública de cessão. E podem os co-herdeiros fazer o inventário e partilha administrativamente, por escritura pública, independentemente de homologação judicial, observando-se a Lei n. 11.41, de 04.01 de 2007, e esta escritura pública pode conter uma cessão de direitos de bem considerado individualmente, constituindo título único, suficiente e hábil para o registro imobiliário.
Sintetizando: os direitos a respeito de um bem singular da herança podem ser cedidos pelo herdeiro único (herdeiro universal) ou por todos os herdeiros, conjuntamente. E não haveria motivo parar considerar ineficaz o negócio, pois não há ineficácia que não se oponha a interesse de terceiros, e ninguém, no caso, pode alegar direito frustrado ou algum prejuízo. Enfim, não há razão moral, econômica ou jurídica para impedir que a cessão, nos hipóteses citadas, seja realizada.
*Tabelião em Belém do Pará. Doutor Honoris Causa da UNAMA; Notório saber jurídico da UFPA; Professor do Curso de Direito da UFPA e UNAMA; Participou da Comissão de Juristas, designada pelo Ministério da Justiça, presidida pelo professor Silvio Rodrigues, que redigiu o Anteprojeto das Leis de Família e Sucessões. Integrou o grupo de professores que assessorou o deputado Ricardo Fiúza, Relator-Geral do Projeto de Código Civil, na fase final de tramitação do mesmo na Câmara dos Deputados. Assessor da 2a Vice-Presidência da Assembléia Nacional Constituinte, em Brasília. Membro fundador e diretor – regional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e diretor institucional da Anoreg-BR. Membro fundador do Colégio Notarial do Brasil. Membro fundador da Academia Paraense de Letras Jurídicas. Comendador da Ordem do Mérito Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Foi Secretário de Justiça do Estado do Pará e Secretário de Assuntos Jurídicos do Município de Belém.
Jornal Carta Forense, quarta-feira, 2 de junho de 2010
Cessão de direitos hereditários de bens singulares: impossibilidade
Por Christiano Cassetari*
O art. 1.793 do Código Civil estabelece a possibilidade de o herdeiro fazer a cessão dos seus direitos hereditários por meio de uma escritura pública. A cessão poderá ser gratuita ou onerosa, dependendo da existência, ou não, de alguma vantagem para o cedente. Porém, cumpre salientar que o art. 1.791 do Código Civil estabelece que a herança se defere como um todo unitário, ainda que vários sejam os seus herdeiros. No citado artigo, o parágrafo único consagra o princípio da indivisibilidade da herança, ao estabelecer que até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, seja indivisível.
Isto se dá porque quando uma pessoa falece, todo o seu conjunto de direitos e deveres adquiridos em vida se “fecha” num “pacote” chamado herança, monte-mor, monte-partível, espólio, acervo hereditário, que permanecerá intocável até a partilha. O inventário, seja ele extrajudicial ou judicial, tem por objetivo provocar a partilha, que significa dividir entre os co-herdeiros o que existe dentro do citado “pacote”.
Assim, impossível será fazer cessão de direitos hereditários de bens considerados singularmente, haja vista que os herdeiros, antes da partilha, não são proprietários da casa, carro, apartamento, sítio, dinheiro em banco, que eram do de cujus, mas são donos de uma parcela do acervo hereditário por ele deixado.
Se fosse possível fazer cessão de direitos hereditários de bens individuais, como um imóvel, por exemplo, não haveria necessidade de se fazer inventário, e isso seria perigoso, já que não haveria o recolhimento do ITCMD, exigido pela legislação tributária neste caso, nem tampouco se obteria a concordância da Fazenda Estadual sobre o seu recolhimento.
A proibição de se realizar cessão de direitos hereditários de bens singulares da herança, antes da partilha, consta dos §§ 2.º e 3.º do art. 1.793 do Código Civil, ao determinar que o direito à sucessão aberta, bem como o quinhão de que disponha o co-herdeiro, pode ser objeto de cessão por escritura pública, mas é ineficaz a cessão, pelo co-herdeiro, de seu direito hereditário sobre qualquer bem da herança considerado singularmente, assim como também será ineficaz é a disposição, sem prévia autorização do juiz da sucessão, por qualquer herdeiro, de bem componente do acervo hereditário, pendente a indivisibilidade.
Para o citado artigo, a cessão de direitos hereditários, que tem por objeto bens considerados singularmente, é ineficaz, ou seja, não produz efeito. Se houver interesse em negociar um bem singular do acervo, antes da partilha, para pagar tributos, por exemplo, será necessária autorização judicial por meio de alvará, consoante a redação do § 3.º do citado artigo.
Ademais, cumpre salientar que o cedente transfere todos os direitos que ele possui na sucessão, podendo ser de forma integral (100% dos direitos) ou parcial (menos que 100% dos direitos). Isto quer dizer que o cessionário entrará na sucessão como se herdeiro fosse, o que lhe dará responsabilidades pelo pagamento de dívidas do falecido até o limite da quota parte recebida (100% ou menos dos direitos que o cedente tinha).
Para exemplificar, imaginemos que um co-herdeiro tenha recebido 30% da herança de “X”. Esse co-herdeiro poderá transferir os 30% da herança (que corresponde a 100% dos direitos que ele possuía), ou um percentual menor (15% da herança, por exemplo, que corresponde à metade dos direitos que ele possuía) para alguém. Se, neste caso, o citado co-herdeiro transferir 30% da herança para um determinado cessionário, este entrará na sucessão como se herdeiro fosse, já que será responsabilizado por 30% das dívidas do morto (caso elas existam) até o limite do valor do percentual recebido.
Por este motivo é que entendemos ser dever do tabelião orientar o cessionário, principalmente o que paga para entrar na sucessão, que ele pode ser responsabilizado por dívidas do morto, vindo a perder a cota sucessória recebida, mesmo tendo pago para que isto ocorresse no momento da realização da cessão.
Imaginemos se ocorrer uma penhora no bem singular antes da realização do inventário, poderia a cessão ser oposta perante o credor? A resposta é negativa, e tal risco, acreditamos, que nunca uma pessoa que adquire bem singular deseja correr.
Assim, a cessão de direitos hereditários deve ser feita de forma genérica, em que se aponta qual será o percentual da cota hereditária que será transferido ao cessionário (100% ou menos). E com esta escritura em mãos, o cessionário terá legitimidade para abrir o inventário, seja ele extrajudicial – se preenchidos os requisitos do art. 982 do Código de Processo Civil – ou judicial, para se realizar a partilha. Esse é o posicionamento do STJ (REsp 546.077-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 2/2/2006).
A parte mais importante da ementa do citado julgado é que:
1-) Só no momento da partilha é que se determina e especifica o quinhão de cada herdeiro e, automaticamente, o objeto da cessão.
2-) Enquanto não houver partilha dos bens, o cessionário detém apenas direito expectativo, que só irá se concretizar efetivamente após a especificação do quinhão destinado ao herdeiro cedente.
3-) Quanto à alegação dos recorrentes de ser inviável o registro da cessão de direitos hereditários, de fato, enquanto não ultimada a partilha, o referido negócio não podia ser levado a registro;
Assim, claro e cristalino está que bens singularizados não podem ser objeto de cessão, pois essa deve ser feita de forma genérica. A legitimidade do cessionário para realizar a escritura de inventário vem descrita no art. 16 da Resolução 35 do Conselho Nacional de Justiça, nos seguintes termos: “Art. 16. É possível a promoção de inventário extrajudicial por cessionário de direitos hereditários, mesmo na hipótese de cessão de parte do acervo, desde que todos os herdeiros estejam presentes e concordes.”
Como aponta o citado dispositivo, se a cessão for total ela poderá fazer a escritura sozinho, mas se o cessão foi parcial, haverá a necessidade de comparecimento dos outros herdeiros, que, a exemplo dele, deve ser capazes e concordes.
*Doutorando em Direito Civil pela USP e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Professor de Direito Civil no curso de graduação da USJT/SP, em cursos preparatórios para as carreiras jurídicas e de pós graduação “lato sensu”. Autor do livro “Separação, Divórcio e Inventário por Escritura Pública: Teoria e Prática”, publicado pela Editora Método, com prefácio de Zeno Veloso, que se encontra na 3º edição.
Jornal Carta Forense, quarta-feira, 2 de junho de 2010