1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Usucapião Extrajudicial – Unidade condominial – Condomínio edilício de fato, que não foi objeto de incorporação ou de instituição de condomínio nos termos da Lei n.4.591/64, com edificação em terreno que não possui matrícula própria – Origem jurídica das unidades autônomas somente se dá com a instituição do condomínio – Registro da incorporação necessário – Óbice mantido.
SENTENÇA
Processo Digital nº: 1001213-15.2023.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: 3º Oficial de Registro de Imóveis
Suscitado: Anibal Alexandre Cerqueira Pisco e outro
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 3º Registro de Imóveis da Capital em decorrência de rejeição do requerimento de Aníbal Alexandre Cerqueira Pisco e de sua mulher, Lianger da Silva Pisco, pelo reconhecimento extrajudicial da usucapião do apartamento n.11, andar térreo do ‘Edifício Yassine’, o qual é localizado na rua Plínio Colás, n. 164, com construção sobre terreno que é área remanescente da matrícula n.4.532 daquela serventia.
O Oficial esclarece que a rejeição ocorreu porque o imóvel usucapiendo faz parte de um condomínio edilício de fato, que não foi objeto de incorporação ou de instituição de condomínio nos termos da Lei n.4.591/64, com edificação em terreno que não possui matrícula própria. Assim, para que seja possível o processamento do pedido, é necessária prévia abertura de matrícula do terreno onde está construído o prédio, bem como a instituição do condomínio, óbices estes que não podem ser superados pelo procedimento da usucapião.
Cópia integral do procedimento foi produzida às fls.03/95.
A parte suscitada apresentou impugnação às fls.98/113, alegando que pretende ver regularizada a propriedade; que demonstrou e comprovou posse sobre o bem; que a finalidade do instituto da usucapião é superar a ausência dos documentos exigidos; que não se trata de simples ocupação; que comprou e pagou pelo imóvel, mas não consegue regularizar a propriedade porque a incorporadora desapareceu e não existe outra solução para o caso; que a Constituição Federal assegura seu direito à moradia; que a lei não faz distinção quanto ao modelo de imóvel a ser usucapido; que a distinção entre área útil e área comum não pode afastar a possibilidade de usucapir o imóvel.
O Ministério Público opinou pela manutenção da negativa de prosseguimento pela via extrajudicial (fls. 117/119).
É o relatório.
Fundamento e Decido.
Por primeiro, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n.6.015/73, pelo Provimento n.65/17 do CNJ e pela Seção XII do Cap.XX das NSCGJSP.
Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.
Neste sentido, decidiu o Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível nº 1004044-52.2020.8.26.0161, com relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ricardo Anafe (destaque nosso):
“Usucapião Extrajudicial direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo recusa indevida quanto ao processamento do pedido dúvida improcedente – Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião Extrajudicial”.
No mérito, entretanto, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.
Não resta dúvida de que é perfeitamente possível a regularização do domínio de uma unidade autônoma de condomínio edilício por meio da usucapião.
Contudo, é relevante compreender que a origem jurídica das unidades autônomas somente se dá com a instituição do condomínio, mediante manifestação de vontade do proprietário que construiu o edifício de submeter seu imóvel ao regime da propriedade edilícia, com restrições e direitos para cada unidade autônoma e vinculação aos futuros titulares.
Em ato indissociável da instituição ocorre a especificação do empreendimento (artigo 237-A, §3º, da LRP), por meio da qual cada unidade autônoma é individualizada, com delimitação das áreas comuns e das áreas privativas, o que também deverá constar na Convenção do Condomínio.
A Lei n.4.591/64 assim dispôs sobre a instituição e a especificação das unidades (destaque nosso):
“Art. 7º O condomínio por unidades autônomas instituir-se-á por ato entre vivos ou por testamento, com inscrição obrigatória no Registro de Imóvel, dêle constando; a individualização de cada unidade, sua identificação e discriminação, bem como a fração ideal sôbre o terreno e partes comuns, atribuída a cada unidade, dispensando-se a descrição interna da unidade.
Art. 9º Os proprietários, promitentes compradores, cessionários ou promitentes cessionários dos direitos pertinentes à aquisição de unidades autônomas, em edificações a serem construídas, em construção ou já construídas, elaborarão, por escrito, a Convenção de condomínio, e deverão, também, por contrato ou por deliberação em assembléia, aprovar o Regimento Interno da edificação ou conjunto de edificações.
§ 3º Além de outras normas aprovadas pelos interessados, a Convenção deverá conter:
a) a discriminação das partes de propriedade exclusiva, e as de condomínio, com especificações das diferentes áreas“.
No mesmo sentido, o artigo 1.332 do Código Civil dispõe que o condomínio edilício é instituído por ato entre vivos ou testamento, com registro junto ao Cartório de Registro de Imóveis.
Anteriormente à instituição e à especificação do condomínio edilício, pode existir o que a doutrina denomina de condomínio protoedilício, que é a situação especial e transitória de condomínio entre frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas, autorizada pelo artigo 32 da Lei n. 4.591/64, a fim de viabilizar a comercialização das futuras unidades ainda em construção.
Porém, mesmo o surgimento do condomínio protoedilício depende essencialmente do registro da incorporação, que é o ato mediante o qual o terreno passa a ser juridicamente vinculado a transformar-se em condomínio edilício, o que será efetivado após a conclusão das construções.
No caso concreto, entretanto, o condomínio não foi instituído e sequer a incorporação foi registrada, sendo o prédio edificado em área remanescente da matrícula n.4.532, sem matrícula própria.
Se faltasse apenas a instituição do condomínio, a usucapião seria viável, conforme prevê o item 423.4, do Cap.XX, das NSCGJ, o qual reproduz o artigo 20, §4º, do Provimento CNJ n.65/17, nos seguintes termos:
“423.4. Tratando-se de usucapião de unidade autônoma localizada em condomínio edilício objeto de incorporação, mas ainda não instituído ou sem a devida averbação de construção, a matrícula será aberta para a respectiva fração ideal, mencionando-se a unidade a que se refere”.
O registro da incorporação, portanto, além de permitir a identificação e a descriminação da área privativa da futura unidade, também delimita a fração ideal do terreno e as coisas comuns que são inseparáveis dela (artigo 1º, §2º, da Lei n.4.591/64).
É nesse ponto que a ausência da incorporação prejudica a regularização individual da propriedade por meio da usucapião administrativa: além da área privativa, deverá ser reconhecida área de uso comum, em relação de inseparabilidade, que afeta a posse e eventual domínio dos titulares de todas demais unidades que integram a edificação.
Por outro lado, a regularização fundiária coletiva pode ser alcançada pela instituição de condomínio urbano simples, na forma dos artigos 61 a 63 da Lei n.13.465/17, inclusive para legalização da construção junto à autoridade municipal, se for o caso.
Diante do exposto, MANTENHO a decisão de rejeição de fls. 94/95, determinando a extinção da usucapião extrajudicial, com cancelamento da prenotação.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 17 de fevereiro de 2023.
Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Juiz de Direito
(DJe de 23.02.2023 – SP)