1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Usucapião Extrajudicial – Soma de posse – Sucessão – Inversão da posse – Mudança que ocorre com atos concretos e materializados que exteriorizem a mudança subjetiva da intenção do possuidor – Desnecessária a integração ao polo passivo dos herdeiros dos antecessores na posse, pois, a princípio, eles não guardam relação com a posse própria alegada, apenas com a anterior, que era universal – Dúvida improcedente.
SENTENÇA
Processo Digital nº: 1006509-18.2023.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: 9º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo – Sp
Suscitado: Solange Aparecida dos Santos Oliveira e outro
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 9º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Solange Aparecida dos Santos de Oliveira e de seu marido, Pedro Donizetti de Oliveira, à vista de exigência feita em procedimento pelo reconhecimento extrajudicial de usucapião do imóvel objeto da transcrição n. 37.980 daquela serventia (prenotação n. 666.742).
O Oficial esclarece que o procedimento foi regularmente autuado, mas foram apresentadas apenas as certidões dos distribuidores judiciais em nome dos requerentes; que a requerente Solange alega morar no imóvel usucapiendo desde o seu nascimento, onde conviveu com seus avós, os possuidores originais do bem adquirido por contrato cujo instrumento não foi localizado; que, ao verificar que a posse alegada teve causa em sucessão hereditária, de natureza universal, exigiu, além das certidões em nome do titular do domínio, também as certidões dos demais herdeiros que receberam a posse do imóvel. Ao final, entendeu que não foi comprovada a interversão da posse, sendo necessário o chamamento dos demais herdeiros para tomar conhecimento do pedido, pois a sua ausência afeta a formação do processo e impede a realização do ciclo citatório, sendo causa de nulidade e ineficácia da decisão, justificando extinção sem o julgamento do mérito. Assim fundamentou a rejeição do pedido (itens 17 e 23, fls.461/465).
Documentos vieram às fls. 06/475.
Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada alega que demonstrou o exercício de posse qualificada; que o pedido formulado foi entendido de forma subjetiva e inadequada; que as certidões relativas ao titular do domínio são impossíveis de serem alcançadas pela ausência de dados precisos para identificação de Francisco Tavares (fls.468/471).
Nestes autos, porém, não foi apresentada impugnação (fls. 476/478).
O Ministério Público opinou pela procedência (fls. 482/484).
É o relatório.
Fundamento e decido.
Por primeiro, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n. 6.015/73, pelo Provimento n. 65/17 do CNJ e pela Seção XII do Cap. XX das NSCGJ.
Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.
No mérito, em que pese a cautela do Oficial, a dúvida é improcedente.
Vejamos os motivos.
Trata-se de pedido de reconhecimento de usucapião extraordinária sobre o imóvel objeto da transcrição n.37.980 do 9ºRI, correspondente ao lote 23, da quadra 38 da Vila Carmozina, rua Barra de Gabiraba, n.409.
A parte alega exercer posse com animus domini há mais de trinta e cinco anos, tendo sido o imóvel adquirido por José Antônio dos Santos e Virgínia Figueiredo dos Santos, avós da requerente Solange, a qual ali reside desde o seu nascimento.
O registro do imóvel identifica o titular do domínio como sendo
“Francisco Tavares, brasileiro, maior, do comércio, residente nesta Capital na Rua Juquiá, n.259”, com notícia de que, originalmente, a via para a qual o bem faz frente era denominada rua 7 de Setembro (fl.119).
Embora não haja instrumento formalizando a aquisição da posse, é possível constatar na certidão de óbito de José Antônio, falecido em 03/12/1963, que já naquela época informava-se sua residência na rua Sete de Setembro, n.251 (fl.386).
A requerente Solange nasceu pouco tempo depois, em 11/02/1965, constando em certidão oficial averbação sobre nascimento naquele endereço (fls.88/89). Da mesma forma, a certidão de óbito de Neyde dos Santos, mãe da requerente, informa que ela residia na rua 7 de Setembro, n.251, quando faleceu, em 11/07/1972 (fl.390).
A partir de então, segundo a narrativa apresentada, a requerente Solange continuou morando naquele imóvel, onde foi criada por sua avó Virgínia, que faleceu em 31/12/1984, aos 82 anos, após internação em instituto geriátrico (fls.388/389).
Ainda que a posse de José Antônio e Virgínia tenha sido transmitida a título universal aos seus herdeiros, a parte requerente sustenta que, desde o primeiro dia do ano de 1985, passou a exercer posse exclusiva sobre o bem, com animus domini, sendo importante ressaltar que a parte não pretende somar o tempo de posse exercido por seus antecessores, mas apenas contar tempo de posse exclusiva ocorrido após o falecimento de sua avó.
Assim, a princípio, a apresentação das certidões dos distribuidores em nome dos avós da requerente e demais herdeiros não é obrigatória, conforme ressalvado no artigo 4º, IV, “c”, do Provimento CNJ n.65/2017, reproduzido no item 416.2, IV, “c”, do Cap. XX, das NSCGJ (destaque nosso):
“416.2. O requerimento será assinado por advogado ou por defensor público constituído pelo requerente e instruído com os seguintes documentos:
(…)
IV – Certidões negativas cíveis e criminais dos distribuidores da Justiça Estadual e da Justiça Federal do local da situação do imóvel e do domicílio do requerente, expedidas nos últimos trinta dias, demonstrando a inexistência de ações que caracterizem oposição à posse do imóvel, em nome das seguintes pessoas:
a) do requerente e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver;
b) do proprietário do imóvel usucapiendo e respectivo cônjuge ou companheiro, se houver;
c) de todos os demais possuidores e respectivos cônjuges ou companheiros, se houver, em caso de sucessão de posse, que é somada àdo requerente para completar o período aquisitivo da usucapião”.
Ainda assim, a vinda dessas certidões pode ser importante para a demonstração dos requisitos legais necessários ao reconhecimento da usucapião alegada, integrando o acervo probatório a ser analisado no julgamento do mérito.
Como se sabe, diante do princípio da saisine, os herdeiros recebem o acervo hereditário desde a abertura da sucessão, o qual será indivisível até a finalização da partilha, seguindo as normas relativas ao condomínio (artigos 1.784 e 1.791 do Código Civil).
Assim, a posse sobre os imóveis do autor da herança é transmitida ope legis aos seus herdeiros por translatio possessionis, independentemente de qualquer ato de apreensão em primeira mão.
Recebida a posse indireta sobre os bens, o processo de inventário e partilha do patrimônio hereditário deve ser instaurado no prazo de dois meses e, até o compromisso do inventariante, a administração do bem incumbirá ao herdeiro que detêm a posse (artigo 611 do CPC e artigo 1.797, II, do CC).
Nesse primeiro momento, o herdeiro conserva a posse em nome do espólio, mas é possível a transformação do caráter original da posse, de não própria para própria.
Como afirmado pelo Oficial, para romper a ligação com o acervo hereditário, é necessário comprovar a interversão da posse alegada, o que tem fundamento nos artigos 1.203 e 1.207 do Código Civil.
Outrossim, a interversio possessionis não depende exclusivamente de ato bilateral entre o requerente e o espólio. O caráter da posse pode ser alterado unilateralmente mediante atos concretos e materializados que exteriorizem a mudança subjetiva da intenção do possuidor.
No julgamento do REsp nº 220.200-SP, com Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma do STJ decidiu que há sempre a possibilidade da mudança do caráter da posse, de não própria para própria, mas, para que isto se verifique, “deve o possuidor praticar atos que demonstrem o querer agir na condição de proprietário, como a realização de benfeitorias, a interrupção do pagamento de aluguéis, a desobediência às ordens do proprietário”.
No caso concreto, a causa possessionis alegada é a sucessão hereditária, mas a pretensão se funda em direito próprio, incumbindo à parte requerente demonstrar o momento em que rompeu com a perspectiva de devolução futura da coisa ao espólio, em nome do qual exercia mera administração.
É nesse momento que a posse adquire seu caráter ad usucapionem e se inicia a contagem do lapso necessário ao reconhecimento da usucapião pretendida.
Para tanto, a parte requerente alega que estabeleceu naquele imóvel moradia familiar e lá erigiu construção, apresentando documentos que não foram analisados pelo Oficial: a ausência de demonstração da interversão foi afirmada sem fundamentação adequada acerca da insuficiência da prova produzida, com conclusão pela rejeição sumária (itens 17 e 23, fls.461/465).
Observe-se que não é obrigatória a integração ao polo passivo dos herdeiros dos antecessores na posse, pois, a princípio, eles não guardam relação com a posse própria alegada, apenas com a anterior, que era universal. Sua eventual participação anuindo com o pedido ensejaria prova contundente em favor da parte requerente, mas a impossibilidade de sua localização não pode impedir a análise do pedido, embora torne mais complexa a produção da prova.
Ademais, as certidões em nome da parte requerente são suficientes para se prevenir acerca da existência de eventual disputa sobre a posse alegada, revelando eventuais ações propostas contra os requerentes.
Conforme já decidiu o STJ, em acórdão da lavra do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira (Resp 53.800, DJU 2/3/1998, p. 93):
“A OPOSIÇÃO A QUE SE REFERE O ART. 550, CC, TRADUZ MEDIDAS EFETIVAS ‘VISANDO A QUEBRAR A CONTINUIDADE DA POSSE, OPONDO À VONTADE DO POSSUIDOR UMA OUTRA VONTADE QUE LHE CONTESTA O EXERCÍCIO DOS PODERES INERENTES AO DOMÍNIO QUALIFICADOR DA POSSE”.
Nas palavras de Washington de Barros Monteiro:
“O usucapião repousa em duas situações bem definidas: a atividade singular do possuidor e a passividade geral de terceiros, diante daquela atuação individual. Se essas duas atitudes perduram contínua e pacificamente por vinte anos ininterruptos, consuma-se o usucapião. Qualquer oposição subseqüente se mostrará inoperante, porque esbarrará ante o fato consumado” (In “Curso de Direito Civil”, ed. Saraiva, 36ª ed., 3º vol., pág. 120).
Entretanto, não é qualquer atividade de terceiro que pode ser considerada oposição.
A propósito, o acórdão proferido no REsp n.234.240/SC cita o seguinte trecho da obra de José Carlos de Moraes Sales (destaques nossos):
“Verifica-se, portanto, que, para haver interrupção capaz de arredar o usucapião, é necessário ser o possuidor despojado de sua posse de maneira inequívoca, antes de completar o lapso de vinte anos previsto no art. 550 do Código Civil, e sem a possibilidade de recuperar a posse perdida. Bem por isso, preceitua o art. 520, inc. IV, do Código Civil:
‘Perde-se a posse das coisas pela posse de outrem, ainda contra a vontade do possuidor, se este não foi manutenido, ou reintegrado em tempo competente’. Bem por isso, já se decidiu que ‘a prescrição aquisitiva do domínio ou lapso temporal a possibilitar o sucesso da ação de usucapião não ocorre se interrompido por propositura de ação possessória.
(…)
De outra parte, não é possível confundir inconformidade com oposição.
Como bem ressaltou o Egrégio Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, em acórdão publicado pela RT 457/252, ‘oposição, no sentido que lhe emprestou o legislador, não significa tratativa, ponderação ou parlamentação com a finalidade de convencer alguém a demitir de si a posse de determinada coisa. Antes, isso sim, traduz medidas efetivas e concretas, identificáveis na área judicial, visando quebrar a continuidade da posse, opondo à vontade do possuidor uma outra vontade que lhe contesta o exercício daqueles poderes inerentes ao domínio qualificador da posse“. (‘Usucapião de Bens Imóveis e Móveis’, ed. Revista dos Tribunais, 5ª ed., pág. 50)
Não se pode descartar, ainda, a hipótese de abandono do acervo hereditário, o que pode ser confirmado por meio de certidões dos distribuidores em nome de José
Antônio dos Santos e Virgínia Figueiredo dos Santos, que poderão ser providenciadas pela parte interessada. Caso não se identifique a instauração de inventário ao longo de tantos anos, é possível concluir pelo desinteresse dos herdeiros, o que favorece a parte requerente.
Conforme consta na ementa do REsp n.1.840.561/SP:
“(…) a posse de um condômino sobre bem imóvel exercida por si mesma, com ânimo de dono, ainda que na qualidade de possuidor indireto, sem nenhuma oposição dos demais coproprietários, nem reivindicação dos frutos e direitos que lhes são inerentes, confere à posse o caráter de ad usucapionem, a legitimar a procedência da usucapião em face dos demais condôminos que resignaram do seu direito sobre o bem, desde que preenchidos os demais requisitos legais”.
É certo que esse julgado tratou da copropriedade entre cônjuges, porém observou expressamente a aplicação do instituto do condomínio, o qual também rege a sucessão.
Com relação à certidão em nome do titular do domínio, considerando a precariedade da qualificação, sua apresentação pode ser dispensada, conforme autoriza o item 416.7, Cap.XX, das NSCGJ:
“416.17. Será dispensada a apresentação de Certidões Negativa dos Distribuidores de ações em nome dos titulares do domínio quando a obtenção for impossível pelo desconhecimento dos dados de qualificação pessoal (RG, CPF e filiação)”.
Nesse contexto, a dúvida deve ser julgada improcedente, afastando-se a rejeição ao pedido e a exigência pela apresentação das certidões relativas ao titular do domínio e aos herdeiros dos antecessores na posse, com retomada do prosseguimento até que seja possível apreciação do mérito, com análise exaustiva dos documentos apresentados para demonstração da origem, da continuidade, da natureza e do tempo da posse, o que poderá ser comprovado, inclusive, em procedimento de justificação administrativa, obedecendo o rito da produção antecipada de prova, nos termos do item 421, Cap.XX, das NSCGJ.
Pelo exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida, afastando a rejeição do procedimento administrativo, que deverá prosseguir nos termos desta sentença.
Não há custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, arquivem-se os autos.
P.R.I.C.
São Paulo, 08 de março de 2023.
Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Juiz de Direito
(DJe de 13.03.2023 – SP)