1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Escritura de Compra e Venda – Hipoteca com mais de 30 anos sem repactuação – Perempção – Possibilidade de averbação, de ofício, do cancelamento da hipoteca – Dúvida improcedente.
SENTENÇA
Processo Digital nº: 1050594-89.2023.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – REGISTROS PÚBLICOS
Suscitante: 14º Oficial de Registro de Imoveis da Capital
Suscitado: Jorge Cardoso Correia
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 14º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de José Cardoso Correia à vista de negativa de registro de escritura de compra e venda dos imóveis objeto das matrículas n. 24.669 e 24.698, que foi apresentada conjuntamente com requerimento de cancelamento de hipoteca e cédula hipotecária averbadas nas mesmas matrículas (prenotações n. 883.006 e 883.170).
O Oficial esclarece que ambas as prenotações foram devolvidas sob o fundamento de que, para o registro, há necessidade de cancelamento de hipoteca e de cédula hipotecária averbadas nas matrículas, o que somente pode se dar com autorização do credor da cédula hipotecária, título de crédito autônomo (Unibanco Crédito Imobiliário SA). De fato, a perempção apenas limita o direito do credor em relação aos devedores (artigo 1.485 do Código Civil), de modo que cancelamento somente pode ocorrer mediante instrumento de quitação ou mandado judicial.
Documentos vieram às fls. 04/59.
Em manifestação dirigida ao Oficial e em impugnação (fls. 16/20 e 60/66), a parte suscitada alega que os registros e averbações em questão fazem referência à hipoteca e cédula hipotecária CCI 03/26, série MF/79, constituídas por instrumento particular na data de 15/02/1979 pelos antecessores no domínio do imóvel; que já se passaram mais de quarenta e quatro anos desde a instituição da hipoteca, sem cobrança judicial ou novo acordo para instituição de nova hipoteca, o que autoriza reconhecimento da perempção; que o que se pretende do registrador não é a averbação da quitação da hipoteca, mas sim a extinção da garantia por perempção; que, no caso da cédula hipotecária, por ser acessória, deve seguir a mesma sorte do principal, hipoteca.
O Ministério Público opinou pelo prosseguimento do feito como pedido de providências e, no mérito, pelo cancelamento das hipotecas (fls. 70/72).
É o relatório.
Fundamento e Decido.
Por primeiro, cabe esclarecer que, em sendo a pretensão final o registro da escritura de compra e venda (cancelamento das averbações de hipoteca e cédula enquanto óbice), o feito deve prosseguir como dúvida.
No mérito, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.
De acordo com o disposto na Lei de Registros Públicos:
“Art. 251 – O cancelamento de hipoteca só pode ser feito:
I – à vista de autorização expressa ou quitação outorgada pelo credor ou seu sucessor, em instrumento público ou particular;
II – em razão de procedimento administrativo ou contencioso, no qual o credor tenha sido intimado (art. 698 do Código de Processo Civil);
III – na conformidade da legislação referente às cédulas hipotecárias”.
Conforme parecer do MM. Juiz Marcelo Fortes Barbosa Filho elaborado no Proc. CGJ 346/2002 e aprovado em 06.02.2002 pelo Corregedor Geral da Justiça à época, Des. Luiz Tâmbara, o rol previsto no art. 251 é numerus clausus, devendo, como regra, ser observado.
Contudo, se verificada a perempção, é possível operar-se averbação de ofício:
“Para que subsistisse a hipoteca, a prorrogação de sua inscrição deveria ter sido promovida dentro do prazo de trinta anos, vencido em 27.07.1986, e, como não o foi, a garantia real perimiu, eis que não se admite sua perpetuidade, cessando, então, a inscrição de produzir seus efeitos próprios (Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974. vol. IV, p. 352-353).
Ora, caracterizada a perempção, operada pelo simples decurso de um prazo legal insusceptível de suspensão ou interrupção, conforme o explicitado pelo C. Conselho Superior da Magistratura quando do julgamento da Ap 256.993, da Comarca da Capital (rel. Des. Acácio Rebouças, j. 13.01.1977, RDI 3/121), não há necessidade de ordem judicial para que seja promovida averbação correspondente.
Assim, entendo ser possível, de ofício, seja determinada a realização de averbação, reportada a perempção da hipoteca em apreço, o que, apesar de não caracterizar um cancelamento, indicará não produzir a inscrição quaisquer novos efeitos”.
O prazo legal a que se refere a decisão, antes regido pelo artigo 887 do CC/16, vem atualmente estabelecido pelo artigo 1.485 do CC/2002 (com nossos destaques):
“Art. 1.485. Mediante simples averbação, requerida por ambas as partes, poderá prorrogar-se a hipoteca, até 30 (trinta) anos da data do contrato. Desde que perfaça esse prazo, só poderá subsistir o contrato de hipoteca reconstituindo-se por novo título e novo registro; e, nesse caso, lhe será mantida a precedência, que então lhe competir”.
De tal modo, no decurso do prazo legal de trinta anos sem a devida prorrogação ou celebração de novo contrato, a hipoteca perde seus efeitos.
Depreende-se das matrículas do imóvel, fls. 04/15, que os registros em questão se deram em 13/03/1979 (R.05), com repactuação de valor e prestação em 02/07/1981 (R.8, R.9 – fls. 05/06 e 11/12). Portanto, na ausência de registro subsequente de novo título a reconstituir as garantias, houve perempção.
A partir de constatação análoga, já se reconheceu a possibilidade de averbação da perempção em mais de um julgado da E. Corregedoria Geral da Justiça: Processo CGJ nº 904/2003, parecer do MM. Juiz Assessor Claudio Luiz Bueno de Godoy, elaborado em 25.09.2003; Processo CGJ nº 07/2004, parecer do MM. Juiz Assessor José Antonio de Paula Santos Neto, elaborado em 02.02.2004, e Processo CGJ nº 2014/118757, parecer do MM. Juiz Assessor Gustavo Henrique Bretas Marzagão, aprovado pelo Exmo. Des. Hamilton Elliot Akel em 27.08.2014.
Neste último, ressaltou-se também que a averbação da perempção resulta em cancelamento da hipoteca, afirmação esta consignada com base em entendimento firmado em embargos de declaração no Proc. CGJ nº 788/2005, em decisão proferida em 25.10.2005 pelo Exmo. Des. José Mário Antonio Cardinale, à época Corregedor Geral da Justiça, cujo trecho se transcreve:
“… o almejado reconhecimento da perempção importa sim cancelamento da hipoteca, não tendo a decisão embargada incorrido em qualquer imprecisão técnica. Ainda que a postulação formulada não faça referência a cancelamento de hipoteca, certo é que a pretendida extinção do registro, ainda que decorrente de situação fática vinculada ao decurso do tempo, produz necessária e automaticamente aquele resultado. Como ensina Narciso Orlandi Neto:
O cancelamento de um ato do registro significa a retirada de seus efeitos do mundo jurídico. Melhor dizendo, cancelado o registro, desaparece a publicidado e, com ela, os efeitos que ele produziria em relação a terceiro.
Num sistema como o nosso, em que o registro tem eficácia constitutiva, aparece um efeito paralelo, de conteúdo negativo; ele é também extintivo do registro anterior…. (Retificação do Registro de Imóveis, 1997, Livraria Del Rey, Editora Oliveira Mendes, pág. 254).
E, nos expressos termos do artigo 248 da Lei de Registros Públicos, o cancelamento efetuar-se-á mediante averbação”.
Ademais, o proceder do ato de ofício foi objeto de norma regulatória prevista no item XXXII do Provimento nº 1/1988 desta Corregedoria Permanente, editado por José Renato Nalini e Ricardo Henry Marques Dip, com a seguinte redação:
“XXXII. Além das hipóteses previstas no item 122, cap. XX, das “NORMAS DE SERVIÇO DA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA”, poderá averbar-se, por instância ou EX-OFFICIO, o cancelamento de registro de hipoteca perempta”.
No que diz respeito às cédulas hipotecárias, trata-se de títulos de crédito, que possuem, como característica essencial, a autonomia.
Nos termos do artigo 24 do Decreto-Lei n. 70/66:
“Art.24: O cancelamento da averbação da cédula hipotecária e da inscrição da hipoteca respectiva, quando se trate de liquidação integral desta, far-se-ão:
I – à vista das cédulas hipotecárias devidamente quitadas, exibidas pelo devedor ao Oficial do Registro Geral de Imóveis;
II – nos casos dos artigos 18 e 20, in fine;
III – por sentença judicial transitada em julgado.
Parágrafo único: Se o devedor não possuir a cédula hipotecária quitada, poderá suprir a falta com a apresentação de declaração de quitação do emitente ou endossante em documento à parte”.
Já os artigos 18, 19 e 20 do Decreto-Lei n. 70/66 assim determinam:
“Art 18. A liquidação total ou parcial da hipoteca sôbre a qual haja sido emitida cédula hipotecária prova-se pela restituição da mesma cédula hipotecária, quitada, ao devedor, ou, na falta dela, por outros meios admitidos em lei.
Parágrafo único. O emitente, endossante, ou endossatário de cédula hipotecária que receber seu pagamento sem restituí-la ao devedor, permanece responsável por tôdas as conseqüências de sua permanência em circulação.
Art 19. Nenhuma cédula hipotecária poderá ter prazo de resgate diferente do prazo da dívida hipotecária a que disser respeito, cujo vencimento antecipado, por qualquer motivo, acarretará automàticamente o vencimento, idênticamente antecipado, de tôdas as cédulas hipotecárias que sôbre ela houverem sido emitidos.
Art 20. É a cédula hipotecária resgatável antecipadamente, desde que o devedor efetue o pagamento correspondente ao seu valor, corrigido monetàriamente até a data da liquidação antecipada; se o credor recusar infundadamente o recebimento, poderá o devedor consignar judicialmente as importâncias devidas, cabendo ao Juízo determinar a expedição de comunicação ao Registro-Geral de Imóveis para o cancelamento da correspondente averbação ou da inscrição hipotecária, quando se trate de liquidação integral desta“.
Considerando que as cédulas de crédito estão vinculadas à hipoteca e também foram averbadas em 1979, com reformulação em 1981 (Av. 9 e 10 – fls. 05 e 11), não havendo notícia de novo negócio ou de reclamação do valor da dívida em face dos devedores que a assumiram (fls. 22/23), concluo que a exigência de concordância do banco-credor também pode ser afastada.
Em suma, adota-se o entendimento de que a averbação do cancelamento de hipoteca pode se operar de ofício se constatada a perempção, fato jurídico este a ser verificado na ausência de registro de novo título reconstituindo o gravame quando decorridos trinta anos da formalização.
Na incidência do art. 1.485 do CC/02, que regula a matéria, nem mesmo se deve exigir a intimação da parte credora, pois inaplicável o artigo 251, inciso II, da LRP (cf. decisão no Processo CGJ nº 07/2004 supracitado).
Há fundamento, por consequência, notadamente à vista do tempo decorrido e do previsto pelo Decreto-Lei n. 70/66, para cancelamento das cédulas de crédito originadas da hipoteca.
Do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida para afastar o óbice e determinar o registro do título após o cancelamento das hipotecas e cédulas hipotecárias por força desta decisão.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe.
P.R.I.C.
São Paulo, 04 de maio de 2023.
Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Juíza de Direito
(DJe de 08.05.2023 – SP)