1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Usucapião Extrajudicial – Titular de domínio interdito – No caso de pessoas absolutamente incapazes, o prazo prescricional fica impedido de fluir, de tal maneira que, enquanto perdurar a causa, inexiste prescrição a ser contada para efeito de pretensão. A prescrição, na hipótese, só se iniciará se, e quando, cessada a incapacidade – Dúvida procedente.
SENTENÇA
Processo Digital nº: 0009113-66.2023.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro Civil das Pessoas Naturais
Requerente: Carlota Maria Ferreira
Requerido: 11º Oficial de Registros de Imóveis da Capital
Prioridade Idoso
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Vistos.
Trata-se de reclamação formulada por Carlota Maria Ferreira contra o Oficial do 11º Registro de Imóveis da Capital à vista do indeferimento de pedido de usucapião extrajudicial relativo ao imóvel objeto da matrícula n.73.364 daquela serventia.
A inicial informa que o titular do domínio é Iorbe Pereira dos Santos; que instituiu-se usufruto em favor de Bertolina dos Santos Glória, genitora de Iorbe; que a requerente foi cuidadora de Bertolina e nomeada sua curadora em 21/07/1993; que continuou residindo no imóvel após o falecimento de Bertolina, em 09/06/2006; que exerce posse ad usucapionem desde 07/05/2006; que Iorbe também é pessoa interditada, sendo Bertolina sua curadora desde 17/07/1979; que o Oficial de Registro de Imóveis indeferiu o reconhecimento da usucapião sob o argumento de que não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes.
A parte sustenta que a Lei n.13.146/2015 revogou todos os incisos do artigo 3º do Código Civil, de forma que, atualmente, somente são considerados absolutamente incapazes os menores de dezesseis anos, o que não se verifica na espécie.
Documentos vieram às fls.05/45.
A decisão de fl.46 deferiu prioridade de tramitação e, diante dos argumentos apresentados, recebeu o feito como dúvida inversa (fl.46).
O Oficial se manifestou às fls.51/55, esclarecendo que houve indeferimento e devolução do título à parte requerente, com cancelamento da prenotação n.1.441.017. No mérito, reiterou seu entendimento de que a prescrição aquisitiva não flui em desfavor do interdito, o que não é afetado pela alteração do artigo 3º do Código Civil. Juntou documentos às fls.56/65.
Diante da notícia de cancelamento da prenotação, determinou-se a reapresentação do título à serventia extrajudicial (fl.66).
A parte suscitada comunicou reapresentação e se manifestou acerca das informações do Oficial, sustentando que os precedentes apontados não se aplicam ao caso concreto, pois envolviam menores de idade, bem como que a alteração legislativa é relevante, pois, a partir de sua vigência, a prescrição aquisitiva somente deixou de correr contra os menores de dezesseis anos (fls.69/74).
O Oficial confirmou a validade da nova prenotação, de n.1.458.914, e reafirmou seu entendimento de que a prescrição aquisitiva não flui em desfavor do interdito, indicando jurisprudência (fls.79/84).
O Ministério Público opinou pela manutenção do óbice (fls.88/89).
A parte suscitada se manifestou contrariamente à opinião do Ministério Público, reiterando seus argumentos (fls.90/94).
É o relatório
Fundamento e decido.
A presente dúvida decorre de impugnação da própria parte requerente após rejeição do seu requerimento pelo Oficial, a qual não foi reconsiderada (fls.19/24), com prosseguimento nos termos do item 421.4, Cap. XX, das Normas de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“421.4. A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP e item 39 deste capítulo”.
No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.
Conforme a ata notarial inicialmente produzida (fls.27/31), o que se busca é a regularização do domínio de área correspondente à metade do imóvel objeto da matrícula n.73.364 do 11º RI da Capital (reconhecimento extrajudicial de usucapião extraordinária nos termos do artigo 1.238, parágrafo único, do Código Civil).
O Oficial constatou que o titular do domínio foi qualificado como interditado quando adquiriu a propriedade do bem por escritura lavrada em 30 de novembro de 1981 (R.4/73.364, fl.35).
Assim, por entender que a prescrição aquisitiva não flui em desfavor dele, absolutamente incapaz, concluiu pela impossibilidade jurídica do pedido.
A oposição da parte suscitada é no sentido de que, com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei n.13.146/2015, nova redação foi dada ao artigo 3º do Código Civil, de modo que são considerados absolutamente incapazes apenas os menores de dezesseis anos, contra os quais não corre a prescrição (artigo 198, inciso I, do Código Civil).
O problema é que, no caso concreto, há reconhecimento de incapacidade absoluta por sentença que transitou em julgado em 17 de julho de 1979 (fl.38). Ou seja, antes da entrada em vigor da Lei n. 13.146/2015, sendo que, na forma do artigo 756 do Código de Processo Civil, o levantamento da curatela depende de providência jurisdicional.
A situação do proprietário, pessoa reconhecida judicialmente como absolutamente incapaz, não pode, portanto, ser desconsiderada em procedimento administrativo e deverá ser debatida na via judicial, com garantia de contraditório e ampla defesa.
Esta conclusão se reforça pelo seguinte fator: a lei não pode prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito nem a coisa julgada (artigo 5º, XXXVI, da CF).
Ademais, segundo entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, se a incapacidade absoluta por enfermidade ou deficiência mental foi declarada anteriormente à entrada em vigor da Lei n.13.146/2015, deve incidir o artigo 198, I, do Código Civil, bem como a redação original do seu artigo 3º, obstando-se a fluência do prazo prescricional até que cesse a incapacidade (destaques nossos):
“PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. PRESCRIÇÃO. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAL E INFRACONSTITUCIONAL. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N. 126 DA SÚMULA DESTA CORTE. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO EM DECISÃO DA PRESIDÊNCIA DESTA CORTE. MANUTENÇÃO DA DECISÃO. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO.
I – Na origem, trata-se de ação ordinária em que se pretende a concessão de benefício de pensão por morte. Na sentença, extinguiu-se o feito em razão do reconhecimento da prescrição. No Tribunal a quo, a sentença foi reformada para julgar procedente o pedido.
II – Verifica-se que a controvérsia foi dirimida, pelo Tribunal de origem, sob enfoque constitucional e infraconstitucional, competindo ao Supremo Tribunal Federal eventual reforma do acórdão recorrido, sob pena de usurpação de competência inserta no art. 102 da Constituição Federal. Considerando que não há recurso extraordinário interposto nos autos, incide o enunciado n. 126 da Súmula desta Corte, segundo o qual:
“É inadmissível recurso especial, quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta recurso extraordinário.”
Nesse sentido: AgInt no REsp 1.626.653/PE, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 26/9/2017, DJe 6/10/2017; REsp 1.674.459/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 3/8/2017, DJe 12/9/2017.
III – O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n. 626489/SE, em repercussão geral, (Tema 313) firmou entendimento de que o direito à previdência social constitui direito fundamental e, uma vez implementados os pressupostos de sua aquisição, não deve ser afetado pelo decurso do tempo, inexistindo, por conseguinte, prazo decadencial para a concessão inicial do benefício previdenciário (fl. 190). […] Ademais, verifico que a demandante teve sua incapacidade absoluta declarada em 25/6/2014, com o trânsito em julgado da ação de interdição, Processo n. 9 001/1.12.0108593-5 (fl. 10), razão pela qual incide, também, na hipótese, o art. 198, I, do Código Civil, segundo o qual não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes, dentre os quais, na redação original do art. 3°, incluíam-se “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos”; bem como o art. 169, I, do Código Civil de 1916, o qual obstava o transcurso do prazo prescricional “contra os incapazes de que trata o art. 5”.
IV – Agravo interno improvido” (AgInt no AREsp n. 2.120.222/RS, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 7/12/2022, DJe de 13/12/2022).
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PRESCRIÇÃO EM RELAÇÃO A PARTE ABSOLUTAMENTE INCAPAZ. NÃO OCORRÊNCIA. ACÓRDÃO RECORRIDO EM DESACORDO COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ.
1. A fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo para firmar seu convencimento está em desacordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual não flui o prazo prescricional contra os absolutamente incapazes, inclusive os interditados ainda que sob curatela. Nesse sentido: AgInt no AREsp 1.164.869/MG, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe 21/5/2018; REsp 1.684.125/SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 13/3/2018; REsp 908.599/PE, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 17/12/2008.
2. “Portanto, no caso de pessoas absolutamente incapazes, o prazo prescricional fica impedido de fluir, de tal maneira que, enquanto perdurar a causa, inexiste prescrição a ser contada para efeito de pretensão. A prescrição, na hipótese, só se iniciará se, e quando, cessada a incapacidade” (REsp 1.469.825/RS, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 19/4/2018).
3. Agravo Interno não provido” (AgInt no REsp n. 1.902.058/PR, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 19/4/2021, DJe de 1/7/2021).
A qualificação negativa, neste contexto, subsiste.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida para manter a rejeição do pedido de usucapião extrajudicial.
Não há custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, arquivem-se os autos.
P.R.I.C.
São Paulo, 10 de maio de 2023.
Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Juiz de Direito.
(DJe de 12.05.2023 – SP)