1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Registro de Venda e Compra – Vendedora se apresenta como sociedade civil, figura societária inexistente na legislação atual – Exigência de adaptação necessária, nos termos do artigo 2.031 do Código Civil – Não averbação desta situação na matrícula do imóvel – Violação aos princípios da continuidade e da especialidade subjetiva – Dúvida procedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1044889-13.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: Daniel Steavnev e outro

Suscitado: 9º Cartório de Registro de Imóvel de São Paulo

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida inversa suscitada por Daniel Steavnev e Marta Zuleica de Queiroz Steavnev em face do Oficial do 9º Registro de Imóveis da Capital, tendo em vista negativa em se proceder ao registro de escritura de venda e compra que tem por objeto o imóvel da matrícula n. 20.271 daquela serventia (prenotação n.756.420).

A recusa se deu porque a vendedora se apresenta como sociedade civil, figura societária inexistente na legislação atual, pelo que foi exigida a adaptação necessária, nos termos do artigo 2.031 do Código Civil.

A parte suscitada informa que a vendedora agiu autorizada por alvará judicial, extraído da Apelação n.224.367.4/2 (disputa judicial sobre a dissolução da sociedade, com apuração de haveres de sócio falecido); que a última alteração contratual ocorreu em 2005, com o ingresso de novo sócio; que a adequação da sociedade ainda não ocorreu em razão da ação judicial noticiada; que se manifestou naquele feito, requerendo alvará judicial para o registro pretendido, conforme sugerido pelo Oficial na nota de devolução. O pedido foi indeferido, com orientação para suscitação de dúvida a esta Corregedoria.

Documentos vieram às fls. 05/45.

A decisão de fl. 46 determinou a comprovação de prenotação válida.

Com o cumprimento, o Oficial prestou informações às fls. 52/53, confirmando a nova prenotação do título, de n.756.420, e sua qualificação negativa. Observa que o documento não faz menção ao alvará citado pela parte suscitada nem à alteração do contrato social de 2005, estando a representação baseada apenas no contrato social de 1987, o qual não está adaptado ao novo Código Civil, o que implica em irregularidade da sociedade e contamina a representação da outorgante no negócio em estudo. Documentos foram produzidos às fls. 54/70.

O Ministério Público opinou pela manutenção do óbice (fls. 74/76).

É o relatório.

Fundamento e decido.

De início, vale destacar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.

Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:

“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.

No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.

Conforme consta na matrícula, a titular do domínio é Equipe Legis Assessoria e Empreendimentos Sociedade Civil Ltda, que adquiriu o imóvel em 1984 (R.5/20.271, fl.69). Agora, a mesma pessoa jurídica comparece na escritura lavrada em 04 de novembro de 2021, vendendo referido bem para a parte suscitada (fls.56/63).

Ocorre que, com a entrada em vigor do novo Código Civil (Lei n.10.406/2002), as formas societárias previstas na legislação anterior foram profundamente alteradas, motivo pelo qual houve previsão de que as associações, sociedades e fundações deveriam se adaptar à nova lei.

Para tanto, o legislador concedeu prazo certo, que foi oportunamente prorrogado, mas venceu definitivamente em 11 de janeiro de 2007, tal como previsto no artigo 2.031 do CC, com a redação dada pela Lei n.11.127/05.

Ao analisar a questão, o Superior Tribunal de Justiça concluiu que todos os atos praticados pelas pessoas jurídicas posteriormente à entrada em vigor do novo regime jurídico devem se amoldar às novas disposições normativas, sob pena de nulidade ou ineficácia (destaque nosso):

“RECURSO ESPECIAL. ALTERAÇÃO DE ESTATUTO DA ASSOCIAÇÃO. DELIBERAÇÃO OCORRIDA EM 27/10/2003. MODIFICAÇÃO REALIZADA POR ATO DO CONSELHO DELIBERATIVO. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DAS NOVAS REGRAS ESTATUÍDAS PELO CÓDIGO CIVIL DE 2002. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA ASSEMBLEIA GERAL. ART. 59 DO CC/2002. NULIDADE MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO.

1. O art. 2.033 do Código Civil de 2002 dispôs que as modificações dos atos constitutivos das pessoas jurídicas referidas no art. 44, entre as quais se incluem as associações, regem-se, desde logo, por este Código, em vigor desde 11/1/2003.

2. O termo “adaptar”, previsto no art. 2.031 do CC/2002, apenas estabelece que as pessoas jurídicas deverão ser amoldar, dentro do prazo estipulado, ao regime jurídico em vigor a partir de 11/1/2003.

Assim, todos os atos praticados posteriormente àquela data deverão respeitar as novas disposições normativas, sob pena de nulidade e/ou ineficácia.

3. A alteração do estatuto, realizada em 27/10/2003, por ato do Conselho Deliberativo da associação esportiva recorrente, órgão distinto da Assembleia Geral, é nula de pleno direito, por violação ao art. 59 do CC/2002.

4. Recurso especial não provido” (REsp n. 1.444.707/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 7/6/2016, DJe de 3/8/2016.)

A pessoa jurídica, portanto, não pode se apresentar em novos negócios jurídicos sob forma societária que não existe mais (sociedade civil), notadamente pela insegurança jurídica gerada quanto à legitimidade de sua representação.

Importante ressaltar que, no caso concreto, há informação de processo judicial em curso no qual se debatem a dissolução da sociedade e a apuração de haveres de sócio falecido (autos n.0601673-73.2000.8.26.0100, fl.43).

Ainda que tenha havido autorização judicial para continuidade da empresa mediante recomposição do quadro societário (acórdão de fls.33/39), com a consequente alteração e consolidação do contrato social ocorrida em 2005, a qual incluiu adequação às disposições do Novo Código Civil e alteração da razão social para Equipe Legis Assessoria e Empreendimentos Ltda – Sociedade Simples (fls.25/30), essa alteração não consta na matrícula nem na escritura apresentada para registro, o que importa em violação aos princípios da continuidade e da especialidade subjetiva.

Com efeito, o artigo 231 da Lei de Registros Públicos determina que, no preenchimento dos livros, sejam lançados “por ordem cronológica e em forma narrativa, os registros e averbações dos atos pertinentes ao imóvel matriculado”. Garante-se, assim, concretude ao princípio da continuidade registral.

Tendo a pessoa jurídica alterado os termos do seu contrato e, principalmente, sua denominação social, essa alteração deve ser averbada na matrícula, como determina o artigo 167, II, 5, da Lei de Registros Públicos, mediante apresentação também do acórdão citado.

Outrossim, se a pessoa jurídica assumiu nova denominação social, não pode comparecer em negócio jurídico com nome diferente, como ocorrido no caso (fl.56):

“EQUIPE LEGIS ASSESSORIA E EMPREENDIMENTOS S/C LTDA., sociedade empresária limitada, (…) com sua Alteração de Contrato Social realizado em 26/08/1987, foi registrado no 3º Oficial de Registro de Títulos e Documentos de São Paulo – SP, sob o nº102.002, em 21 de Setembro de 1987, da qual uma Certidão de Breve Relato, emitida em 18/10/2021, os quais ficam arquivados nestas notas sob o Protocolo nº224.863 (…)”.

Imprescindível ainda, em consequência, retificação da escritura de modo a retratar a atual situação cadastral da vendedora.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada para manter os óbices registrários apontados na nota de exigência de fls.66/67.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe.

P.R.I.C.

São Paulo, 17 de maio de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito

(DJe de 19.05.2023 – SP)