1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Escritura pública de inventário e adjudicação – Exigência de reconhecimento judicial da união estável entre o falecido e a companheira – Inexistência de escritura pública ou decisão judicial reconhecendo a união estável – Comparecimento dos colaterais (irmãs do falecido), únicas interessadas na hipótese, que manifestaram expressa e integral concordância com o conteúdo da escritura pública de inventário e adjudicação, reconhecendo a existência da união estável – Dúvida improcedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1050056-11.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: Teresinha Aparecida de Oliveira Carvalho e outro

Suscitado: Décimo Cartório de Registro de Imóveis

Prioridade Idoso

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida inversa suscitada por Teresinha Aparecida de Oliveira e Amélia Guedes de Oliveira Ferreira em face do Oficial do 10º Registro de Imóveis da Capital, após negativa de registro de escritura pública de inventário e adjudicação dos bens deixados por Rodolfo Guedes de Oliveira, que envolve o imóvel da matrícula n. 118.759 daquela serventia (prenotação n. 596.297).

A parte sustenta que são coproprietárias do bem em questão e irmãs do de cujus Rodolfo Guedes de Oliveira (também proprietário), que veio a óbito sem filhos, deixando como única herdeira Adilza Nunes Barros, com quem mantinha união estável; que, aberta a sucessão do falecido, seus bens foram inventariados e adjudicados por meio de escritura de inventário e adjudicação lavrada perante o 14º Tabelião de Notas da Capital; que, quando o título foi levado a registro, o 10º Registro de Imóveis elaborou nota devolutiva, informando que seria necessária prévia declaração judicial de reconhecimento de união estável entre a adjudicante e o de cujus; que, diante da negativa, houve reapresentação pelas próprias suscitantes, com expressa e integral concordância com o título e o registro, bem como declaração de ciência acerca da existência da união estável; que o cartório, em sua negativa de registro, fundamenta-se em dispositivo não mais vigente no ordenamento jurídico (item 113 do Capítulo XVI das NSCGSP e Provimento CG 56/2019); que houve retificação de valores expressos no título por extenso (ata retificadora), como requerido no item “2” da primeira nota de devolução do cartório.

Documentos vieram às fls. 05/19.

A decisão de fl. 20 determinou comprovação de prenotação válida e dos requisitos legais para deferimento da prioridade de tramitação.

Com o cumprimento, deferiu-se a prioridade, com prosseguimento do feito (fl. 28).

O Oficial se manifestou às fls. 32/33, informando que a parte reapresentou, em 26/04/2023, o título (escritura de inventário e adjudicação de bens junto ao 14º Tabelião de Notas da Capital), que foi novamente prenotado (n. 596.297); que, na primeira nota devolutiva (prenotação 577.095), constavam duas exigências: 1) ação judicial para reconhecimento da união estável entre a adjudicante e o falecido, 2) retificação da escritura nos itens 3.1 e 6.1, tendo em vista a divergência entre os valores expressos por extenso (duzentos e setenta e dois mil, seiscentos e quarenta e seis reais e quarenta centavos) e em numeral (R$272.464,40); que, no dia 14/09/2022, a escritura foi reapresentada (prenotação n. 583.023), com requerimento firmado pela parte suscitante, únicas irmãs vivas do falecido, as quais reconheciam e concordavam com o conteúdo do documento, bem como com a existência da união estável; que as exigências foram mantidas; que, em seguida, a parte apresentou ata refiticadora lavrada em 05/04/2023, sanando a exigência de divergência de valores; que, não tendo havido qualquer modificação, a exigência relativa à necessidade de reconhecimento judicial da união estável foi mantida.

O Ministério Público opinou pela manutenção do óbice (fls. 51/53).

É o relatório.

Fundamento e decido.

De início, vale ressaltar que o Oficial dispõe de autonomia no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No mérito, porém, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

A união estável é regulada pelo artigo 1.723 do Código Civil:

É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

A regra deixa claro que a união estável é situação de fato que conta com reconhecimento por nosso sistema jurídico, sendo capaz de produzir efeitos jurídicos para os envolvidos independentemente de celebração formal, como se exige para o casamento.

Relativamente à sucessão, o STF declarou inconstitucional a distinção legal do regime sucessório entre cônjuges e companheiros:

“Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Aplicação do artigo 1.790 do Código Civil à sucessão em união estável homoafetiva. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros.

1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011)

2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.

3. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública.

4. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”. (RE 646721, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-09-2017)

Com base nisso, o STJ tem afastado a aplicação do artigo 1.790 do Código Civil nos casos de sucessão que envolvam companheiros.

Aplicam-se, então, as disposições do cônjuge:

“Art. 1.838. Em falta de descendentes e ascendentes, será deferida a sucessão por inteiro ao cônjuge sobrevivente.

Art. 1.839. Se não houver cônjuge sobrevivente, nas condições estabelecidas no art. 1.830, serão chamados a suceder os colaterais até o quarto grau”.

Contudo, o casamento pode ser comprovado documentalmente, enquanto a união estável, quando não formalizada, é situação de fato.

Assim, para que a condição da companheira seja refletida de forma segura nos atos registrais, as normas de serviço exigem reconhecimento expresso, seja por declaração judicial, seja pela participação dos demais sucessores e herdeiros do falecido no ato formalizado pela escritura (itens 113 e 114, do Cap. XVI, das NSCGJ).

A aplicação dos itens 113 e 114, do Cap. XVI, das NSCGJ, se destina justamente a registrar a ausência de conflito entre os sucessores, garantindo que a via judicial do inventário foi adequadamente dispensada (artigo 2015 do CC), bem como assegurando que houve reconhecimento sobre a união estável por todos os interessados:

“113. O companheiro que tenha direito à sucessão é parte, observada a necessidade de ação judicial se o autor da herança não deixar outro sucessor ou não houver consenso de todos os herdeiros, inclusive quanto ao reconhecimento da união estável.

114. A meação de companheiro pode ser reconhecida na escritura pública, desde que todos os herdeiros e interessados na herança absolutamente capazes, estejam de acordo.”

No caso, embora não haja escritura pública ou decisão judicial reconhecendo a união estável e o título apresentado a registro somente tenha contado com a participação da companheira supérstite, o fato é que as únicas interessadas na hipótese, irmãs do de cujus, manifestaram expressa e integral concordância com o conteúdo da escritura pública de inventário e adjudicação, reconhecendo a existência da união estável (fls. 01/04, 11/14 e 15/16).

Neste contexto, de comprovada ausência de conflito entre todos os interessados, não se vislumbra efetivo óbice para o ingresso.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida e determino o registro do título.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 22 de maio de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza de Direito.

(DJe de 24.05.2023 – SP)