1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária – Indisponibilidade em nome do devedor fiduciante – Expectativa de direito – A indisponibilidade recai somente sobre a possibilidade daquele que teve os bens constritos de dispor – Como o fiduciante detém apenas a expectativa de direito e não a propriedade do bem em si, consequentemente já não poderia dele dispor – O entendimento de que a indisponibilidade na matrícula obsta a consolidação da propriedade vai de encontro ao conceito do próprio instituto da alienação fiduciária – Necessidade de comunicar o juízo das penhoras quando o bem é arrematado judicialmente devido a outra penhora existente na matrícula, deverá o Oficial, após a averbação da consolidação da propriedade, comunicar o juízo da ordem de indisponibilidade sobre a providência realizada – Dúvida improcedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1056262-41.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Pedido de Providências – Registro de Imóveis

Requerente: Itaú Unibanco S.A

Requerido: 14º Oficial de Registro de Imoveis da Capital

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de pedido de providências formulado por Itaú Unibanco S/A em face do Oficial do 14º Registro de Imóveis da Capital, para, na qualidade de credora fiduciária, obter averbação da consolidação da propriedade do imóvel de matrícula n. 168.599 (prenotação n. 870.543).

O ato registral foi negado em virtude da existência de ordem de indisponibilidade sobre os direitos do devedor fiduciante (processo de autos n. 1000100-75.2018.5.02.0017, 17ª Vara do Trabalho da Capital).

A parte sustenta que a indisponibilidade não atinge a alienação fiduciária sobre imóvel, limitando-se tão somente aos direitos que o devedor fiduciante possui sobre ele.

Documentos vieram às fls. 05/93.

A decisão de fls. 94/95 determinou que a parte apresentasse prenotação válida, o que foi atendido às fls. 98/100, com novos documentos (fls. 101/182).

O Oficial prestou esclarecimentos às fls. 184/186, no sentido de que o procedimento administrativo foi regularmente desenvolvido, com intimação dos devedores para purgação da mora, os quais não compareceram; que a consolidação da propriedade não pôde ser feita à vista de ordem de indisponibilidade expedida pelo Juízo da 17ª Vara do Trabalho da Capital (Av. 17), o qual foi notificado a se manifestar, mas permaneceu silente; que há necessidade, assim, de baixa da ordem de indisponibilidade. Documentos vieram às fls.187/203.

O Ministério Público opinou pelo acolhimento do pedido (fls. 207/209).

É o relatório.

Fundamento e decido.

De início, vale ressaltar que o registrador dispõe de autonomia no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/94), o que não caracteriza falha funcional.

No mérito, porém, a procedência é medida de rigor. Vejamos os motivos.

A alienação fiduciária de bem imóvel em garantia, conforme artigo 22 da Lei n. 9.514/97, é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. Ao devedor é conferida a posse direta sobre a coisa.

O devedor fiduciante detém uma expectativa de direito, ou seja, adimplindo as prestações, passará a exercer o domínio sobre o imóvel. A indisponibilidade, que grava matrícula do imóvel em nome do devedor, recai somente sobre a possibilidade daquele que teve os bens constritos de dispor. Como o fiduciante detém apenas a expectativa de direito e não a propriedade do bem em si, consequentemente já não poderia dele dispor.

O entendimento de que a indisponibilidade na matrícula obsta a consolidação da propriedade vai de encontro ao conceito do próprio instituto da alienação fiduciária, pois não há como a indisponibilidade recair sobre o próprio bem se o devedor ainda não detém a propriedade plena do imóvel.

Além disso, ainda que se considere que a indisponibilidade não recai sobre o bem, mas sobre os direitos do devedor, na prática, a indisponibilidade impede qualquer ato sobre os direitos do credor sobre o imóvel, como se vê no caso em tela, e a consolidação da propriedade não parece representar alienação dos direitos de aquisição, que feriria a indisponibilidade dos direitos de aquisição, já que não há ato de vontade do fiduciante nem mesmo transferência dos direitos, mas sim extinção por inadimplemento, com a consolidação da propriedade em favor do credor.

Impedir a consolidação da propriedade importa em deixar o bem indisponível tanto ao fiduciante quanto ao fiduciário por dívida do primeiro com terceiro, criando verdadeira preferência de crédito em prejuízo do fiduciário, já que este não pode executar sua garantia enquanto não levantada a indisponibilidade.

Note-se que o entendimento atual da E. Corregedoria Geral da Justiça é neste sentido (Recurso Administrativo n. 1117050-60.2019.8.26.0100 – Parecer CG 128/2020-E).

Não há, de fato, como a indisponibilidade recair sobre o próprio bem se o fiduciário ainda não possui a propriedade plena, de modo que incabível que tal restrição se estenda ao credor fiduciário e até mesmo aos demais credores que buscam no patrimônio do devedor a satisfação de suas obrigações.

A decisão deste juízo, que autorizou averbação da consolidação da propriedade mesmo com ordem de indisponibilidade em desfavor do devedor, foi mantida no parecer mencionado, de lavra do Juiz Assessor da Corregedoria Alberto Gentil de Almeida Pedroso, com aprovação pelo então Corregedor Geral da Justiça, Desembargador Ricardo Anafe, em solução diversa ao que até então vinha sendo adotado (destaques nossos):

“Entretanto, adentrando na análise do modelo idealizado pela Lei n.° 9.514/97 para alienação fiduciária, não parece existir óbice algum ao ato de consolidação da propriedade em favor do credor, desde que observado o procedimento legal pois a indisponibilidade não atinge especificamente o bem imóvel objeto do contrato, mas os direitos reservados ao devedor.

(…) O bem objeto de alienação fiduciária não encontra-se no patrimônio do devedor até quitação da dívida firmada entre as partes.

Assim, mostra-se equivocado impedir a consolidação da propriedade outrora resolúvel em definitivo em favor do credor sob o argumento de existir ordem de indisponibilidade.

Em reforço, vale trazer à baila posição atual da Jurisprudência sobre o não alcance das ordens judiciais de constrição de bens contra o executado (devedor) em relação as propriedades resolúveis oriundas de alienação fiduciária em favor dos credores fiduciários:

Agravo de Instrumento – Decisão que indeferiu o levantamento de indisponibilidade sobre bem imóvel alienado fiduciariamente – Impossibilidade – Alienação fiduciária anterior à citação do devedor na ação civil pública, bem como, à determinação de indisponibilidade – Ausência de comprovação da má-fé – Constrição que deve recair sobre os direitos derivados da alienação fiduciária – Decisão reformada Recurso provido. (TJSP, Agravo de Instrumento nº 2033445-14.2019.8.26.0000, Comarca: Ubatuba, Agravante: BANCO TRICURY S.A. Agravado: MUNICÍPIO DE UBATUBA, Rel: Drº Jefferson Moreira de Carvalho)”.

A mesma lógica se aplica ao caso concreto.

Isso porque o fiduciante, Roberto Kallur, contra quem recai a ordem de indisponibilidade (Av. 17 – fl. 196), não detém a propriedade plena do imóvel em conformidade com o que dispõe a Lei n. 9.514/97 (que instituiu e regulamentou a alienação fiduciária de coisa imóvel). A restrição, assim, não atinge especificamente o bem imóvel objeto do contrato, mas os direitos reservados a ele.

A ordem de indisponibilidade, em consequência, não pode se estender à parte credora fiduciária (Itaú Unibanco S/A – R.9 – fls. 194), o que afasta qualquer prejuízo a ela, que poderá consolidar a propriedade em seu favor em caso de inadimplemento.

A restrição produzirá efeitos apenas para o devedor fiduciante, que não poderá transferir seus direitos nem eventual propriedade que venha a adquirir no caso de eventual extinção da garantia enquanto perdurar a ordem de indisponibilidade.

Neste contexto, não resta dúvida de que é possível a averbação da consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, mesmo quando há indisponibilidade averbada contra o devedor fiduciante.

Ressalto que a averbação da consolidação da propriedade não trará como consequência o cancelamento automático da ordem de indisponibilidade emanada pelo Juízo da 17ª Vara do Trabalho da Capital, devendo o credor fiduciário formular pedido neste sentido junto àquele juízo, que é o único competente para revogar sua própria determinação.

Sem prejuízo, da mesma forma que o Oficial deve comunicar o juízo das penhoras quando o bem é arrematado judicialmente devido a outra penhora existente na matrícula, deverá o Oficial, após a averbação da consolidação da propriedade, comunicar o juízo da ordem de indisponibilidade sobre a providência realizada.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido de providências para determinar a averbação da consolidação da propriedade no caso (matrícula n. 168.599, prenotação n. 870.543), com comunicação ao juízo da ordem de indisponibilidade.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 24 de maio de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito.

(DJe de 29.05.2023 – SP)