1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Escritura pública de inventário e partilha – Ausência de comprovação do regime de bens da herdeira, que é inglesa e casou-se em Londres, Inglaterra, onde mantém sua residência – Certidão de transcrição do casamento do casal, porém, não especifica o regime de bens adotado nem tampouco a existência de pacto antenupcial – Consulado Geral do Brasil em Londres esclareceu que o ordenamento jurídico do Reino Unido não estabelece regimes de bens, legais ou convencionais, pré-definidos, como ocorre no Brasil – Exigência impossível de cumprimento de acordo com a legislação do país, como no caso, o que será um entrave perpétuo ao registro, em prejuízo de direitos subjetivos – Solução possível é a apresentação de declaração de concordância dos cônjuges, com firma reconhecida, por meio da qual esclareçam se há comunicabilidade da propriedade. Ou seja, se a propriedade regularizada por negócio jurídico ou por decisão judicial é comum ou não – Dúvida improcedente.
SENTENÇA
Processo Digital nº: 1049744-35.2023.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: Décimo Cartório de Registro de Imóveis
Suscitado: Marilyn Pearl Caro
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 10º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Hena Rudla Ickowitz ante negativa de registro de escritura pública de inventário e partilha lavrada pelo 9º Tabelião de Notas de São Paulo, relativa ao imóvel da matrícula n. 11.330 daquela serventia (prenotação n. 594.608).
O óbice reside na ausência de comprovação do regime de bens da herdeira, Lily Rachel Ickowitz-Seidler, que é inglesa e casou-se em 05/11/2017 com Richard George Lewis Budden, também britânico, em Londres, Inglaterra, onde o casal mantém sua residência.
O Oficial informa que certidão expedida pelo Consulado-Geral do Brasil em Londres indica que, no ordenamento jurídico do Reino Unido, não há lei que estabeleça o regime de bens, legal ou convencional, de forma pré-definida como no Brasil; que, em casos semelhantes, de casamento em país estrangeiro com legislação não similar à brasileira sobre regime de bens, os Oficiais de Registro de Imóveis vêm enfrentando dificuldades, já que obrigados a qualificar negativamente o título; que a exigência é impossível de ser cumprida até mesmo pelos próprios nubentes diante do ordenamento jurídico de cada país.
Documentos vieram às fls. 04/66.
Em manifestação dirigida ao Oficial e em impugnação (fls. 07, 23 e 74/76), a parte suscitada aduz que nenhum regime de bens foi atribuído ao casamento da herdeira, uma vez que no Reino Unido, país com tradição do Commom Law, não há regulamentação sobre a matéria; que o casal permanece casado, sem jamais firmar pacto antinupcial, como se verifica da certidão de transcrição de casamento (fls. 34/35); que não se pretende a presunção/definição de regime de bens ante a omissão da certidão de casamento, mas que conste do registro simples informação de que os nubentes são casados de acordo com a legislação da Inglaterra, de modo que eventuais desdobramentos posteriores sejam resolvidos caso a caso; que a manutenção do óbice restringe os direitos de propriedade da herdeira, além de equivaler ao não reconhecimento da validade de casamentos realizados no exterior, o que vai de encontro com o que preconiza a Convenção de Haia, tratado de cujo Brasil é signatário.
O Ministério Público opinou pela procedência (fls. 70/72).
É o relatório.
Fundamento e decido.
De início, vale destacar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.
Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que se extrai do item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:
“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.
No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.
O artigo 176, §1º, III, item 2, alínea “a”, da LRP, exige a completa qualificação do adquirente no registro do imóvel, com indicação de seu estado civil:
“O Livro nº 2 – Registro Geral – será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.
§ 1º A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas: (…)
III – são requisitos do registro no Livro nº 2: (…)
2) o nome, domicílio e nacionalidade do transmitente, ou do devedor, e do adquirente, ou credor, bem como:
a) tratando-se de pessoa física, o estado civil, a profissão e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade, ou, à falta deste, sua filiação”.
Por sua vez, os itens 61 e 61.4, Cap. XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, estabelecem como requisito indispensável ao registro, no caso de pessoa casada, que se comprove o regime de bens adotado:
“61. A qualificação do proprietário, quando se tratar de pessoa física, referirá ao seu nome civil completo, sem abreviaturas, nacionalidade, estado civil, profissão, residência e domicílio, número de inscrição no Cadastro das Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda (CPF), número do Registro Geral (RG) de sua cédula de identidade ou, à falta deste, sua filiação e, sendo casado, o nome e qualificação do cônjuge e o regime de bens no casamento, bem como se este se realizou antes ou depois da Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977.
(…)
61.4. Tratando-se de brasileiros ou de estrangeiros casados no exterior, para evitar dúvida acerca da real situação jurídica dominial do imóvel, o regime de bens deve ser desde logo comprovado para constar do registro”.
No caso em análise, a herdeira foi qualificada no título como “Lily Rachel Ickowitz-Seidler, inglesa, gerente de projetos, nascida em 04/07/1987, em Londres, Inglaterra, portadora do passaporte 514591187 e CPF/MF 718.073.921/98, casada com Richard George Lewis Budden, aos 05/11/2017, em Londres, Inglaterra, conforme certidão do Distrito de Barnet, sob nº 13, pelas leis daquele país, devidamente apostilada, traduzida pela Tradutora Pública Juramentada Lúcia Helena de Sena França (Jucesp 330), aos 03/06/2022, no Livro 314, fls. 2, sob nº 32.635, registrada no 7º Registro de Títulos e Documentos desta Capital, sob o nº 2.065,017, aos 05/08/2022, residente e domiciliada à 8 Danescrop Avenue, em Londres, Inglaterra ” (fls. 16/22).
Note-se que, tratando-se de casamento contraído no exterior, deve ser observado o regime de bens vigente naquele país (domicílio dos nubentes), conforme prevê o artigo 7º, §4º, do Decreto-Lei n. 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro):
“Art. 7º A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.
(…)
§ 4º O regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal”.
A certidão de transcrição do casamento do casal, porém, não especifica o regime de bens adotado nem tampouco a existência de pacto antenupcial, com referência apenas de que foi apresentado documento (nos termos das NSCGJ), assinado pelos contraentes, que declaram que no país em que foi realizado o casamento, não há previsão legal sobre o regime de bens e que o Consulado não fornece qualquer declaração referente ao regime de bens (fls. 34/35).
O Consulado Geral do Brasil em Londres esclareceu que: “o ordenamento jurídico do Reino Unido não estabelece regimes de bens, legais ou convencionais, pré-definidos, como ocorre no Brasil” (fls. 24/25).
Assim, como a herdeira não está adequadamente qualificada em função da dúvida gerada sobre o regime de bens adotado por ocasião de seu casamento (que não pode ser presumido, por óbvio), o qual tem efeitos jurídicos relevantes (comunicação de patrimônio), não há como se permitir o ingresso do título no fólio real em respeito à segurança que se espera dos registros públicos.
Neste sentido:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – OMISSÃO QUANTO AO REGIME DE BENS ADOTADO QUANDO DO CASAMENTO DA ALIENANTE – CASAMENTO NO EXTERIOR – CÔNJUGE FALECIDO – DÚVIDA PROCEDENTE – RECURSO DESPROVIDO – O regime de bens há de constar expressamente da certidão de casamento. À míngua de expressa menção, não se presume a adoção do regime de reserva previsto na legislação do país em que realizado o matrimônio” (CSM Apelação n. 1094840-54.2015.8.26.0100 Rel. Des. Pereira Calças – j.14.10.2016).
Por outro lado, como bem ressaltado pelo Oficial e pela parte, a exigência em questão pode ser impossível de cumprimento de acordo com a legislação do país, como no caso, o que será um entrave perpétuo ao registro, em prejuízo de direitos subjetivos.
Neste contexto, uma solução possível é a apresentação de declaração de concordância dos cônjuges, com firma reconhecida, por meio da qual esclareçam se há comunicabilidade da propriedade. Ou seja, se a propriedade regularizada por negócio jurídico ou por decisão judicial é comum ou não.
Neste caso, portanto, entendo como possível reapresentação do título acompanhado de declaração da herdeira e de seu cônjuge estrangeiro, com manifestação expressa de concordância com a escritura de partilha e esclarecimento sobre a comunicabilidade ou não do patrimônio por ele regulado, o que deverá ser incluído no ato registral com referência a esta decisão.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada a fim de manter o óbice registrário, mas com a observação acima.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe.
P.R.I.C.
São Paulo, 26 de maio de 2023.
Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Juiz de Direito.
(DJe de 30.05.2023 – SP)