1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Formal de partilha – Imóvel não partilhado – Exigência de partilha – Princípio da continuidade – Bem mantido em condomínio, com pactuação de partilha posterior, que pode ser dispensada. Basta, para ingresso do título apresentado, averbação do divórcio do casal – Dúvida improcedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1051738-98.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 3º Oficial de Registro de Imóveis da Capital/sp

Suscitado: Luigi Mistretta Crisante

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 3º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Luigi Mistretta Crisante, menor, representado por seu genitor, Alexandre Crisante Santos, ante negativa de registro de formal de partilha expedido no processo de autos n.1036895-47.2017.8.26.0001 (arrolamento dos bens deixados por Gisele Cestari Mistratta), o qual envolve o imóvel da matrícula n.100.800 daquela serventia (prenotação 501.530).

A recusa se fundou na violação ao princípio da continuidade, uma vez que a documentação apresentada indica que, anteriormente ao falecimento da inventariada Gisele, ocorreu o divórcio dos coproprietários tabulares, Leandro Mantovanelli Pacheco e Gisele Cestari Mistratta, os quais estão qualificados na matrícula como casados pelo regime da comunhão parcial. Assim, há necessidade de se apresentar, para prévio registro, a partilha do imóvel em decorrência do divórcio ocorrido entre os proprietários, que adquiriram o bem de forma onerosa (R.3, de 22/01/2008).

O Oficial esclarece, ainda, que, por ocasião do divórcio, constou da escritura pública que o imóvel continuaria em condomínio e seria partilhado em momento posterior, o que não se comprovou.

Documentos vieram às fls.04/96.

Em manifestação dirigida ao Oficial (fls. 04/05), a parte suscitada aduz que, após o divórcio, não houve partilha do bem, permanecendo a propriedade em condomínio; que, com o falecimento da coproprietária Gisele e aberta a sucessão, expediu-se formal de partilha em favor de seu único filho, Luigi Mistretta Crisante (parte suscitada), que deverá substituí-la no registro. Nestes autos, porém, não foi apresentada impugnação (fl. 97).

O Ministério Público opinou pela improcedência (fls.107/108).

É o relatório.

Fundamento e decido.

No mérito, em que pese a cautela do Oficial suscitante, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

De início, vale destacar que os títulos judiciais não estão isentos de qualificação para ingresso no fólio real.

O Egrégio Conselho Superior da Magistratura já decidiu que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação Cível n. 413-6/7).

Neste sentido, também a Ap. Cível nº 464-6/9, de São José do Rio Preto:

“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental”.

E, ainda:

“REGISTRO PÚBLICO – ATUAÇÃO DO TITULAR – CARTA DE ADJUDICAÇÃO – DÚVIDA LEVANTADA – CRIME DE DESOBEDIÊNCIA – IMPROPRIEDADE MANIFESTA. O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal – crime de desobediência – pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado” (STF, HC 85911 / MG – MINAS GERAIS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, j. 25/10/2005, Primeira Turma).

Sendo assim, não há dúvidas de que a origem judicial não basta para garantir ingresso automático dos títulos no fólio real, cabendo ao oficial qualificá-los conforme as normas e os princípios que regem a atividade registral.

Em segundo lugar, é importante observar que o artigo 231 da Lei de Registros Públicos determina que, no preenchimento dos livros, sejam lançados “por ordem cronológica e em forma narrativa, os registros e averbações dos atos pertinentes ao imóvel matriculado”. Garante-se, assim, concretude ao princípio da continuidade registral.

O artigo 237 do mesmo diploma também estipula que “não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro”.

Por consequência, à vista dos documentos que instruem o formal de partilha e demonstram a alteração do estado civil dos coproprietários, o que ocorreu anteriormente à sucessão hereditária que deu origem ao título apresentado, de rigor o lançamento prévio do divórcio no fólio real.

De fato, o Registro n. 3 da matrícula n.100.800, copiada às fls. 93/95, indica que o imóvel foi adquirido por Leandro Mantovanelli Pacheco e Gisele Cestari Mistratta Pacheco por escritura de venda e compra lavrada em dezembro de 2007.

Naquela época, os titulares do domínio estavam casados pelo regime da comunhão parcial de bens, como demonstra a certidão de casamento de fl. 13 (casamento em 26/05/2007 e divórcio por escritura pública em 14/05/2012, quando ela voltou a assinar o nome de solteira, Gisele Cestari Mistratta). Gisele faleceu em 02/11/2017 (fl.10), sendo que sua parte no imóvel foi transferida para seu único filho e herdeiro, Luigi Mistretta Crisante (fls. 55/60).

Nesse contexto, a exigência de partilha prévia em virtude do divórcio, notadamente à vista do conteúdo da escritura de fls. 15/17, no sentido de que o único bem do casal seria mantido em condomínio, com partilha posterior, pode ser dispensada. Bastará, para ingresso do título apresentado, averbação do divórcio do casal.

Esta conclusão é confirmada, em que pese o entendimento de preservação do estado de mancomunhão até a efetiva partilha, pela existência de fundamento nas Normas de Serviço para se admitir que, com o divórcio ou a separação judicial, o regime de bens é extinto, de modo que a comunhão patrimonial se transforma em condomínio (nota lançada ao subitem 14, alínea “b”, do item 9, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, destaque nosso):

9. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

b) a averbação de:

(…)

14. escrituras públicas de separação, divórcio e dissolução de união estável, das sentenças de separação judicial, divórcio, nulidade ou anulação de casamento, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro;

NOTA: A escritura pública de separação, divórcio e dissolução de união estável, a sentença de separação judicial, divórcio, nulidade ou anulação de casamento será objeto de averbação, quando não decidir sobre a partilha de bens dos cônjuges, ou apenas afirmar permanecerem estes, em sua totalidade, em comunhão, atentando se, neste caso, para a mudança de seu caráter jurídico, com a dissolução da sociedade conjugal e surgimento do condomínio ‘pro indiviso“.

Assim, ex-cônjuges e proprietários registrários passam a poder dispor do patrimônio comum independentemente de partilha e sem violação ao princípio da continuidade, desde que averbada, previamente, a alteração do estado civil.

Neste sentido, havia decidido o Egrégio Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação Cível n. 079158-0/3, com relatoria do Exmo. Des. Luís de Macedo (destaque nosso):

“O recurso merece provimento. A recorrente, após sua separação judicial, adquiriu de seu ex-marido a metade ideal do imóvel residencial matriculado sob nº 41.629 no 8º Registro de Imóveis da Capital, havido em comum. Apresentada a registro a respectiva escritura pública de venda e compra instruída com certidão de casamento mencionando a separação judicial consensual, o Oficial exigiu o prévio ingresso no registro imobiliário da partilha dos bens comuns, providência, no seu entender, necessária à extinção da comunhão oriunda do regime matrimonial de bens, tese essa acolhida na sentença, ora atacada. Sem razão, porém. A jurisprudência deste Conselho Superior da Magistratura atualmente é no sentido de que a separação judicial põe termo ao regime de bens, transformando a comunhão até então existente em condomínio, permitindo a alienação dos bens pelos coproprietários, desde que averbada a alteração no estado civil, independentemente de prévio ingresso no fólio real da partilha dos bens comuns. Lembre-se com Ademar Fioranelli, um dos estudiosos das questões registrarias, ser ‘pacífico que nas separações, ou divórcios, inexistindo a partilha dos imóveis, nada impede que, mantida a comunhão dos imóveis agora ‘pro indiviso’, ambos os condôminos alienem a propriedade a terceiros, com preferência do outro condômino. Aos Oficiais basta atentar para a averbação obrigatória, antes da prática dos registros, das alterações do estado civil, exigindo o documento hábil consubstanciado em certidão do assento civil das alterações a teor do que dispõe o art. 167, II, n. 5, c.c. o parágrafo único do art. 246 da Lei 6.015/73′, observando que ‘julgados recentes do Colendo Conselho Superior da Magistratura paulista, no sentido de que nada obsta que, averbada a alteração do estado civil de separado ou divorciado, com a mudança do estado de comunhão para condomínio, ambos promovam a alienação o bem a terceiros, sem necessidade de exibição de formal de partilha para exame e eventual partilha ou atribuição a eventual prole, já que não cabe ao registrador estabelecer raciocínios hipotéticos’ (Ap. Cível nº 23.886-0/0-Catanduva- SP, Ap. Cível nº 23.756-0/8-Campinas-SP)’ (in “Direito Registral Imobiliário”, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001, pág. 92). Ante o exposto, dou provimento ao recurso para determinar, averbada a separação judicial dos contratantes, o registro da escritura pública de venda e compra”.

Esse mesmo entendimento passou a ser adotado por este juízo a partir do julgamento do processo de autos n.1108607-52.2021.8.26.0100, citado pelo Ministério Público em sua manifestação, sendo que a aplicação do precedente na hipótese se justifica pela ausência de conflito ou de possível prejuízo (a dúvida é suscitada pelo único herdeiro da coproprietária falecida, representado por seu pai, coproprietário do imóvel).

Não é demasiado pontuar que a averbação do divórcio não depende de prova sobre a existência ou não de partilha prévia dos bens comuns (apresentação ou averbação da escritura de divórcio), bastando apresentação da certidão de casamento com anotação do divórcio, o que pode ser providenciado, no caso concreto, à vista das certidões de fls. 13 e 14/17.

Note-se, ainda, que, como não houve partilha do imóvel entre o ex-casal, também não há que se falar em ocorrência de fato gerador de tributo a ser fiscalizada na hipótese.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida para autorizar o registro do título após averbação da alteração do estado civil dos proprietários tabulares, com anotação sobre a manutenção do imóvel em condomínio.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 29 de maio de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza de Direito.

(DJe de 31.05.2023 – SP)