1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Usucapião Extrajudicial – Confrontante interdito – Necessidade de procedimento judicial – Dúvida procedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1056196-61.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 7º Registro de Imóveis

Suscitado: Sueli Baena Alves Cardeal e outro

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 7º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Sueli Baena Alves Cardeal e João Roberto Alves Cardeal, à vista do indeferimento de processamento da usucapião extrajudicial do imóvel objeto da transcrição nº 2.189, do 3º Registro de Imóveis da Capital (prenotação 517.396).

O Oficial esclarece que a parte pretende o reconhecimento da usucapião extrajudicial do imóvel situado à Rua Grecco, nº 663, Alto da Mooca, originalmente inserido em área maior da transcrição nº 11.860, do 11º RI; no entanto, a referida transcrição foi cancelada por mandado judicial em 1.973, retornando o imóvel à disponibilidade da área maior da transcrição nº 2.189 do 3º RI, sob a titularidade dominial de Alexandre Gomes da Silva e Esther Satyro Silva; dentre outras exigências formuladas em nota devolutiva datada de 04/04/2023, observou-se que Miriam di Croce, uma das titulares de domínio do imóvel confrontante da lateral esquerda, é pessoa interditada, sendo seu irmão Giancarlo di Croce nomeado como seu curador definitivo, nos autos do Processo nº 103937-60.2020.8.26.0100; aponta a necessidade de atuação do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica, devendo a parte suscitada se socorrer das vias ordinárias para da pretensão.

O Oficial esclarece, ainda, que, no caso dos autos, o imóvel usucapiendo não está perfeitamente descrito e individualizado em alguma matrícula ou transcrição, estando inserido em área maior da transcrição n. 2.189, do 3º RI, não sendo possível a dispensa da manifestação dos confrontantes; que a matrícula confrontante n. 33.350, a qual a interditada é coproprietária, está precariamente descrita, não constando as medidas dos fundos, de uma das laterais e o encerramento de área desse imóvel, entendendo crucial a manifestação dos confrontantes acerca das divisas com seus imóveis, tendo em vista a possibilidade (ainda que pequena) de sobreposição parcial das áreas limítrofes, o que poderia ensejar prejuízo aos confrontantes; que, em que pese as anuências prestadas pelos demais coproprietários do referido imóvel confrontante, não pode assegurar que as dividas e os direitos da interditada estão preservados; que a anuência prestada pelo curador não foi autorizada judicialmente pelo Juízo da interdição, precedida de prévia manifestação do Ministério Público. Assim, tendo positivado a presença de interesse de pessoa declarada absolutamente incapaz, à míngua de previsão legal ou normativa de atuação do Ministério Público na esfera extrajudicial, o procedimento deverá tramitar na via judicial.

Cópia integral do procedimento administrativo veio às fls. 05/214.

Em manifestação dirigida ao Oficial e em impugnação (fls. 06/09 e 215/219), a parte suscitada alega que dentre as exigências constantes da nota devolutiva, a referente à impossibilidade do trâmite do pedido de usucapião na via administrativa, merece ser revista; que consta no memorial descritivo e planta do imóvel a anuência prestada pelo curador definitivo da interditada, o qual recebeu poderes para praticar todos os atos inerentes da vida civil de natureza negocial e patrimonial, por sentença transitada em julgado; que as medidas constantes na planta e no memorial descritivo do imóvel usucapiendo, elaborados por profissional habilitado, encontram-se condizentes com as divisas dos imóveis confrontantes; que a ata notarial consignou a identificação visual das divisas dos imóveis em comento; que, além de Miriam Di Croce (25% da propriedade), os demais coproprietários do imóvel da matrícula confrontante 33.350, Enrichetta Di Croce com (50% da propriedade) e Giancarlo di Croce (25% da propriedade), anuíram favoravelmente com a descrição técnica do imóvel usucapiendo, inexistindo oposição ou litígio.

Juntou documentos às fls. 220/233.

O Ministério Público opinou pela procedência, com a manutenção da negativa de prosseguimento do expediente pela via extrajudicial (fls. 236/237).

É o relatório

Fundamento e decido.

De início, é importante ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

Nota-se, ainda, que não há insurgência da parte suscitada contra todas as exigências formuladas pelo Oficial. A impugnação concentra-se apenas no indeferimento do prosseguimento do feito pela via administrativa ante a constatação de pessoa interditada legitimada no processo (coproprietária de imóvel confrontante de matrícula n. 33.350), e por consequência a necessidade de atuação do Ministério Público, o que não pode se dar pela via extrajudicial (fls. 10/13), de modo que a dúvida resta prejudicada.

Ainda assim, como estamos na via administrativa, passo à análise do óbice impugnado, o que é possível segundo entendimento do E. Conselho Superior da Magistratura:

“REGISTRO DE IMÓVEIS Recusa de ingresso de título Resignação parcial Dúvida prejudicada Recurso não conhecido Análise das exigências a fim de orientar futura prenotação. Correta descrição dos imóveis envolvidos em operações de desdobro e fusão – Princípio da especialidade objetiva – Manutenção das exigências. Exibição de certidões negativas de débitos federais, previdenciários e tributários municipais – Inteligência do item 119.1. do Cap. XX das NSCGJ – Precedentes deste Conselho – Afastamento das exigências. Exibição de certidões de ações reais, pessoais reipersecutórias e de ônus reais – Exigência que encontra amparo na letra “c” do item 59 do Capítulo XIV das NSCGJ e na Lei nº 7.433/1985 – Manutenção das exigências” (Apelação n.1000786-69.2017.8.26.0539 Relator Des. Pereira Calças).

No mérito, a dúvida comporta ser acolhida. Vejamos os motivos.

A parte pretende o reconhecimento da usucapião extrajudicial, na modalidade extraordinária, do imóvel situado à Rua Grecco, nº 663, Alto da Mooca, nesta Capital, originalmente inserido em área maior da transcrição nº 11.860, do 11º RI. Segundo informações prestadas pelo i. Oficial Registrador, referida transcrição foi cancelada por mandado judicial em 1.973, retornando o imóvel à disponibilidade da área maior da transcrição nº 2.189 do 3º RI, sob a titularidade dominial de Alexandre Gomes da Silva e Esther Satyro Silva.

Dentre as exigências formuladas através de nota devolutiva, o Oficial constatou que uma das titulares de domínio do imóvel confrontante pela lateral esquerda, Miriam di Croce, é pessoa incapaz, interditada, sendo seu irmão Giancarlo di Croce nomeado como seu curador definitivo, nos autos do processo de interdição nº 103937-60.2020.8.26.0100.

O Oficial destacou, ainda, que o imóvel usucapiendo não está perfeitamente descrito e individualizado, não sendo objeto de matrícula ou transcrição, encontradose inserido em área maior da transcrição n. 2.189, do 3º RI, de forma que não é possível a dispensa da manifestação dos confrontantes.

Além disso, foi apontado pelo Oficial que a matrícula confrontante nº 33.350, da qual a interditada é coproprietária, está precariamente descrita, não constando as medidas dos fundos, de uma das laterais e o encerramento de área desse imóvel.

Neste contexto, não é possível a dispensa da manifestação dos confrontantes, nos termos do art. 10, § 10 do Provimento 65/17 do CNJ, justamente porque ausente a perfeita correspondência entre a descrição tabular e a área objeto do requerimento de usucapião.

Portanto, nem o imóvel objeto da usucapião, nem o imóvel confrontante objeto da matrícula n. 33.350 estão perfeitamente descritos e caracterizados em transcrição ou na matrícula.

Como é cediço, nos termos do artigo 178 do Código de Processo Civil, três hipóteses que justificam a atuação do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica: quando houver interesse público ou social, interesse de incapazes e nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e urbana.

Relevante mencionar, ainda, que a consequência da falta de intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica, nos casos em que a lei exige sua participação, é a nulidade do processo, como preceituam os artigos 2795, caput, §1º e § 2º e 967, III, “a”6, do Código de Processo Civil.

Ademais, como bem sinalizado pelo parquet, o § 2º do artigo 141, do Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo, prevê que a falta de autodeterminação torna indisponível o direito do interessado e legitima a intervenção do Ministério Público. Já o a o artigo 277, inciso II, do mesmo regulamento determina que o Ministério Público deverá intervir como fiscal da lei nas ações individuais de usucapião de imóvel em que haja interesse de incapazes.

No caso em apreço, em que pese a anuência manifestada pelo curador definitivo nomeado, diante da inexatidão existente nas descrições dos imóveis usucapiendo e confrontante (não constando as medidas dos fundos, de uma das laterais e o encerramento de área), a fim de preservar os interesses da interditada e, principalmente, evitar futura nulidade, a intervenção do Ministério Público se faz necessária.

A propósito, confira-se a ementa do seguinte julgado deste Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, em que se decretou a nulidade de sentença proferida em ação de usucapião, por falta de intervenção do Ministério Público, na situação em que a requerida era interditada:

APELAÇÃO USUCAPIÃO. Sentença de procedência. Recurso dos requeridos. PRELIMINAR. Decretação de nulidade ante a falta de intervenção do Ministério Público em primeiro grau. Acolhimento. Requerida interditada, sendo indispensável a intimação do Ministério Público para intervir no feito. Inteligência do artigo 279 do CPC. Prejuízo presumido, com o advento da sentença que foi contrária aos interesses da interditada. Confirmação do prejuízo por parte do Ministério Público de segundo grau, em obediência ao §2º do art. 279, CPC. Nulidade verificada, a contar da data em que o Ministério Público que deixou de ser intimado para atuar em primeiro grau. RECURSO PROVIDO. (TJSP; Apelação Cível nº 1020866-87.2017.8.26.0625; 2ª Câmara de Direito Privado; Relator JOÃO BAPTISTA GALHARDO JÚNIOR; Dje. 25 de abril de 2022).

Posto isto, considerando que o imóvel usucapiendo não está perfeitamente descrito e caracterizado em matrícula ou transcrição e, ainda, que a matrícula do imóvel confrontante, cuja coproprietária é interditada, está precariamente descrita, faltando as medidas dos fundos, de uma das laterais e o encerramento da área desse imóvel, na espécie, o procedimento de usucapião não poderá prosseguir na via extrajudicial.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter a extinção da usucapião extrajudicial, devendo a parte interessada se valer da via judicial, ante a necessidade de atuação do Ministério Público.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, arquivem-se os autos.

P.R.I.C.

São Paulo, 05 de junho de 2023.

Renata Pinto Lima Zanetta

Juíza de Direito

(DJe de 07.06.2023 – SP)