1ª VRP|SP: Dúvida – Registro de Imóveis – Escritura de compra e venda – Vaga excedente ainda não alienada – Impossibilidade de dissociação entre a unidade habitacional e a vaga de garagem antes vinculada – Dúvida procedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1070454-76.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: Adriana Della Manna e outros

Suscitado: 10º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida inversa suscitada por Adriana Della Manna, Marcelo Della Manna, Ricardo Della Manna e Fabiana Monteiro Conti Della Manna em face do Oficial do 10º Registro de Imóveis da Capital após negativa de registro de escritura de compra e venda lavrada pelo 14º Tabelião de Notas da Capital, relativa aos imóveis das matrículas n. 100.712 e 100.776 daquela serventia (prenotação n. 598.843).

O óbice reside na necessidade de alienação do apartamento concomitantemente com todas as vagas de garagem para os mesmos compradores ou a outro condômino, já que a venda como foi feita viola os preceitos do artigo 2º, § 2º, da Lei 4.591/64, e do artigo 1.331, § 1º, do Código Cívil.

A parte sustenta que adquiriu os imóveis das matrículas n. 100.712 e 100.776, mas uma vaga excedente de propriedade dos vendedores não foi transacionada; que o entendimento do Oficial está equivocado, pois a vaga excedente não está vinculada a nenhuma unidade na sua criação; que o Código Civil proíbe que as vagas de garagem sejam alienadas a terceiros estranhos ao condomínio, mas não há qualquer previsão legal acerca das pessoas que já são proprietárias; que a hipótese é atípica; que o fato de os antigos proprietários ainda não tererem alienado a sua última vaga autônoma não pode nem deve ser óbice ao registro da compra e venda realizada; que o registro não atingirá o interesse dos outros condôminos por não alterar as áreas comuns ou áreas de propriedade exclusiva deles.

Documentos vieram às fls. 07/109.

A decisão de fl. 110/111 determinou que a parte comprovasse prenotação válida, o que foi feito às fls. 114/115.

O Oficial suscitado se manifestou às fls. 117/118, informando que o óbice permanece com fundamento no artigo 2º, § 2º, da Lei n. 4.591/64, e no artigo 1.331, § 1º, do Código Cívil; que, no caso concreto, além dos dispositivos legais citados, a convenção de condomínio veda expressamente a alienação de vagas a não condôminos (fl. 47); que, transmitindo a propriedade do apartamento, a parte vendedora deixará de ostentar a condição de condômina para fins de manutenção da propriedade da vaga n. 45 (matrícula n. 100.750 – fls. 21/22), com ofensa ao previsto na Lei n. 4.591/64, no Código Civil e na convenção do condomínio.

O Ministério Público opinou pela manutenção do óbice (fls. 122/124).

É o relatório.

Fundamento e decido.

De início, vale destacar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.

Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:

“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.

No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.

Nos termos do artigo 2º, parágrafo 2º, da Lei n. 4.591/64 (destaque nosso):

Art. 2º Cada unidade com saída para a via pública, diretamente ou por processo de passagem comum, será sempre tratada como objeto de propriedade exclusiva, qualquer que seja o número de suas peças e sua destinação, inclusive (VETADO) edifício-garagem, com ressalva das restrições que se lhe imponham.

§ 1º O direito à guarda de veículos nas garagens ou locais a isso destinados nas edificações ou conjuntos de edificações será tratado como objeto de propriedade exclusiva, com ressalva das restrições que ao mesmo sejam impostas por instrumentos contratuais adequados, e será vinculada à unidade habitacional a que corresponder, no caso de não lhe ser atribuída fração ideal específica de terreno.

§ 2º O direito de que trata o § 1º deste artigo poderá ser transferido a outro condômino, independentemente da alienação da unidade a que corresponder, vedada sua transferência a pessoas estranhas ao condomínio.

§ 3º Nos edifícios-garagem, às vagas serão atribuídas frações ideais de terreno específicas”.

Portanto, terceiro estranho ao condomínio está impedido de adquirir ou alugar vaga de garagem localizada em edifício, com exceção de uma única hipótese: quando exista autorização expressa na convenção de condomínio (artigo 1.331, §1º, do Código Civil):

“§1º As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio”.

A finalidade da lei é clara: preservar a segurança da vida condominial.

No caso concreto, vê-se que os proprietários do apartamento localizado no 14º andar do “Edifício Pallazzo Dell’Arte”, rua Presidente Antônio Candico, n. 350, 14º Subdistrito – Lapa, Capital, e da vaga n. 136 da garagem localizada no mesmo prédio os alienaram para a parte suscitante por meio de escritura pública de compra e venda (fls. 11/18).

Os alienantes, porém, também são proprietários da vaga excedente n. 45, localizada no mesmo edifício (matrícula n. 100.750 – fls. 21/22)

Vê-se, assim, que eles, ao alienarem a coisa principal, apartamento, ao lado de uma vaga de garagem, n. 136, deixarão de ser condôminos, mas manterão a propriedade sobre vaga avulsa, excedente, de n. 45, o que não se pode admitir à vista de falta de autorização na convenção de condomínio para tanto (capítulo segundo, parágrafo segundo – fl. 47):

“As unidades autônomas-vagas de garagem estão vinculadas à propriedade de apartamentos no edifício, assim, a aquisição de uma ou mais vagas para a guarda de automóveis, somente poderá ser feita por proprietários/condôminos de apartamentos do edifício”.

Hipótese semelhante foi analisada no processo de autos n.1086236-36.2017.8.26.0100, que tramitou perante esta 1ª Vara de Registros Públicos, com conclusão pela impossibilidade de dissociação entre a unidade habitacional e a vaga de garagem vinculada sob os seguintes fundamentos:

“A finalidade da lei é clara: preservar a segurança da vida condominial, uma vez que permitir que pessoa estranha ao condomínio utilize o espaço da garagem acarretaria claros riscos aos moradores. Para tanto, houve a limitação da disposição de vaga de garagem à pessoas não condôminas.

O legislador, contudo, concretizou essa intenção utilizando apenas das hipóteses de alienação da vaga de garagem, por ser o caso mais comum.

Mas não há dúvida de que a norma engloba, também, a alienação do apartamento de forma não vinculada à vaga de garagem. Entender de forma diferente desrespeitaria o intuito da lei, pois o escopo, evitar a existência de vaga de garagem de pessoa não-condômina, não seria preservado. Saliente-se que, se o titular do apartamento vende o bem, perde sua condição de condômino, pois a simples titularidade de vaga de garagem não cria esta condição a seu proprietário.

Apenas uma exceção é aberta: quando a convenção de condomínio prever expressamente que vagas podem ser alienadas a terceiros. No presente caso, a convenção juntada não contém tal autorização. Assim, a alienação do apartamento só pode se dar juntamente com a vaga autônoma, ou após esta ser alienada a outro condômino”.

A mesma conclusão deve ser aplicada ao caso sub judice, pois os alienantes não são proprietários de outra unidade habitacional no mesmo edifício.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida para manter o óbice registrário.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais e honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo com as cautelas de praxe.

P.R.I.C.

São Paulo, 27 de junho de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juiz de Direito

(DJe de 30.06.2023 – SP)