1ª VRP|SP: Dúvida – Registro de Imóveis – Usucapião extrajudicial – Notificação de herdeiro – Pesquisas indicadas pelo Oficial somente são realizadas em atendimento de determinações judiciais – Pesquisas na internet ou em redes sociais também são importantes, porém aleatórias e não há como se demonstrar o seu esgotamento, pelo que ficam prejudicadas – Frustrada diligência no segundo endereço, a parte suscitada requereu a intimação por edital, o que foi negado pelo Oficial sob o argumento de não se ter comprovado o esgotamento dos meios de localização – Esgotadas todas as medidas extrajudiciais possíveis para localização de outros endereços, a exigência formulada pode ser afastada, autorizando-se a notificação por edital – Dúvida improcedente.
SENTENÇA
Processo Digital nº: 1069023-07.2023.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: Primeiro Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo
Suscitado: Glauber Hernandes Boscolo de Carvalho Maia e outro
Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 1º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Glauber Hernandes Boscolo de Carvalho Maia e Amanda Cherice Fontes Boscolo de Carvalho Maia à vista de exigências feitas em procedimento pelo reconhecimento extrajudicial de usucapião do imóvel objeto da matrícula n.61.314 daquela serventia (prenotação n. 381.760).
O Oficial informa que figuram como titulares do domínio Isaura Olinta de Carvalho, Elza Aparecida de Carvalho, Judith Maria de Carvalho, Cyro de Carvalho Patarra, Maria Célia Leitão Patarra e Paulo de Carvalho Patarra; que os coproprietários Cyro e Maria Célia, bem como os herdeiros dos coproprietários falecidos foram notificados, restando pendente a notificação de Ana Marega Patarra, herdeira do coproprietário Paulo; que o ponto central do dissenso é o indeferimento do pedido de notificação por edital de Ana Marega Patarra, tendo em vista que não foram preenchidos os requisitos do artigo 11 do Provimento CNJ n.65/17 e por não se ter demonstrado o esgotamento de todas as formas de localização, como pesquisas via Serasa, Boa Vista, Receita Federal, TRE ou Poder Judiciário, nos moldes do artigo 726 do CPC. Ademais, há notícia de participação da herdeira em redes sociais, o que demonstra, salvo homonímia, a possibilidade de avanço na localização de seu endereço.
Cópia do procedimento extrajudicial foi produzida às fls.03/1282.
A parte suscitada apresentou impugnação às fls.1285/1287, alegando que realizou diligências para notificação da herdeira Ana Marega, mas a resposta dos Correios foi de que ela se mudou; que seus irmão Denise e Ivo foram intimados na residência da família; que foram preenchidos os requisitos do artigo 11 do Provimento CNJ n.65/17, o qual não exige a formalidade empregada pelo Registrador; que os órgãos apontados (Serasa, Boa Vista, Três) não fornecem dados pessoais sem ordem judicial devido à proteção estabelecida pela LGPD; que, nas redes sociais, não consta o endereço dos participantes; que, face às tentativas infrutíferas nos endereços diligenciados, ela deve ser notificada por edital.
O Ministério Público opinou pela manutenção da exigência (fls. 1291/1292).
É o relatório.
Fundamento e Decido.
Por primeiro, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n.6.015/73, pelo Provimento n.65/17 do CNJ e pela Seção XII do Cap. XX das NSCGJ.
Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.
Neste sentido, decidiu o Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível n. 1004044-52.2020.8.26.0161, com relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ricardo Anafe (destaque nosso):
“Usucapião Extrajudicial direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo recusa indevida quanto ao processamento do pedido dúvida improcedente – Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião Extrajudicial”.
No mérito, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.
No processo extrajudicial de usucapião, como regra geral, não se pode dispensar a notificação de titulares de direitos que não tenham dado prévia anuência à pretensão do interessado usucapiente.
Nesse sentido a redação do parágrafo 2º, artigo 216-A, da Lei n.6015/73:
“§ 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância”.
Assim, independentemente do tempo alegado de posse, em nenhuma modalidade de usucapião há previsão legal para dispensa das notificações exigidas, ressalvada a demonstração de consentimento expresso pelos titulares dos direitos, conforme hipóteses previstas nos artigos 10 e 13 do Provimento CNJ n. 65/2017.
Eventual dificuldade ou morosidade não justifica que se dispensem notificações de quem vier a ser afetado pela usucapião, pois a regra fundamental em qualquer procedimento realizado em contraditório é de que seja dada ciência a quem quer que possa ser atingido pela decisão final.
O artigo 10 do Provimento CNJ n. 65/2017 impõe a notificação pessoal dos titulares de direitos que não assinarem a planta que instrui o pedido de usucapião nem fornecerem anuência expressa.
Caso o titular registral tenha falecido, seus direitos relativos ao imóvel e, consequentemente, seu interesse processual na defesa de tais direitos são imediatamente transmitidos aos herdeiros independentemente de qualquer ato ou de registro da partilha na matrícula.
Como se sabe, diante do princípio da saisine, os herdeiros recebem o acervo hereditário desde a abertura da sucessão, o qual será indivisível até a finalização da partilha, seguindo as normas relativas ao condomínio (artigos 1.784 e 1.791 do Código Civil).
Identificada a existência de herdeiros, indispensável sua notificação para participação no procedimento extrajudicial.
No caso, o que se pretende é o reconhecimento de usucapião extraordinária com fundamento no artigo 1.238, §1º, do Código Civil.
A parte suscitada alega posse há mais de dez anos, tendo estabelecido no imóvel sua residência habitual desde novembro de 2004, quando o requerente Glauber foi residir no apartamento juntamente com sua avó Zélia Constantina de Carvalho, que era irmã das proprietárias Isaura, Elza, Judith e Olga, sendo que esta última doou sua quota parte aos seus filhos Cyro e Paulo. Zélia faleceu em 2012 e Glauber passou a exercer posse exclusiva sobre o bem até junho de 2014, quando se casou com a requerente Amanda, que também passou a residir no imóvel.
O Oficial informa que todos os titulares de direitos reais e seus respectivos sucessores foram notificados, exceto Ana Marega Patarra, que é filha do coproprietário Paulo de Carvalho Patarra.
Constatado o falecimento de Paulo, foi demonstrada a inexistência de ações relativas à sua sucessão, com requerimento de notificação de seus filhos Ana, Ivo e Denise (fls.748/756)
Contudo, Ana não foi encontrada nos endereços diligenciados, sendo a correspondência devolvida com a informação de que ela havia se mudado, sem notícia do novo endereço (fls.819/820 e 1186/1189).
Frustrada diligência no segundo endereço, a parte suscitada requereu a intimação de Ana por edital, o que foi negado pelo Oficial sob o argumento de não se ter comprovado o esgotamento dos meios de localização, como pesquisas via Serasa, Boa Vista, Receita Federal e Tribunal Eleitoral, dentre outros (fls.1231 e 1239).
Inconformada com a exigência, a parte requereu a suscitação da presente dúvida (fls.1250/1251). Em sua impugnação, alega que as pesquisas são impossíveis, pois os órgãos indicados não fornecem dados pessoais sem determinação judicial.
Há notícia, ainda, de que a parte suscitada ingressou anteriormente com ação para reconhecimento da usucapião, mas optou pela via administrativa, suspendendo o processo judicial que ainda tramita perante esta Vara (processo de autos n.1081787-69.2016.8.26.0100 – fls.63/67).
Naqueles autos, a parte requereu a realização de pesquisa em nome da herdeira Ana, o que foi negado por não haver previsão de medidas judiciais na modalidade extrajudicial de usucapião, o qual segue regras próprias para as notificações (fls.1047/1049).
Também tentou propor ação de produção antecipada de prova com a mesma finalidade, mas seu interesse processual não foi compreendido pelo juízo, que determinou emenda da inicial (fl.1252).
Providências judiciais são, como se vê, incompatíveis com a via extrajudicial. Ainda que se tenha decidido diferentemente no passado (processo de autos n.1044540-10.2023.8.26.0100), a viabilidade das pesquisas em questão depende de ordem judicial.
A prática, portanto, revela sua incompatibilidade com o procedimento extrajudicial.
O mesmo se aplica à notificação judicial prevista no artigo 726 do CPC.
Assim, caso alguma medida judicial se torne imprescindível, o procedimento deve ser adequado para prosseguir perante o juízo competente (item 420.8, Cap.XX, das NSCGJ).
Na via extrajudicial, em consequência, no que diz respeito a pesquisas, basta que sejam realizadas aquelas disponíveis à parte e ao Registrador, como seus indicadores pessoais, por exemplo.
É certo que a ausência de notificação de eventual interessado pode trazer consequências em prejuízo da parte suscitada (invalidade do procedimento).
Porém, apesar de necessário aprofundamento nas pesquisas, eventual dificuldade de investigação não pode inviabilizar o prosseguimento do procedimento.
Assim, havendo notícia sobre a localização da parte, deve ser tentada notificação. Caso seja infrutífera a tentativa e se não for encontrado novo endereço mesmo após a realização de pesquisas pelos sistemas disponíveis que não necessitem de intervenção judicial, o procedimento pode prosseguir por conta e risco da parte requerente, contanto que ela seja alertada.
Havendo exigência por providência específica, a parte poderá demonstrar ao Oficial a impossibilidade de atendimento mediante comprovação da resposta negativa dos órgãos consultados que considerem necessária determinação judicial para o atendimento. Esgotadas as medidas acessíveis, de modo que a localização do notificando não seja conhecida, sua notificação por edital deve ser admitida.
No caso concreto, é notório que as pesquisas indicadas pelo Oficial somente são realizadas em atendimento de determinações judiciais.
As pesquisas na internet ou em redes sociais também são importantes, porém aleatórias e não há como se demonstrar o seu esgotamento, pelo que ficam prejudicadas.
A notificação por edital, por sua vez, é autorizada em apenas duas hipóteses no procedimento administrativo: para ciência de terceiros eventualmente interessados e para ciência de notificandos que não tenham sido encontrados pessoalmente ou que estejam em lugar incerto ou não sabido (§§ 4º e 13, do artigo 216-A, da Lei n. 6.015/73; artigos 11 e 16 do Prov. CNJ n. 65/17; e itens 418.16 e 418.21, Cap. XX, das NSCGJ):
“418.16. Caso não seja encontrado o notificando ou caso ele esteja em lugar incerto ou não sabido, ou inacessível, tal fato será certificado pelo registrador, que deverá promover a sua notificação por edital mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretado o silêncio do notificando como concordância.
(…)
418.21. Após as notificações dos titulares do domínio do imóvel usucapiendo e dos confrontantes, o oficial de registro de imóveis expedirá edital, que será publicado pelo requerente e às expensas dele, na forma do art. 257, III, do CPC, para ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão manifestar-se nos quinze dias subsequentes ao da publicação…”.
Em suma, podemos concluir o seguinte: há necessidade de concordância ou notificação de todos os titulares de direitos registrados.
Caso falecidos e na falta de anuência pela via adequada, então seus herdeiros deverão ser notificados. Para isso, deverão ser perfeitamente identificados e sua localização deve ser informada.
Desconhecido seu paradeiro, devem ser esgotadas as providências extrajudiciais possíveis para localização (incumbência exclusiva da parte interessada). Somente se não forem encontrados nos endereços alcançados para notificação pessoal ou se estiverem em lugar incerto ou não sabido, será possível notificação por edital (item 418.16, Cap.XX, das NSCGJ), o que será avaliado oportunamente pelo Oficial competente.
Como já esgotadas todas as medidas extrajudiciais possíveis para localização de outros endereços, a exigência formulada pode ser afastada, autorizando-se a notificação por edital de Ana Marega Patarra.
Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida para afastar o óbice e autorizar o prosseguimento do procedimento com a notificação por edital de Ana Marega Patarra.
Não há custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, arquivem-se os autos.
P.R.I.C.
São Paulo, 07 de julho de 2023.
(DJe de 11.07.2023 – SP)