1ª VRP|SP: Dúvida – Registro de Imóveis – Escritura de inventário, cessão e partilha – Divórcio da herdeira casada no regime da comunhão universal de bens antes do falecimento – Exigência de partilha em razão do divórcio – Desnecessidade – Dúvida improcedente.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1067569-89.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 16º Ofício de Registro de Imóveis de São Paulo

Suscitado: Gilberto Fioravante

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 16º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Gilberto Fioravante diante da negativa de registro de escritura pública de arrolamento conjunto, cessão e partilha do bem deixado pelo casal Assenção Perez Perez Fioravante e João Fioravante, a qual foi lavrada pela 17ª Tabeliã de Notas da Capital em 27 de janeiro de 2023 e envolve o imóvel da matrícula n. 20.318 daquela serventia.

O Oficial informa que, quando da abertura da sucessão de Assenção, em 30/12/1995, a herdeira Ana Fioravanti era casada com João Joaquim Gonçalves pelo regime da comunhão universal de bens, de modo que houve comunicação da fração ideal de seu quinhão hereditário; que, na escritura que se pretende registrar, João cedeu a Ana sua meação, já que divorciados, de forma que ela recebeu uma parte ideal na qualidade de herdeira e outra na qualidade de cessionária; que, entretanto, a extinção da mancomunhão quanto à fração recebida pelo falecimento de Assenção deve ocorrer por meio de partilha no divórcio; que, na época do óbito, João não era herdeiro, mas somente cônjuge, o que impede a cessão de direitos hereditários; que é necessária a retificação do título, a fim de que Ana receba sua fração ideal na qualidade de casada com João Joaquim e, posteriormente, em virtude da dissolução da sociedade conjugal, seja feita a partilha da respectiva fração ideal.

No pedido de suscitação de dúvida dirigido ao Oficial, a parte aduz que, conforme esclarecido pela Tabeliã que lavrou o título, o ex-marido da herdeira Ana Fioravanti não figurou na escritura como herdeiro, mas, sim, como cedente dos direitos de meação; que a propriedade só se transmite com a outorga da escritura cujo registro se pretende; que não há prejuízo a terceiros; que se providenciou o necessário em relação ao ITCMD pela cessão (fls. 04/06 e 07/10). Nestes autos, porém, não houve impugnação (fl. 48).

O Ministério Público se manifestou pela procedência (fls. 51/52).

É o relatório.

Fundamento e decido.

Primeiramente, é importante esclarecer que, embora o Oficial não tenha apresentado a nota devolutiva relativa à prenotação n. 625.355, considerando os elementos já presentes nos autos, notadamente a manifestação da parte suscitada, que reproduziu as exigências formuladas (fls. 04/05), entendo possível julgamento.

Vale destacar, ainda, que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.

Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:

“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.

No mérito, porém, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

O artigo 231 da Lei de Registros Públicos determina que, no preenchimento dos livros, sejam lançados “por ordem cronológica e em forma narrativa, os registros e averbações dos atos pertinentes ao imóvel matriculado”.

Garante-se, assim, concretude ao princípio da continuidade registral.

O artigo 237 do mesmo diploma também estipula que “não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro”.

No caso concreto, o Registro n. 7 da matrícula n. 20.318 do 16º RI da Capital indica que o imóvel foi adquirido por João Fioravante e por sua esposa, Assenção Perez Perez Fioravante, via escritura de venda e compra lavrada em 25 de maio de 1987 (fls. 45/47).

João e Assenção eram casados pelo regime da comunhão universal de bens e tiveram quatro filhos: Ana Fioravanti, Gilberto Fioravante, Gilmar Fioravante e Marcos Roberto Fioravante (fls. 11 e 24/25).

Quando do falecimento de Assenção, em 30/12/1995, a herdeira Ana Fioravanti estava casada com João Joaquim Gonçalves pelo regime da comunhão universal de bens, conforme informado na escritura pública de arrolamento conjunto, cessão e partilha de bens lavrada em 27/01/2023 (fls. 13 e 19/20).

Entretanto, conforme também noticiado na escritura, Ana e João Joaquim se divorciaram por sentença datada de 30/01/2006, ou seja, após o falecimento de Assenção, mas antes da realização do inventário e da partilha do único bem deixado por ela e por seu marido, que também já faleceu (02/09/2020 fls. 11 e 22/23).

Note-se que a certidão de casamento com a respectiva averbação do divórcio e a cópia do processo de divórcio de Ana e João Joaquim não foram apresentadas nos autos e, aparentemente, nem ao Oficial (fl. 01). Por outro lado, houve apresentação à Tabeliã por ocasião da lavratura do título (fl. 11).

Verifica-se, portanto, que houve comunicação do bem recebido quando da primeira sucessão com o patrimônio conjugal, sendo que não houve partilha deste patrimônio por ocasião do divórcio.

Justamente em razão de tais fatos, João Joaquim compareceu quando da lavratura da escritura de inventário e partilha que se pretende registrar e cedeu gratuitamente seus direitos de meação à ex-mulher, herdeira da de cujus (fls. 13/14).

Ainda assim, o Oficial exigiu a retificação do título, a fim de que Ana receba sua fração ideal na qualidade de casada com João Joaquim e, posteriormente, em virtude da dissolução da sociedade conjugal, seja feita a partilha da respectiva fração ideal, tendo em vista que João Joaquim não é herdeiro e, consequentemente, não pode ceder direitos hereditários.

Porém, o que se vê, em verdade, é que, na cessão, João Joaquim não figurou como herdeiro da de cujus, mas somente como cedente dos direitos que recebeu a título de meação.

Nota-se, ademais, que as formalidades da transmissão da meação restaram atendidas, já que esta se deu por escritura pública e houve declaração e isenção de ITCMD sobre a parcela transmitida (1/16 avos, demonstrativo de cálculo n. 78687468 fls. 15, 26/27 e 34).

Neste contexto, a herdeira Ana Fioravanti deve receber sua fração ideal na qualidade de casada com João Joaquim, mas não é necessária a retificação do título: a aplicação do princípio da cindibilidade permite que o Oficial registre, em primeiro lugar, a partilha do bem de Assenção Perez Perez Fioravante em nome de Ana Fioravanti, casada pelo regime de comunhão de bens com João Joaquim Gonçalves; em segundo, a doação da fração da meação de João à ex-mulher Ana e, por fim, a partilha dos direitos deixados por João Fioravante (fls. 11/18).

A aquisição da fração em comunhão é pressuposto lógico da doação feita por João Joaquim, tudo em observância aos princípios da disponibilidade e da continuidade.

Observe-se que, para ingresso do título apresentado, haverá necessidade de averbação do divórcio do casal após o registro da primeira partilha e antes do registro da doação.

Esta conclusão é confirmada, em que pese o entendimento de preservação do estado de mancomunhão até a efetiva partilha, pela existência de fundamento nas Normas de Serviço para se admitir que, com o divórcio ou a separação judicial, o regime de bens é extinto, de modo que a comunhão patrimonial se transforma em condomínio (nota lançada ao subitem 14, alínea “b”, do item 9, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo, destaque nosso):

“9. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

b) a averbação de:

(…)

14. escrituras públicas de separação, divórcio e dissolução de união estável, das sentenças de separação judicial, divórcio, nulidade ou anulação de casamento, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro;

NOTA: A escritura pública de separação, divórcio e dissolução de união estável, a sentença de separação judicial, divórcio, nulidade ou anulação de casamento será objeto de averbação, quando não decidir sobre a partilha de bens dos cônjuges, ou apenas afirmar permanecerem estes, em sua totalidade, em comunhão, atentando-se, neste caso, para a mudança de seu caráter jurídico, com a dissolução da sociedade conjugal e surgimento do condomínio pro indiviso“.

Assim, ex-cônjuges e proprietários registrários passam a poder dispor do patrimônio comum independentemente de partilha e sem violação ao princípio da continuidade, desde que averbada, previamente, a alteração do estado civil.

Neste sentido, havia decidido o Egrégio Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação Cível n. 079158-0/3, com relatoria do Exmo. Des. Luís de Macedo (destaque nosso):

“O recurso merece provimento. A recorrente, após sua separação judicial, adquiriu de seu ex-marido a metade ideal do imóvel residencial matriculado sob nº 41.629 no 8º Registro de Imóveis da Capital, havido em comum. Apresentada a registro a respectiva escritura pública de venda e compra instruída com certidão de casamento mencionando a separação judicial consensual, o Oficial exigiu o prévio ingresso no registro imobiliário da partilha dos bens comuns, providência, no seu entender, necessária à extinção da comunhão oriunda do regime matrimonial de bens, tese essa acolhida na sentença, ora atacada. Sem razão, porém. A jurisprudência deste Conselho Superior da Magistratura atualmente é no sentido de que a separação judicial põe termo ao regime de bens, transformando a comunhão até então existente em condomínio, permitindo a alienação dos bens pelos coproprietários, desde que averbada a alteração no estado civil, independentemente de prévio ingresso no fólio real da partilha dos bens comuns. Lembre-se com Ademar Fioranelli, um dos estudiosos das questões registrarias, ser ‘pacífico que nas separações, ou divórcios, inexistindo a partilha dos imóveis, nada impede que, mantida a comunhão dos imóveis agora ‘pro indiviso’, ambos os condôminos alienem a propriedade a terceiros, com preferência do outro condômino. Aos Oficiais basta atentar para a averbação obrigatória, antes da prática dos registros, das alterações do estado civil, exigindo o documento hábil consubstanciado em certidão do assento civil das alterações a teor do que dispõe o art. 167, II, n. 5, c.c. o parágrafo único do art. 246 da Lei 6.015/73′, observando que ‘julgados recentes do Colendo Conselho Superior da Magistratura paulista, no sentido de que nada obsta que, averbada a alteração do estado civil de separado ou divorciado, com a mudança do estado de comunhão para condomínio, ambos promovam a alienação o bem a terceiros, sem necessidade de exibição de formal de partilha para exame e eventual partilha ou atribuição a eventual prole, já que não cabe ao registrador estabelecer raciocínios hipotéticos’ (Ap. Cível nº 23.886-0/0-Catanduva- SP, Ap. Cível nº 23.756-0/8-Campinas-SP)’ (in “Direito Registral Imobiliário”, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001, pág. 92). Ante o exposto, dou provimento ao recurso para determinar, averbada a separação judicial dos contratantes, o registro da escritura pública de venda e compra”.

Esse mesmo entendimento passou a ser adotado por este juízo a partir do julgamento do processo de autos n. 1108607-52.2021.8.26.0100, sendo que a aplicação do precedente na hipótese se justifica pela ausência de conflito ou de possível prejuízo, notadamente porque o doador está assistido por sua atual esposa, Dorca Pereira de Oliveira (fl. 13), e houve declaração de ITCMD.

Não é demasiado pontuar, por fim, que a averbação do divórcio não depende de prova sobre a existência ou não de partilha prévia dos bens comuns.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida para autorizar o registro do título após averbação da alteração do estado civil de Ana Fioravanti e João Joaquim Gonçalves (fl. 11), a qual deverá ser feita após o registro da primeira partilha e antes do registro da doação, nos termos desta decisão. Observe o Oficial a necessidade de sempre remeter a juízo a nota devolutiva relativa à prenotação atual, ao lado de todos os documentos relevantes para análise do caso.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 12 de julho de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza de Direito

(DJe de 14.07.2023 – SP)