1ª VRP|SP: Dúvida – Registro de Imóveis – Base de Cálculo – Valor do acordo – Isenção – Título devolvido em razão do valor venal ultrapassar o teto da isenção – Valor da transação não se mostra flagrantemente incorreto – Teses fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça – Apuração de eventual incidência tributária deve ser feita pelo fisco – Autorizo o registro do título, observando que comunicação deverá ser feita ao fisco para apuração de eventual incidência tributária.

SENTENÇA

Processo Digital nº: 1139161-96.2023.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 6º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital – SP

Suscitado: Maria de Lourdes Magalhaes Oliveira e outros

Juiz(a) de Direito: Dr(a). Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 6º Registro de Imóveis da Capital a requerimento de Gercino Pedro Ferreira, Maria de Lourdes Magalhães Oliveira e Josefa do Nascimento Ferreira, tendo em vista negativa em se proceder ao registro de carta de adjudicação extraída do processo de autos n.1009648-96.2019.8.26.0009, a qual tem por objeto o imóvel da matrícula n.23.018 daquela serventia, em que existem duas edificações cadastradas perante a municipalidade como contribuintes distintos (prenotação n.814.454).

O Oficial informa que, após exigência pela comprovação do recolhimento do ITBI, o título foi reapresentado com declarações que afirmam o enquadramento nas condições de isenção, sendo novamente devolvido uma vez que o valor venal dos contribuintes cadastrados ultrapassa o teto estabelecido para a isenção, que é de R$214.711,15; que o valor declarado para a transmissão, que foi de R$110.233,33, não pode ser utilizado, pois existe norma municipal determinando a aplicação do valor venal, cuja correção não pode ser discutida na via administrativa; que a lei impõe aos registradores controle rigoroso do recolhimento de tributos, sob pena de responsabilidade pessoal; que a isenção alegada não foi suficientemente demonstrada, pelo que a parte suscitada deve buscar reconhecimento perante o fisco ou recolher o imposto de transmissão, complementando o título com tais providências.

Documentos vieram às fls.06/47.

A parte suscitada apresentou impugnação às fls.48/55, defendendo que houve demonstração suficiente da hipótese de isenção; que a negativa está fundada em entendimento jurídico superado; que deve prevalecer o valor real da transmissão, conforme orientação vinculante do Superior Tribunal de Justiça no REsp n.1.937.821/SP; que o valor do contrato foi aquele decorrente das condições normais de mercado; que o valor de cada imóvel, para fins de isenção tributária e registro, deve ser considerado separadamente, e não em somatória, como fez o Registrador; que o valor da compra foi devidamente atualizado; que a declaração de isenção foi devidamente preenchida e apresentada com o título. Juntou documentos às fls.56/83.

O Ministério Público opinou pela improcedência (fls.87/89).

É o relatório.

Fundamento e Decido.

De início, vale destacar que os títulos judiciais não estão isentos de qualificação para ingresso no fólio real.

O Egrégio Conselho Superior da Magistratura já decidiu que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação Cível n.413-6/7).

Neste sentido, também a Ap. Cível nº 464-6/9, de São José do Rio Preto:

“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental”.

E, ainda:

“REGISTRO PÚBLICO – ATUAÇÃO DO TITULAR – CARTA DE ADJUDICAÇÃO – DÚVIDA LEVANTADA – CRIME DE DESOBEDIÊNCIA – IMPROPRIEDADE MANIFESTA. O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal – crime de desobediência – pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado” (STF, HC 85911 / MG – MINAS GERAIS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, j. 25/10/2005, Primeira Turma).

Sendo assim, não há dúvidas de que a origem judicial não basta para garantir ingresso automático dos títulos no fólio real, cabendo ao Oficial qualificá-los conforme os princípios e as regras que regem a atividade registral.

Esta conclusão se reforça pelo fato de que vigora, para os registradores, ordem de controle rigoroso do recolhimento do imposto por ocasião do registro do título, sob pena de responsabilidade pessoal (artigo 289 da Lei n. 6.015/73; artigo 134, VI, do CTN e artigo 30, XI, da Lei 8.935/1994), bem como pelo disposto pelo item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:

“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.

No mérito, porém, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

A adjudicação, como se sabe, é modo derivado de aquisição da propriedade, sendo impossível adjudicar parcela específica de imóvel sem regular desdobro (item 54.2, Cap. XX, das NSCGJ), sob pena de violação à unidade matricial estabelecida pelo artigo 176, §1º, I, da LRP.

No caso concreto, o imóvel foi divido pelo proprietário tabular, o que deu origem a dois cadastros distintos perante a municipalidade (edificações de n.555 e n.559, fls.14/15 e 25), mas sem regular desdobro perante o Registro de Imóveis (matrícula de fls.46/47). Gersino e Josefa adquiriram a metade do lado esquerdo de quem da rua olha para o imóvel e Maria de Lourdes a outra metade, por negócios realizados na década de 1980.

Assim, por ora, a transmissão envolve um único ato registral a ser realizado na matrícula n.23.018, que estabelecerá um condomínio sobre toda a área, de modo que o cálculo dos tributos incidentes sobre a transmissão deve considerar a soma das parcelas individualmente cadastradas perante a municipalidade, pois a base de cálculo deve considerar o imóvel todo.

Quanto à atuação do Registrador, o Egrégio Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a fiscalização devida não vai além da aferição sobre a existência ou não do recolhimento do tributo (e não se houve correto recolhimento do valor, sendo tal atribuição exclusiva do ente fiscal, a não ser na hipótese de flagrante irregularidade ou irrazoabilidade do cálculo).

Nesse sentido, os seguintes julgados do E. Conselho Superior da Magistratura:

“Ao oficial de registro incumbe a verificação de recolhimento de tributos relativos aos atos praticados, não a sua exatidão” (Apelação Cível 20522-0/9- CSMSP – J.19.04.1995 – Rel. Antônio Carlos Alves Braga).

“Todavia, este Egrégio Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a qualificação feita pelo Oficial Registrador não vai além da aferição sobre a existência ou não de recolhimento do tributo, e não sobre a integralidade de seu valor” (Apelação Cível 996-6/6 CSMSP, j. 09.12.2008 – Rel. Ruy Camilo).

Este Egrégio Conselho Superior da Magistratura já fixou entendimento no sentido de que a qualificação feita pelo Oficial Registrador não vai além da aferição sobre a existência ou não de recolhimento do tributo, e não sobre a integralidade de seu valor” (Apelação Cível 0009480- 97.2013.8.26.0114 – Campinas – j. 02.09.2014 – Rel. des. Elliot Akel).

Nessa mesma linha, este juízo vem decidindo pela insubsistência do óbice quando não caracterizada flagrante irregularidade ou irrazoabilidade do cálculo (processo de autos número 1115167-78.2019.8.26.0100, 1116491-06.2019.8.26.0100, 1059178-53.2020.8.26.0100, 1079550-52.2022.8.26.0100, 1063599-18.2022.8.26.0100, 1039109-29.2022.8.26.0100 e 1039015-81.2022.8.26.0100).

Em caso recentemente julgado, este juízo entendeu pela possibilidade de exigência de recolhimento complementar quando verificada mudança na situação fiscal do imóvel ao tempo do registro, já que este caracterizaria o fato gerador, o que foi reformado pela instância superior:

“REGISTRO DE IMÓVEIS. Dúvida. Negativa de registro de Escritura de Compra e Venda. Transmissão de bem imóvel. ITBI. Base de cálculo. Imposto recolhido ao tempo da lavratura da escritura conforme as informações fiscais e guia de arrecadação obtidas junto ao próprio ente tributante. Modificação do valor venal constatada pelo Oficial de Registro de Imóveis dias após a lavratura da escritura que não autoriza a exigência de pagamento da diferença. Ainda que justificável a diligência do Oficial de Registro pela razoável diferença de valores e para ver afastada sua responsabilidade pessoal pelo pagamento do tributo (art. 289 da Lei n.º 6.015/73, do art. 30, XI, da Lei n.º 8.935/94, do art. 134, VI, do Código Tributário Nacional e dos arts. 163 e 176 do Decreto Municipal 59.579/2020), na espécie, a exigência não tem cabimento. Ao ente tributante é que cabe a revisão do lançamento, nos termos do art. 149, parágrafo único do Código Tributário Nacional. Precedente vinculante (Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.294.969 Tema n. 1124) que definiu a ocorrência do fato gerador do ITBI como sendo o registro não implica exigir complementação de valores para o caso de recolhimento antecipado do tributo e realizado com base nos dados e montantes a recolher fornecidos oficialmente pela entidade tributante. Óbice ao prosseguimento do requerimento afastado. Dúvida improcedente. Apelo provido” (Apelação Cível 1093315-27.2021.8.26.0100 CSMSP, j. 11.02.2022 Rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia).

No que diz respeito às declarações de isenção, a Lei Municipal n.13.402/2002 dispensa os Oficiais de Registros de Imóveis de exigir documentos ou certidões que comprovem a concessão da isenção, obrigando-os apenas a informar mensalmente a relação dos contribuintes beneficiados:

“Art. 3º – Ficam isentas do imposto as transmissões de bens ou de direitos a eles relativos para imóveis de uso exclusivamente residencial, cujo valor total seja igual ou inferior a R$ 30.000,00 (trinta mil reais) na data do fato gerador, quando o contribuinte for pessoa física.

§ 1º – Ficam os notários, oficiais de Registro de Imóveis, ou seus prepostos, dispensados de exigir documento ou certidão que comprove a concessão da isenção estabelecida no “caput” deste artigo.

§ 2º – Ficam os notários, oficiais de Registro de Imóveis, ou seus prepostos, obrigados a enviar mensalmente ao Departamento de Rendas Imobiliárias, da Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico, relação com a qualificação dos contribuintes beneficiados (nome, endereço, CPF), do imóvel (número do contribuinte do IPTU) e da transmissão (data e valor), conforme regulamento.(Regulamentado pelo Decreto nº 42.478/2002)

§ 3º – Os notários, oficiais de Registro de Imóveis, ou seus prepostos, que infringirem o disposto no parágrafo 2º ficam sujeitos à multa de R$ 1.000,00 (mil reais), por transação não relacionada”.

O Decreto Municipal n.55.196/2014 regulamenta a matéria nos seguintes termos:

“Art. 26. Ficam isentas do Imposto as transmissões relativas à aquisição, por pessoa física, de imóveis de uso exclusivamente residencial, cujo valor total seja igual ou inferior a R$ 127.096,56 (cento e vinte e sete mil e noventa e seis reais e cinquenta e seis centavos) na data do fato gerador, desde que o ato transmissivo:

I – seja relativo à primeira aquisição de imóvel por parte do beneficiário da isenção; ou

II – esteja compreendido no Programa Minha Casa, Minha Vida PMCMV, nos termos da Lei Federal nº 11.977, de 7 de julho de 2009.

Parágrafo único. O beneficiário da isenção de que trata o inciso I do “caput” deste artigo deverá apresentar ao notário, ao oficial de Registro de Imóvel ou seus prepostos a Declaração para Isenção do ITBI-IV, conforme modelo anexo a este regulamento, devidamente preenchida e assinada.

(…)

Art. 32. Nas transmissões a que se refere o artigo 26 deste regulamento, ficam os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos:

I – dispensados de exigir documento ou certidão que comprove a concessão da isenção;

II – obrigados a enviar mensalmente à Secretaria Municipal de Finanças e Desenvolvimento Econômico relação com a identificação dos contribuintes beneficiados (nome, endereço e número de inscrição no Cadastro de Pessoa Física CPF), o número do cadastro do imóvel, os dados da transmissão (data e valor) e a informação de que o beneficiário apresentou a declaração de que trata o parágrafo único do artigo 26 deste regulamento.

Parágrafo único. Os notários, oficiais de Registro de Imóveis e seus prepostos que infringirem o disposto no inciso II do “caput” deste artigo ficam sujeitos à multa de R$ 1.504,86 (um mil quinhentos e quatro reais e oitenta e seis centavos), por transação não relacionada”.

Não há dúvida, ainda, de que o preenchimento da declaração de isenção do ITBI tomando por base o valor da transação não se mostra flagrantemente incorreto, notadamente diante das teses fixadas pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n.1.937.821/SP (processo-paradigma do Tema n.1.113), sob a sistemática dos Recursos Repetitivos:

“a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;

b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN);

c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente”.

Outrossim, quanto à data do fato gerador informada na declaração de isenção, deve-se atentar que a hipótese de incidência surge justamente por ocasião do registro do título, como reconheceu o STF no julgamento de mérito do Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.294.969/SP, com repercussão geral (processo-paradigma do Tema n. 1124 ITBI Ausência Registro Cartório):

“O fato gerador do imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro”.

Neste contexto, não se vislumbra erro ou flagrante irregularidade a impedir o ingresso do título: a parte interessada, à vista da sentença proferida em ação de adjudicação compulsória, providenciou declarações de isenção do ITBI com base no valor das transações, cuja soma não ultrapassa o limite legal.

Apuração de eventual incidência tributária deve ser feita pelo fisco na via adequada, de modo que suficiente comunicação para que providências cabíveis possam ser tomadas a tempo.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida e autorizo o registro do título, observando que comunicação deverá ser feita ao fisco para apuração de eventual incidência tributária.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, remetam-se os autos ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 22 de novembro de 2023.

Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad

Juíza de Direito

(DJe de 24.11.2023 – SP)