CSM|SP: Registro de imóveis – Carta de arrematação – Modo derivado de aquisição da propriedade – Desqualificação por inobservância ao princípio da continuidade – Doação de parte ideal do imóvel não registrada – Decisão proferida nos autos do processo judicial reconhecendo, expressamente, a natureza propter rem da dívida que deu ensejo à penhora da totalidade do imóvel – Comprovação da intimação dos condôminos promitentes doadores e da co-titular do domínio para ciência da execução – Aplicação analógica do art. 799, inciso iv, do código de processo civil – Carta de arrematação devidamente instruída com as peças do processo judicial relativas a esses atos – Peculiaridades do caso concreto que justificam o afastamento do óbice apresentado ao registro do título – Apelação provida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1006103-56.2023.8.26.0048, da Comarca de Atibaia, em que é apelante JOSÉ JOÃO NAME, é apelado OFICIALA DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE ATIBAIA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento e julgaram improcedente a dúvida, v u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 1º de março de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça

Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1006103-56.2023.8.26.0048

APELANTE: José João Name

APELADO: Oficiala de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Atibaia

VOTO Nº 43.151

Registro de imóveis – Carta de arrematação – Modo derivado de aquisição da propriedade – Desqualificação por inobservância ao princípio da continuidade – Doação de parte ideal do imóvel não registrada – Decisão proferida nos autos do processo judicial reconhecendo, expressamente, a natureza propter rem da dívida que deu ensejo à penhora da totalidade do imóvel – Comprovação da intimação dos condôminos promitentes doadores e da co-titular do domínio para ciência da execução – Aplicação analógica do art. 799, inciso iv, do código de processo civil – Carta de arrematação devidamente instruída com as peças do processo judicial relativas a esses atos – Peculiaridades do caso concreto que justificam o afastamento do óbice apresentado ao registro do título – Apelação provida.

Trata-se de apelação interposta por José João Name contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente da Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Atibaia/SP, que julgou procedente a dúvida suscitada e manteve a recusa de registro de carta de arrematação oriunda dos autos do Processo nº 0014626-21.2017.8.26.0554, da 8ª Vara Cível da Comarca de Santo André/SP, tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 8.012 junto à referida serventia extrajudicial (fls. 578/583).

Alega o apelante, em síntese, que a arrematação em hasta pública constitui forma originária de aquisição da propriedade, razão pela qual não há que se falar em ofensa ao princípio da continuidade registral. Além disso, aduz ser impossível o cumprimento das exigências formuladas pelo registrador, pois não possui vínculos com os executados do processo em que realizada a arrematação, certo que apenas participou do leilão do imóvel. Ressalta a natureza propter rem da dívida que deu ensejo ao processo de execução, de maneira que a ausência de registro da doação do imóvel, pelos titulares de domínio ao executado, não interfere na validade da arrematação levada a efeito (fls. 591/604).

A douta Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo não provimento da apelação (fls. 623/627).

Nos termos da r. decisão a fls. 632, os autos foram redistribuídos a este C. Conselho Superior da Magistratura.

É o relatório.

Desde logo, cumpre lembrar que os títulos judiciais não estão isentos de qualificação para ingresso no fólio real. E a qualificação negativa do título judicial não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação Cível nº 413-6/7; Apelação Cível nº 0003968-52.2014.8.26.0453; Apelação Cível nº 0005176-34.2019.8.26.0344; e Apelação Cível nº 1001015-36.2019.8.26.0223). No exercício desse dever, a Oficial negou o registro por ofensa ao princípio da continuidade, na medida em que o executado Roberto Morini não figura como titular de domínio do imóvel arrematado.

O imóvel da matrícula nº 8.012 (fls. 374/378) encontrasse registrado em nome de Nair do Carmo Gimenez, na proporção de 50% do imóvel (R.7), e de José Andózia Filho e Maria de Lourdes Nascimento Andózia, na proporção de 50% do imóvel (R.8).

De seu turno, o título apresentado a registro consiste na carta de arrematação extraída dos autos de processo judicial em que figurou como executado Roberto Morini, em virtude de contrato particular celebrado em 05.11.1991, não registrado, por meio do qual recebeu, em doação, a metade ideal do imóvel pertencente a José Andózia Filho e Maria de Lourdes Nascimento Andózia (fls. 75/76).

Como é sabido, para ingresso do título no fólio real, o executado deve ostentar a condição de proprietário ou titular de direitos inscritos. Por força do princípio da continuidade, qualquer título de transmissão do imóvel só pode ter ingresso e dar causa a um registro stricto sensu se nele constarem, como afetados, referidos titulares de domínio. Deve, pois, haver perfeito encadeamento entre as informações inscritas e as que se pretendem inscrever, o que não ocorre no caso em pauta.

A propósito, ensina Afrânio de Carvalho: “O princípio da continuidade, que se apóia no de especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram sempre a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente. Ao exigir que cada inscrição encontre sua procedência em outra anterior, que assegure a legitimidade da transmissão ou da oneração do direito, acaba por transformá-la no elo de uma corrente ininterrupta de assentos, cada um dos quais se liga ao seu antecedente, como o seu subseqüente a ele se ligará posteriormente. Graças a isso o Registro de Imóveis inspira confiança ao público” (Registro de Imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 253).

Ademais, a alienação forçada em processo judicial, diversamente do consignado pelo apelante, encerra forma de transmissão derivada do direito de propriedade. Não se desconhece que, em data relativamente recente, o Colendo Conselho Superior da Magistratura chegou a reconhecer que a arrematação e a adjudicação constituíam modo originário de aquisição da propriedade. Contudo, tal entendimento acabou não prevalecendo, pois o fato de inexistir relação jurídica ou negocial entre o antigo proprietário e o adquirente (arrematante ou adjudicante) não é o quanto basta para afastar o reconhecimento de que há aquisição derivada da propriedade.

Como destaca Josué Modesto Passos: “diz-se originária a aquisição que, em seu suporte fático, é independente da existência de um outro direito; derivada, a que pressupõe, em seu suporte fático, a existência do direito por adquirir. A inexistência de relação entre titulares, a distinção entre o conteúdo do direito anterior e o do direito adquirido originariamente, a extinção de restrições e limitações, tudo isso pode se passar, mas nada disso é da essência da aquisição originária”. (in PASSOS, Josué Modesto. A arrematação no registro de imóveis: continuidade do registro e natureza da aquisição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 111 e 112).

Diversos são os precedentes deste Colendo Conselho Superior da Magistratura no sentido da impossibilidade de registro de carta de arrematação ou de adjudicação quando o imóvel não se encontra em nome daqueles que figuraram no polo passivo da lide:

REGISTRO DE IMÓVEIS – CARTA DE ARREMATAÇÃO – TÍTULO JUDICIAL QUE SE SUJEITA À QUALIFICAÇÃO REGISTRAL – MODO DERIVADO DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE – DESQUALIFICAÇÃO POR INOBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE – APELAÇÃO NÃO PROVIDA. (TJSP; Apelação Cível 1017551-34.2021.8.26.0068; Relator (a): Fernando Torres Garcia(Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Barueri – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/08/2023; Data de Registro: 05/09/2023).

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Carta de arrematação – Modo derivado de aquisição da propriedade – Observância do princípio da continuidade – Indispensável recolhimento do ITBI – Entendimento do Conselho Superior da Magistratura – Recurso não provido” (TJSP; Apelação Cível 1020648-60.2019.8.26.0602; Relator(a): Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Data do Julgamento: 28/4/2020; Data de Registro: 14/5/2020).

No caso concreto, porém, houve decisão judicial (fls. 88) reconhecendo, expressamente, a natureza propter rem da dívida que deu ensejo à penhora da totalidade do imóvel (AV. 12/8.012, fls. 374/378).

Por outro lado, ficou comprovada a intimação dos condôminos promitentes doadores e da co-titular do domínio para que tomassem ciência da execução, aplicando-se por analogia o disposto no art. 799, inciso IV, do Código de Processo Civil. A providência permite assegurar eventual direito ou interesse dos promitentes doadores e condôminos e, ao mesmo tempo, superar o obstáculo da violação ao princípio da continuidade.

Ressalte-se, a propósito, que a carta de arrematação está devidamente instruída com as peças do processo judicial relativas a esses atos.

É preciso entender que o princípio da continuidade enfrentou recentes dilemas, ao se deparar com determinadas situações jurídicas, como a ineficácia relativa do ato ou do negócio jurídico, e a extensão da responsabilidade civil a terceiros não devedores. Não são propriamente exceções à continuidade, mas apenas o reconhecimento de que certos atos são relativamente ineficazes, ou que terceiros são responsáveis patrimoniais sem serem devedores.

Além dos casos de ineficácia do negócio jurídico, a situação jurídica de terceiros responsáveis, ou de responsabilidade sem débito, também cria aparente desafio ao princípio da continuidade.

A obrigação vista como relação complexa, integrada de dois elementos, quais sejam, débito (shuld) e responsabilidade (haftung) é criação da doutrina alemã e, embora passível de críticas, gera explicação razoável para inúmeras situações em que o responsável pelo pagamento da dívida não é o devedor. O débito consiste no dever de prestar, na necessidade de observar determinado comportamento. A responsabilidade, na sujeição de bens do devedor ou de terceiro aos fins próprios da execução, ou, melhor, na relação de sujeição sobre o patrimônio.

Nesse cenário, considerando as peculiaridades da hipótese em análise, o óbice imposto pela registradora merece ser afastado.

Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para julgar a dúvida improcedente.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça

Relator.

(DJe de 07.03.2024 – SP)