CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Escritura pública de inventário e partilha em que promovida renúncia da herança, por herdeiro representado por procuradores, em conformidade com os arts. 1.806 e 1.810 do Código Civil – Procuração, com cláusula “em causa própria”, em que outorgados poderes para a alienação de bem certo e determinado – Extrapolação dos poderes outorgados aos mandatários que demanda a retificação da escritura pública de inventário e partilha, para excluir a renúncia realizada de forma pura e simples – Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1006223-26.2022.8.26.0019, da Comarca de Americana, em que é apelante SILVANA LUCIA ANAUATI RANGEL CORREIA DA SILVA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMOVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE AMERICANA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 5 de março de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL Nº 1006223-26.2022.8.26.0019

APELANTE: Silvana Lucia Anauati Rangel Correia da Silva

APELADO: Oficial de Registro de Imoveis e Anexos da Comarca de Americana

Interessado: Espólio de Ruth Abrahão Anuati

VOTO Nº 43.054

Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Escritura pública de inventário e partilha em que promovida renúncia da herança, por herdeiro representado por procuradores, em conformidade com os arts. 1.806 e 1.810 do Código Civil – Procuração, com cláusula “em causa própria”, em que outorgados poderes para a alienação de bem certo e determinado – Extrapolação dos poderes outorgados aos mandatários que demanda a retificação da escritura pública de inventário e partilha, para excluir a renúncia realizada de forma pura e simples – Recurso não provido.

Trata-se de apelação interposta por Silvana Lúcia Anauati Rangel Correia da Silva contra r. sentença que julgou procedente a dúvida suscitada pelo Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Americana e manteve a negativa ao registro, na matrícula nº 112.497, de escritura pública de inventário, renúncia e partilha.

A apelante alega, em suma, que o inventário dos bens deixados pelo falecimento de Jamil Anauati engloba vasto patrimônio, o que o tornou moroso, com inúmeras intervenções de terceiros. Com a morte da viúva, Ruth, foi determinado o apensamento do seu inventário ao de Jamil, para processamento conjunto, o que aumentou a dificuldade para a sua conclusão. Dentre os bens inventariados encontra-se o imóvel matriculado sob n° 112.497, de propriedade exclusiva de Ruth, o que levou o Espólio a se utilizar da autorização prevista no art. 2° da Resolução CNJ n. 35/2007 para a realização do inventário extrajudicial e partilha desse bem. Para atender exigência formulada pelo Oficial de Registro, a escritura de inventário e partilha foi rerratificada para indicar que existem outros bens, que foram identificados, esclarecer que serão partilhados em processo judicial, e informar os motivos da partilha extrajudicial de apenas um dos imóveis. Asseverou, ainda, que foi promovida a renúncia por herdeiro que, por sua vez, foi representado por mandatário constituído por procuração outorgada nos termos do art. 685 do Código Civil, em caráter irrevogável e irretratável.

A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 183/185).

É o relatório.

Foi apresentada para registro a escritura pública de inventário e partilha dos bens deixados pelo falecimento de Ruth Abraão Anauati, lavrada a fl. 128/135 do Livro nº 143 e retificada a fl. 257/262 do Livro nº 150, ambos do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, Comarca de Pirassununga (fl. 12/25), em que partilhado o imóvel objeto da matrícula nº 112.497 do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos da Comarca de Americana, com esclarecimento de que os demais imóveis que integram o monte-mor serão partilhados no inventário judicial n. 1007846-38.2016.8.26.0019 da Vara da Família e das Sucessões de Americana (fl. 12/26).

Na escritura pública de inventário e partilha foi manifestada a renúncia da herança pelo herdeiro Cláudio Roberto Anauati, representado, naquele ato, pela apelante e pelos senhores Ana Lúcia Anauati, Marco Antonio Anauati e Ruthe Sonia Anauati dei Santi, conforme procuração lavrada em 14 de fevereiro de 2020, a fl. 285/286 do Livro nº 085 do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, Comarca de Pirassununga, constando que o mandato foi outorgado em caráter irrevogável e irretratável, nos termos dos arts. 685 e 686, parágrafo único, do Código Civil (fl. 13).

Conforme a nota devolutiva de fl. 72/73, o registro foi negado mediante formulação das seguintes exigências:

1) Compareceu na Escritura Pública de Inventário, Renúncia e Partilha o Sr. Claudio Roberto Anauati representado por procuração. Ocorre que temos arquivado nesta Serventia sob n.º 370.211, a certidão de óbito do Sr. Claudio, que faleceu em 16/03/2020, sendo a escritura lavrada em 03/02/2022.

Portanto, em consonância com o que dispõe o artigo 682, inciso II, do CCB, fica impossibilitado o ingresso da presente escritura pública nesta Serventia, haja vista que a procuração foi utilizada após o falecimento do Sr. Claudio.

(…)

“Art. 682 – Cessa o mandato:

II – pela morte ou interdição de uma das partes;

(…)

2) Constou no item 4.1 (fls. 02) da presente escritura, que existem outros bens deixados pelo de cujus não arrolados, e que estes serão objeto de sobrepartiha sob a afirmação de que se tratam de ‘bens de liquidação morosa ou difícil’.

Contudo, conforme dispõe o item 121, Cap. XVI, NSCGJSP, é vedada a sonegação de bens no rol inventariado.

Deste modo, só se admite o inventário com partilha parcial se não houver sonegação dos bens no rol inventariado e desde que justifique a não inclusão do bem arrolado na partilha (vide Apelação Cível n.º 994.09.231.643-6 – anexa). Sendo assim, seria necessário aditar a presente escritura para incluir todos os bens deixados pelo de cujus, bem como justificar a não inclusão de cada um deles na partilha ora realizada, indicando expressamente qual é a razão de que a liquidação dos mesmos é morosa ou difícil” (fl. 84/96).

Superada a exigência de aditamento da escritura para justificar a não inclusão dos demais bens que integram o acervo hereditário, resta pendente de análise a recusa do registro em razão da impossibilidade de representação, por procuração, de herdeiro que já era falecido quando do inventário em que manifestada a renúncia da herança.

A renúncia em nome do herdeiro Cláudio Roberto Anauati foi realizada nos seguintes termos:

5) DA RENÚNCIA: o herdeiro CLÁUDIO ROBERTO ANAUATI, acima nomeado e qualificado, na forma que se encontra representado RENUNCIA à herança em conformidade com os artigos n.º 1.806 e 1.810 do Código Civil, sendo o mesmo orientado por este tabelionato que a presente renúncia é irrevogável e não poderá prejudicar eventuais credores, bem como foi orientado sobre as normas legais e os efeitos atinentes a este ato, em especial sobre os artigos citados nesta escritura. A parte se responsabiliza civil e penalmente pela veracidade do teor da presente escritura, para que produza e surta todos os efeitos legais onde esta for apresentada” (fl. 14/15).

Contudo, a escritura pública de procuração lavrada a fl. 285/286 do Livro 085 do Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, que foi juntada neste autos pela apelante, não contém poderes para a formulação de renúncia da herança, de forma pura e simples, como fizeram os mandatários na escritura pública de inventário e partilha.

Ao contrário, os poderes outorgados aos mandatários são limitados ao imóvel objeto da matrícula nº 112.497 do Registro de Imóveis da Comarca de Americana, constando na procuração:

“…a quem confere amplos e gerais poderes, sempre agindo em conjunto, com a finalidade única e exclusiva em relação ao imóvel objeto da matrícula número 112.497 do Oficial de Registro de Imóveis da cidade e comarca de Americana/SP…” (fl. 191 – destaquei).

E em seguida a procuração especifica os poderes outorgados ao mandatário (…) quem confere amplos e gerais poderes, sempre agindo em conjunto, com a finalidade única e exclusiva em relação ao imóvel objeto da matrícula número 112.497 do Oficial de Registro de Imóveis da cidade e comarca de Americana/SP, podendo ditos procuradores: I – assinar escrituras de transação extrajudicial, inventário do ESPÓLIO DE RUTH ABRAHÃO ANAUATI, reconhecer dividas, extinção de condomínio, eventual desapropriação da totalidade do imóvel ou parte do imóvel, podendo celebrar todos e quaisquer contratos, sejam públicos ou particulares, inclusive escrituras públicas de qualquer natureza, responder pela evicção legal, passar recibos, receber e dar quitação, transmitir/receber posse, domínio, jus, ações e demais direitos, constituir cláusula resolutiva, alienação fiduciária, hipotecar, dar quitação, prestar declarações nos termos do Decreto n. 93.240/86, concordar com cláusula e condições, preço, valor atribuído, condições, podendo representá-lo perante as repartições Públicas Federais, Estaduais, Municipais e Autárquicas em geral e demais Órgãos Públicos, inclusive Cartórios de Notas e de Registro de Imóveis, neles requerendo, recorrendo, alegando e assinando o que se tornar necessário; neles requerendo, alegando, declarando, assinando todos e quaisquer papéis, documentos, escrituras, contratos, requerimentos, declarações, aditamentos, re-ratificações, memorial descritivo, projetos, mapas; Il – constituir advogados outorgando-lhes os poderes da cláusula (…)

Verifica-se, portanto, que a procuração, embora irrevogável e ampla, não contém poderes expressos e especiais para renunciar à herança, quer como universalidade, quer em relação a um imóvel singular.

O art. 661, parágrafo 1º, do Código Civil vigente exige que a procuração para alienar ou praticar quaisquer outros atos que exorbitem a administração ordinária contenha poderes expressos e especiais, e que o art. 1.295, § 1º do Código Civil de 1.916 trazia previsão idêntica.

Como ensina Cláudio Luis Bueno de Godoy, “os poderes serão especiais quando determinados, particularizados, individualizados os negócios para os quais se faz a outorga (por exemplo, o poder de vender tal ou qual imóvel). Destarte, se no mandato se outorgam poderes de venda, mas sem precisão do imóvel a ser vendido, haverá poderes expressos, mas não especiais, inviabilizando então a consumação do negócio por procurador” (Código Civil Comentado, 4ª. edição Manole, diversos autores coordenados pelo Min. Cezar Peluso, p. 678; no mesmo sentido, Clóvis Bevilaqua, Código Civil Comentado, vol V, p. 40; Waldemar Ferreira, Mandato – poderes especiais e expressos, publicado na RT, 1.928, vol. 67, p 235; Carvalho Santos, Código Civil Interpretado, vol 18, p. 163/165).

Atualmente, entende-se que, para o aperfeiçoamento de negócio jurídico por procurador que importe alienação patrimonial é indispensável a existência concomitante de poderes expressos e especiais. Necessária a menção não só quanto à natureza do negócio a ser realizado (poderes expressos), mas também, quanto ao bem a ser alienado (poderes especiais), como, de resto, já assentou o Superior Tribunal de Justiça (Resp 98.143, Rel. Menezes Direito).

No caso concreto, os poderes outorgados são amplos, mas não expressos para renunciar à herança, como seria indispensável.

Apesar dessa limitação, na escritura pública de inventário e partilha os mandatários, representando o herdeiro Cláudio, formularam a renúncia à herança nos termos dos arts. 1.806 e 1.810 do Código Civil, ou seja, sobre a totalidade da herança que, segundo a apelante, é composta por vasto patrimônio.

Portanto, a escritura pública de inventário e partilha contém erro porque não observou os limites dos poderes outorgados aos mandatários, devendo, nessa parte, ser retificada, pelos interessados, para excluir a cláusula de renúncia da totalidade da herança, efetuada em nome do herdeiro Cláudio.

Por sua vez, a renúncia manifestada na escritura pública de inventário e partilha não pode ser interpretada, para efeito de registro desse título, no sentido de que seria restrita ao imóvel partilhado, por duas razões.

Primeiro, porque inexistem poderes expressos para renúncia à herança.

Segundo, porque, ainda que houvesse poder expresso, ou corresponderia à cessão do direito hereditário sobre bem singular, pois isso não se coaduna com os termos como foi realizada e, mais, com o art. 1.808 do Código Civil que veda a aceitação ou a renúncia a herança em parte:

Art. 1.808. Não se pode aceitar ou renunciar a herança em parte, sob condição ou a termo“.

Por fim, neste procedimento não se discute sobre a eventual possibilidade de cessão do imóvel partilhado, pelo herdeiro Cláudio, aos demais herdeiros que seriam os beneficiários da renúncia erroneamente formulada, o que teria natureza jurídica de doação, se gratuita, ou transmissão por outro modo se onerosa, por se tratar de negócios jurídicos distintos do ato que foi praticado.

Porém, cabe desde logo observar que a doação, a que corresponderá eventual cessão gratuita, ou a eventual alienação onerosa do imóvel são fatos geradores de imposto de transmissão de que não se tem notícia do recolhimento.

Ante o exposto, nego provimento ao recurso e mantenho a recusa do registro da escritura pública de inventário e partilha.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 14.03.2024 – SP)