CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida – Impugnação total das exigências formuladas e apresentação de novos documentos no curso do feito – Impossibilidade de análise – Óbices que subsistem – Necessária assinatura eletrônica de todos os signatários para atos de transferência e registro de bens imóveis – Falta de documentação adequada a comprovar a regular representação de fundo de investimento em direitos creditórios – Recurso não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1032116-25.2022.8.26.0114, da Comarca de Campinas, em que é apelante HARPIA FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DE CAMPINAS.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 9 de abril de 2024.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1032116-25.2022.8.26.0114
Apelante: Harpia Fundo de Investimento em Direitos Creditórios
Apelado: 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Campinas
VOTO Nº 43.055
Registro de imóveis – Dúvida – Impugnação total das exigências formuladas e apresentação de novos documentos no curso do feito – Impossibilidade de análise – Óbices que subsistem – Necessária assinatura eletrônica de todos os signatários para atos de transferência e registro de bens imóveis – Falta de documentação adequada a comprovar a regular representação de fundo de investimento em direitos creditórios – Recurso não provido.
Trata-se de recurso de apelação interposto por Harpia Fundo de Investimento em Direitos Creditórioscontra a r. sentença de fls. 215/218, que julgou procedente a dúvida suscitada em virtude da recusa de registro do instrumento particular de fls. 09/23 com apoio nas exigências da nota de devolução de fls. 36/37 (prenotação n. 492.317).
Fê-lo a r. sentença, basicamente, diante da impossibilidade de se reconhecer a autenticidade das assinaturas contidas no título apresentado em meio eletrônico, já que não atende os requisitos estabelecidos: i) nos itens 366 e 366.5, do Cap. XX, das NSCGJ; ii) no inciso I, do art. 5º, do Dec. n. 10.278/2020; e iii) na letra “a”, inciso III, do art. 4º da Lei n. 10.543/2020.
A parte apelante sustenta que o “Instrumento Particular de Consolidação, Confissão de Dívida, Promessa de Pagamento, Constituição de Alienação Fiduciária de Bem Imóvel em Garantia e Outras Avenças” de fls. 09/32 foi devidamente assinado por todas as partes mediante certificação digital, em conformidade com o inc. I do art. 5º do Decreto n. 10.278/2020, dentro do padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), conforme documento produzido com a impugnação (fls. 140/180), que não foi apreciado pela sentença; que a plataforma utilizada permite a verificação das assinaturas qualificadas em seu site, com acesso público, via portal validador; que as NSCGJ, nos itens 366 e 366.5 do Cap. XX, preveem que o uso do padrão XML é preferencial e não obrigatório, sendo permitido o uso de outros padrões compatíveis; que o mesmo instrumento foi apresentado no processo de autos n. 1005703-76.2022.8.26.0533 e teve reconhecida a sua validade, com determinação de registro (fls. 213/214); que as exigências e a negativa de registro do título geram clara insegurança ao credor da garantia fiduciária; que as exigências foram pautadas em elementos formais não previstos em lei para que se constitua a propriedade fiduciária sobre um bem, conforme disposto no artigo 1.362 do Código Civil.
Sustenta, ainda, em relação ao “item 2” da nota devolutiva (fls. 36/37), que a sentença deixou de se manifestar sobre a representação do Fundo Harpia quando da formalização do título; que o instrumento foi formalizado por Brl Trust Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários S.A. em 31/05/2022, sendo que a atual administradora, Hemera Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda, apenas tomou posse em 08/06/2022, o que demonstra a regularidade da representação (fls. 227/240).
A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 269/272).
O feito foi originariamente distribuído à 11ª Câmara de Direito Privado (fl. 273), que declinou da competência, ensejando a posterior redistribuição do feito a este Conselho Superior da Magistratura (fls. 274/276).
É o relatório.
De início, vale ressaltar que o Oficial dispõe de autonomia no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
Esta conclusão se reforça pelo disposto no item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:
“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.
Vale ressaltar, por segundo, que não é possível, no curso de dúvida ou de pedido de providências, alterar o título apresentado visando atendimento de exigência formulada (itens 39.5.1 e 39.7, Cap. XX, das NSCGJ).
Fica prejudicada, portanto, a análise dos novos documentos produzidos com a impugnação feita pela parte suscitante já em juízo (fls. 48/54 e 140/193), documentos estes que não acompanharam o título submetido à qualificação pelo Oficial (fls. 01/41).
No mérito, a dúvida é procedente. Vejamos os motivos.
A parte narra que firmou contrato particular de alienação fiduciária com base na Lei n. 9.514/97, por meio do qual recebeu de Jair Antônio Covolan e Elisabeth Christina Ibanez Covolan a propriedade resolúvel do imóvel objeto da matrícula n. 133.011 do 1º Oficial de Registro de Imóveis de Campinas/SP como garantia do débito confessado no instrumento particular (fls. 09/32 e 33/35).
Prenotado o título em 14 de junho de 2022 sob o n. 492.317, emitiu-se a nota de devolução de fls. 36/37, com exigência de apresentação do título em formato nato-digital e assinatura eletrônica de todos os subscritores ou no original.
Exigiu-se, também, esclarecimento quanto à substituição da administração da parte, o que não foi possível verificar em consulta aos sítios eletrônicos da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
O Oficial Registrador informou que a plataforma utilizada para a assinatura do título só vale entre as partes que convencionam seu uso; que o título não foi assinado com certificação digital por todas as partes, nos termos do art. 5º do Decreto n. 10.278/2020, mas apenas por Gabriel Victorino Boccia, conforme o relatório de fls. 38/41, emitido pelo verificador de conformidade do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação; que a assinatura eletrônica qualificada, isto é, com certificado digital ICP-Brasil de todas as partes, é obrigatória para a transmissão de imóveis, não bastando o relatório apensado ao fim do documento para esse fim (fls. 01/05).
A matéria em debate é regida pela Lei n. 14.063/2020, que disciplina o uso de assinaturas eletrônicas em interações com entes públicos, classificando, em seu artigo 4º, as assinaturas eletrônicas em três categorias: simples, avançada e qualificada.
A assinatura eletrônica qualificada, definida no inciso III, do artigo 4º, da lei em questão, se restringe àquela que utiliza certificado digital nos termos do §1º, do artigo 10, da MP n. 2.200-2/2001, ou seja, aquela produzida com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil.
Por sua vez, para os atos de transferência e de registro de bens imóveis, a mesma lei impõe a utilização de assinatura eletrônica qualificada, ressalvado o registro de atos perante as juntas comerciais:
“Artigo 5º No âmbito de suas competências, ato do titular do Poder ou do órgão constitucionalmente autônomo de cada ente federativo estabelecerá o nível mínimo exigido para a assinatura eletrônica em documentos e em interações com o ente público. (…)
§ 2º É obrigatório o uso de assinatura eletrônica qualificada. (…)
IV – nos atos de transferência e de registro de bens imóveis, ressalvado o disposto na alínea “c” do inciso II do § 1º deste artigo; (…)
§ 4º O ente público informará em seu site os requisitos e os mecanismos estabelecidos internamente para reconhecimento de assinatura eletrônica avançada.
§ 5º No caso de conflito entre normas vigentes ou de conflito entre normas editadas por entes distintos, prevalecerá o uso de assinaturas eletrônicas qualificadas“.
Trata-se de Lei especial que permanece em vigor e não foi alterada pela Lei n. 14.620/23, a qual modificou o artigo 784 do CPC para tratar de assinatura eletrônica nos títulos executivos.
No âmbito da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, a matéria vem tratada nos itens 365, 366, 366.1 e 366.5 do Cap. XX das Normas de Serviço:
“365. A postagem e o tráfego de traslados e certidões notariais e de outros títulos, públicos ou particulares, elaborados sob a forma de documento eletrônico, para remessa às serventias registrais para prenotação (Livro nº 1 Protocolo) ou exame e cálculo (Livro de Recepção de Títulos), bem como destas para os usuários, serão efetivados por intermédio da Central Registradores de Imóveis.
366. Os documentos eletrônicos apresentados aos serviços de registro de imóveis deverão atender aos requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil) e à arquitetura e-PING (Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico) e serão gerados, preferencialmente, no padrão XML (Extensible Markup Language), padrão primário de intercâmbio de dados com usuários públicos ou privados e PDF/A (Portable Document Format/Archive), ou outros padrões atuais compatíveis com a Central de Registro de Imóveis e autorizados pela Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.
366.1. É permitida a recepção para registro de imagens de documentos, preferencialmente no formato PDF, ou padrão mais atual a ser definido pela Central Registradores e autorizado pela Corregedoria Geral da Justiça, desde que o acesso ao original nato digital possa ser realizado para conferência através de sites confiáveis.
(…)
366.5. A recepção de instrumentos públicos ou particulares, em meio eletrônico, quando não enviados sob a forma de documentos estruturados segundo prevista nestas Normas, somente será admitida para o documento digital nativo (não decorrente de digitalização) que contenha a assinatura digital de todos os contratantes“.
Vê-se que há necessidade de atendimento aos requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), o que justifica a exigência de que os documentos eletrônicos apresentados sejam compatíveis com a Central de Registro de Imóveis, tal como autorizado pela CGJ/SP.
Ainda assim, tendo em vista o grau de segurança e confiabilidade oferecido por outros sistemas de certificação, o Registro de Imóveis pode admitir documento com assinatura eletrônica avançada, mas desde que contenha a assinatura de todos os contratantes, como dispõe o item 366.5, Cap. XX, das NSCGJ.
No mesmo sentido é o Provimento CNJ n. 149/2023, que revogou recentemente o Provimento CNJ n. 94/2020 e instituiu o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ, disciplinando a matéria em análise nos seguintes termos:
“Art. 324. Todos os oficiais dos Registros de Imóveis deverão recepcionar os títulos nato-digitais e digitalizados com padrões técnicos, que forem encaminhados eletronicamente para a unidade a seu cargo, por meio das centrais de serviços eletrônicos compartilhados ou do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), e processá-los para os fins do art. 182 e §§ da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.
§ 1º Considera-se um título nativamente digital:
I – o documento público ou particular gerado eletronicamente em PDF/A e assinado com Certificado Digital ICP-Brasil por todos os signatários e testemunhas…”.
O título particular, portanto, pode ser acolhido em formato eletrônico, mas desde que estruturado conforme padrões próprios de arquitetura eletrônica para o recebimento de assinatura digital de todos os signatários e testemunhas.
No caso concreto, porém, verifica-se que o contrato apresentado não atende aos requisitos técnicos exigidos pela Lei n. 14.063/2020 e pelas NSCGJ: o relatório de conformidade das pesquisas de validação realizadas no dia 14 de junho de 2022, emitido pelo verificador de conformidade do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (fls. 38/41), somente reconheceu a validade de uma assinatura eletrônica, aquela lançada por Gabriel Victorino Boccia (fl. 39).
Outrossim, diferentemente do que alega a parte recorrente, a r. decisão proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Santa Bárbara D’Oeste no processo de autos n. 1005703-76.2022.8.26.0533 não reconheceu o título como de ingresso imediato (fls. 213/214).
O óbice, portanto, subsiste.
Em relação à exigência de regularização da representação da parte interessada, nota-se que o título foi formalizado, em 31 de maio de 2022, mediante administração de Brl Trust Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários S.A. (fl. 09).
Contudo, houve mudança na gestão, atualmente exercida por Hemera Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários Ltda, mas sem comprovação adequada neste sentido quando da apresentação do negócio jurídico à qualificação registral.
O Registrador, ao realizar as devidas diligências, constatou a ausência de informações disponíveis no site da CVM que corroborassem a substituição na administração da entidade interessada.
Não foi possível, nesse contexto, verificar diretamente a veracidade dessa alteração mediante os meios disponíveis, o que confirma a necessidade da segunda exigência formulada, a qual não pode ser atendida no curso do processo de dúvida, como já ressaltado.
Esta conclusão se reforça pelo seguinte fato: quando da aquisição de direitos reais por Fundos de Investimento em Direitos Creditórios, como no caso, que não contam com personalidade jurídica, a nova representação é informação necessária, já que também terá ingresso no fólio real.
De rigor, portanto, a manutenção dos óbices.
Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJe de 16.04.2024 – SP)