CSM|SP: Registro de imóveis – Desapropriação de parcela de imóvel rural, promovida por concessionária de serviço público – Aquisição originária da propriedade – Exigências consistentes na descrição georreferenciada do imóvel desapropriado e sua certificação pelo INCRA – Imóvel desapropriado que não será utilizado para exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, uma vez que destinado para servir como rodovia, o que afasta a submissão do registro aos requisitos previstos para o desmembramento rural – Exigências afastadas – Apelação a que se dá provimento para julgar a dúvida improcedente.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1020918-18.2020.8.26.0451, da Comarca de Piracicaba, em que é apelante RODOVIAS DO TIETÊ S.A., é apelado 2º OFICIAL DE REGISTROS DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PIRACICABA.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), RICARDO DIP, HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 7 de maio de 2024.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1020918-18.2020.8.26.0451
APELANTE: Rodovias do Tietê S.A.
APELADO: 2º Oficial de Registros de Imóveis e Anexos da Comarca de Piracicaba
VOTO Nº 42.991
Registro de imóveis – Desapropriação de parcela de imóvel rural, promovida por concessionária de serviço público – Aquisição originária da propriedade – Exigências consistentes na descrição georreferenciada do imóvel desapropriado e sua certificação pelo INCRA – Imóvel desapropriado que não será utilizado para exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, uma vez que destinado para servir como rodovia, o que afasta a submissão do registro aos requisitos previstos para o desmembramento rural – Exigências afastadas – Apelação a que se dá provimento para julgar a dúvida improcedente.
1. Trata-se de apelação interposta por RODOVIAS DO TIETÊ S/A contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Segundo Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas de Piracicaba/SP que, na dúvida suscitada, manteve a recusa ao ingresso de carta de adjudicação extraída dos autos de ação de desapropriação, cumulada com imissão na posse (fls. 10/26).
Afirma a apelante, em síntese, que a desapropriação é forma originária de aquisição da propriedade, não se submetendo às exigências feitas ao registro do desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóvel rural e que é inexigível o georreferenciamento da área objeto do registro imobiliário, em razão da dimensão inferior a 25 hectares. Ressalta ser desnecessária a apresentação do georreferenciamento certificado pelo INCRA, pois, por meio de perícia técnica nos autos da desapropriação, delimitou corretamente a área, objeto da aquisição originária, não se submetendo, ainda, às exigências do artigo 225, §3º, da Lei nº 6.015/73. Sustenta também que a área desapropriada é objeto de individualização e delimitação durante o processo expropriatório e que, uma vez incorporada ao patrimônio público, deixa de ser área rural para integrar um bem público. Por fim, defende a não obrigatoriedade da apresentação do georreferenciamento, pois se trata de área desapropriada de apenas 587,57m², ou seja, inferior a 25 hectares, cuja exigência de georreferenciamento só se inicia em 20 de novembro de 2025, razão pela qual inexistente qualquer impedimento ao ingresso do título no fólio real (fls. 349/360).
A Douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 379/383).
O feito foi originariamente distribuído à E. Corregedoria Geral da Justiça, que declinou da competência, ensejando a posterior redistribuição dos autos a este C. Conselho Superior da Magistratura (fls. 386/387).
É o relatório.
Decido.
2. A apelante, concessionária de serviço público, por sentença proferida em ação judicial, obteve a desapropriação, por utilidade pública, de parte de imóvel objeto da matrícula nº 63.221 do 2º Oficial de Registros de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Piracicaba.
Contudo, a carta de adjudicação expedida nos autos da ação de desapropriação (Processo nº 3000099-84.2013.8.26.0511, da Vara Única da Comarca de Rio das Pedras/SP), apresentada a registro pela apelante, foi negativamente qualificada pelo Oficial de Registro de Imóveis, que expediu nota devolutiva (fls. 181), exigindo a apresentação de “planta que contenha as coordenadas dos vértices definidores dos limites do imóvel rural, objeto da desapropriação, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, devidamente certificada, nos termos do disposto no art. 225, § 3º da Lei 6.015/73 e art. 2º do Decreto nº 5.570/2005 que alterou o Decreto de nº 4.449/2002”.
Desde logo, importa anotar que a origem judicial do título não o torna imune à qualificação registral, ainda que limitada aos seus requisitos formais e sua adequação aos princípios registrais, conforme disposto no item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.
Está pacificado, inclusive, que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação Cível n.º 413-6/7; Apelação Cível n.º 0003968-52.2014.8.26.0453; Apelação Cível n.º 0005176-34.2019.8.26.0344; e Apelação Cível n.º 1001015-36.2019.8.26.0223).
No que se refere aos imóveis rurais, o § 3º do art. 176 da lei n. 6.015/73 prevê:
§ 3° Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1° será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais.
Na mesma linha, o § 3º do art. 225 da lei n. 6.015/73 dispõe:
§ 3° Nos autos judiciais que versem sobre imóveis rurais, a localização, os limites e as confrontações serão obtidos a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais.
Não há dúvida sobre a incidência dessas normas nos casos de desmembramento, remembramento e parcelamento de imóveis rurais promovidos por ato de livre disposição dos seus proprietários, nem sobre a submissão, à legislação específica, da eventual conversão de imóvel rural em urbano.
Por isso, a origem do novo imóvel em desapropriação promovida pelo Poder Público não afasta a aplicação das normas relativas ao georreferenciamento quando o imóvel desapropriado tiver como destinado a exploração de atividade agrícola, pecuária ou agroindustrial.
3. Contudo, a desapropriação de parcela do imóvel para destinação como rodovia comporta a análise sob enfoque específico, por se tratar de via de circulação destinada ao uso comum do povo (art. 99, inciso I, do Código Civil).
No caso concreto, a desapropriação recaiu sobre área de 587,57m² (fl. 172), a ser desfalcada do imóvel objeto da matrícula nº 63.221 do 2º Registro de Imóveis da Comarca de Piracicaba (fl. 179/190) e destinada à implantação de trecho da Rodovia do Açúcar (fl. 84, 98/100 e 126/129).
Nas hipóteses de desapropriação para implantação de rodovia e de instituição de servidão pública, a destinação em atividade distinta da rural afasta a exigência de observação dos requisitos que incidiriam se a área desapropriada continuasse sendo utilizada, pelo expropriante, para exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial.
Isso porque a destinação do imóvel não se confunde com a espécie de zona em que situado (rural, urbana, urbanizável, de urbanização específica e de interesse urbanístico especial), podendo existir imóvel com destinação rural em área urbana, ou situação contrária.
Por sua vez, não se ignora a existência de diferentes critérios para a qualificação de imóvel como urbano ou rural, prevendo o Código Tributário Nacional, em seus arts. 29 e 32, que o imóvel é urbano quando situado em zona urbana e rural quando situado em zona rural.
Porém, outras normas, como os arts. 8º e 9º do Decreto lei nº 57/1966, que dispõe sobre o Imposto Territorial Rural (ITR), e o art. 2º da Lei nº 5.868/1972, que criou o Sistema Nacional de Cadastro Rural, adotam o critério da destinação para a identificação do imóvel como sendo rural.
O critério da destinação também foi previsto na Lei nº 4.504/1964 (Estatuto da Terra) que, em seu art. 4º, inciso I, define como imóvel rural “o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada”.
Ainda, o art. 64, inciso II, da Lei nº 4.504/1964 dispõe que são urbanos os lotes que forem implantados em razão de colonização “quando se destinem a constituir o centro da comunidade, incluindo as residências dos trabalhadores dos vários serviços implantados no núcleo ou distritos, eventualmente às dos próprios parceleiros, e as instalações necessárias à localização dos serviços administrativos assistenciais, bem como das atividades cooperativas, comerciais, artesanais e industriais”.
O critério da destinação, ademais, é previsto no art. 6º da Instrução Normativa Incra nº 82/2015, que se encontra vigente: “Imóvel rural é a extensão contínua de terras com destinação (efetiva ou potencial) agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial, localizada em zona rural ou perímetro urbano”.[1]
A adoção desse critério também consta no sítio de Internet mantido pelo Incra, em página destinada ao esclarecimento de dúvidas:
“O que é imóvel rural?
Imóvel rural, segundo a legislação agrária, é a área formada por uma ou mais matrículas de terras contínuas, do mesmo titular (proprietário ou posseiro), localizada tanto na zona rural quanto urbana do município. O que caracteriza é a sua destinação agrícola, pecuária, extrativista vegetal, florestal ou agroindustrial.”[2]
José Afonso da Silva, sobre a definição do imóvel como urbano ou rural, considera que deve prevalecer o critério da destinação, como a seguir se verifica:
“A teoria da vocação urbanística ou da destinação do solo, e não sua localização ou situação, é que orienta a definição da sua qualificação. É que a localização dos terrenos consiste numa delimitação da área à vista, precisamente, da sua vocação ou destinação urbanística; ao contrário, portanto, da qualificação da propriedade urbana, já que será tal justamente porque situada, localizada, em solo qualificado como urbano. Com base no critério da vocação, a primeira qualificação do solo permite a distinção do território municipal em zona rural e zona urbana. Além disso, o Código Tributário Nacional admite considerar como urbanas áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana” (Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 172).
A destinação dada ao imóvel é, com efeito, a adequada para a sua qualificação como urbano ou rural, sendo esse o critério utilizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra.
Adotado o critério da destinação, a parcela que foi desapropriada para uso como rodovia não pode ser caracterizada como rural e, em razão disso e da natureza originária da desapropriação, não se submete às exigências para o registro de imóvel rural, no Registro de Imóveis, ainda que a área da rodovia tenha origem em desmembramento de imóvel que tinha essa finalidade de uso.
Cabe anotar, nesse ponto, que o art. 9º do Decreto nº 4.449/2002 prevê a necessidade de certificação pelo Incra para a identificação do imóvel rural, sendo, em consequência, dispensada para a área da rodovia que foi desapropriada e passou a ter finalidade de uso não rural:
“Art. 9º – A identificação do imóvel rural, na forma do §3º do art. 176 e do §3º do art. 225 da Lei nº 6015, de 1973, será obtida a partir de memorial descritivo elaborado, executado e assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro, e com precisão posicional a ser estabelecida em ato normativo, inclusive em manual técnico, expedido pelo INCRA.
§ 1º – Caberá ao INCRA certificar que a poligonal objeto do memorial descritivo não se sobrepõe a nenhuma outra constante de seu cadastro georreferenciado e que o memorial atende às exigências técnicas, conforme ato normativo próprio.”
Afastada a submissão do registro da aquisição da área da rodovia aos requisitos para o desmembramento de imóvel rural, não prevalece a exigência de apresentação da descrição georreferenciada com certificação pelo Incra.
A dispensa da certificação, ademais, não causará prejuízo para a identificação do imóvel rural porque o proprietário, ao solicitar nova certificação para a área remanescente, deverá excluir a parcela que foi desapropriada para uso como rodovia, ou, se for admitida a inscrição cadastral de áreas seccionadas como unidade imobiliária única, deverá discriminar, para efeito de certificação, a parte que passou a ser ocupada pela rodovia.
Por fim, não há risco de sobreposição de registros porque a desapropriação da área da rodovia é forma originária de aquisição do domínio e, de qualquer modo, a abertura de matrícula para a área desapropriada será averbada no registro do imóvel que foi desfalcado.
4. Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação e afasto a recusa do registro do título.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
NOTAS:
[1] Cf. https://www.gov.br/incra/pt-br/centrais-de-conteudos/legislacao/instrucao-normativa, consulta em 22/03/2024.
[2] Cf. https://www.gov.br/incra/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes, consulta em 21.03.2024.
(DJe de 15.05.2024 – SP)