CSM|SP: Registro de imóveis – Desapropriação de parcela de imóvel rural promovida pelo departamento de estradas de rodagem (DER) – Aquisição originária da propriedade – Exigências consistentes na descrição georreferenciada do imóvel desapropriado, com certificação pelo INCRA, e na comprovação de que esse imóvel foi inscrito no CCIR e no SICAR/CAR – Imóvel desapropriado que não será utilizado para exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, uma vez que destinado para servir como rodovia, o que afasta a submissão do registro aos requisitos previstos para o desmembramento rural – Exigências afastadas – Apelação a que se dá provimento para julgar a dúvida improcedente.

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000700-71.2023.8.26.0189, da Comarca de F., em que é apelante D. DE E. DE R. DO E. DE S. P. – D, é apelado O. DE R. DE I. E A. DA C. DE F..

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 29 de maio de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1000700-71.2023.8.26.0189

APELANTE: D. de E. de R. do E. de S. P. – D.

APELADO: O. de R. de I. e A. da C. de F.

VOTO Nº 43.422

Registro de imóveis – Desapropriação de parcela de imóvel rural promovida pelo departamento de estradas de rodagem (DER) – Aquisição originária da propriedade – Exigências consistentes na descrição georreferenciada do imóvel desapropriado, com certificação pelo INCRA, e na comprovação de que esse imóvel foi inscrito no CCIR e no SICAR/CAR – Imóvel desapropriado que não será utilizado para exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, uma vez que destinado para servir como rodovia, o que afasta a submissão do registro aos requisitos previstos para o desmembramento rural – Exigências afastadas – Apelação a que se dá provimento para julgar a dúvida improcedente.

1. Trata-se de apelação interposta pelo D. E. R. – D. contra a r. sentença prolatada pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de F. que, na dúvida inversa, manteve a recusa ao ingresso de carta de adjudicação extraída dos autos de ação de desapropriação, cumulada com imissão na posse, movida pela apelante (fl. 58/60).

A apelante alegou, em síntese, que a desapropriação é forma originária de aquisição da propriedade. Aduziu que o imóvel desapropriado perdeu a sua destinação rural, uma vez que destinado à implantação de rodovia, sendo nesse sentido, também, a resposta dada pelo INCRA em consulta que formulou. Desse modo, o registro da desapropriação não se submete às exigências incidentes para o desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóvel rural e, portanto, não demanda a apresentação da descrição georreferenciada da área desapropriada, com certidão pelo Incra. Também em razão da alteração da destinação do imóvel não são pertinentes as exigências de comprovação da sua inscrição no Cadastro de Imóvel Rural – CCIR e no Cadastro Ambiental Rural – CAR. Esclareceu, por fim, que o acesso ao sistema do Incra, para cadastramento da descrição georreferenciada do imóvel, somente é possível mediante prévio cadastro no Cadastro de Imóvel Rural – CCIR que, porém, é restrito aos imóveis dessa natureza.

Requereu o provimento do recurso para que seja promovido o registro da desapropriação (fl. 89/100).

A Douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fl.117/121).

O feito foi originariamente distribuído à E. Corregedoria Geral da Justiça que declinou da competência, ensejando a posterior redistribuição dos autos a este C. Conselho Superior da Magistratura (fl. 124/126).

É o relatório.

Decido.

2. A apelante, pessoa jurídica de direito público, por r. sentença prolatada no Processo nº 1000153-46.2014.8.26.0189, obteve a desapropriação, por utilidade pública, de parte de imóvel rural que foi indicado, pelo Oficial de Registros de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de F., como sendo objeto da matrícula nº 13.251 (fl. 06/11, 12/13 e 23/30).

Contudo, a carta de adjudicação expedida nos autos da ação de desapropriação, apresentada a registro pela apelante, foi qualificada negativamente pelo Oficial de Registro de Imóveis que expediu nota devolutiva exigindo a apresentação de: I) planta e memorial descritivo que contenham descrição georreferenciada do imóvel desapropriado, certificada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA; II) Certificado de Cadastro do Imóvel Rural CCIR, também relativo ao imóvel desapropriado; III) comprovação da inscrição desse imóvel no Cadastro Ambiental Rural SICAR/CAR (fl. 12/13).

Desde logo, importa anotar que a origem judicial do título não o torna imune à qualificação registral, ainda que limitada aos seus requisitos formais e sua adequação aos princípios registrais, conforme disposto no item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

Está pacificado, inclusive, que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Apelação Cível n.º 413-6/7; Apelação Cível n.º 0003968-52.2014.8.26.0453; Apelação Cível n.º 0005176-34.2019.8.26.0344; e Apelação Cível n.º 1001015-36.2019.8.26.0223).

No que se refere aos imóveis rurais, o § 3º do art. 176 da lei n. 6.015/73 prevê:

“§ 3° Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea a do item 3 do inciso II do § 1o será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais”.

Na mesma linha, o § 3º do art. 225 da lei n. 6.015/73 dispõe:

“§ 3° Nos autos judiciais que versem sobre imóveis rurais, a localização, os limites e as confrontações serão obtidos a partir de memorial descritivo assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais”.

Não há dúvida sobre a incidência dessas normas nos casos de desmembramento, remembramento e parcelamento de imóveis rurais promovidos por ato de livre disposição dos seus proprietários, nem sobre a submissão, à legislação específica, da eventual conversão de imóvel rural em urbano.

Por isso, a origem do novo imóvel em desapropriação promovida pelo Poder Público não é suficiente para afastar a aplicação das normas relativas ao georreferenciamento quando o imóvel desapropriado for destinado à exploração de atividade agrícola, pecuária ou agroindustrial.

  1. Conforme decidido por este C. Conselho Superior da Magistratura no julgamento da Apelação nº 1020918-18.2020.8.26.0451 (j. 07.05.2024), a desapropriação de parcela do imóvel para destinação como rodovia comporta a análise sob enfoque específico, por se tratar de via de circulação destinada ao uso comum do povo (art. 99, inciso I, do Código Civil).

No caso concreto, a desapropriação recaiu sobre área de 42.646,98m², a ser desfalcada do imóvel objeto da matrícula nº 13.251 do Registro de Imóveis da Comarca de F. (fl. 40/43), destinada à duplicação da Rodovia SP-320 Euclides da Cunha (fl. 06/08).

Nas hipóteses de desapropriação para implantação de rodovia ou instituição de servidão pública, a destinação para atividade distinta da rural afasta a exigência de observação dos requisitos que incidiriam se a área desapropriada continuasse sendo utilizada, pela expropriante, para exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial.

Isso porque a destinação do imóvel não se confunde com a espécie de zona em que situado (rural, urbana, urbanizável, de urbanização específica e de interesse urbanístico especial), podendo existir imóvel com destinação rural em área urbana, ou situação contrária.

Por sua vez, não se ignora a existência de diferentes critérios para a qualificação de imóvel como urbano ou rural, prevendo o Código Tributário Nacional, em seus arts. 29 e 32, que o imóvel é urbano quando situado em zona urbana e rural quando situado em zona rural.

Porém, outras normas, como os arts. 8º e 9º do Decretolei nº 57/1966, que dispõe sobre o Imposto Territorial Rural (ITR), e o art. 2º da Lei nº 5.868/1972, que criou o Sistema Nacional de Cadastro Rural, adotam o critério da destinação para a identificação do imóvel como sendo rural.

O critério da destinação também foi previsto na Lei nº 4.504/1964 (Estatuto da Terra) que, em seu art. 4º, inciso I, define como imóvel rural “o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada”.

Ainda, o art. 64, inciso II, da Lei nº 4.504/1964 dispõe que são urbanos os lotes que forem implantados em razão de colonização “quando se destinem a constituir o centro da comunidade, incluindo as residências dos trabalhadores dos vários serviços implantados no núcleo ou distritos, eventualmente às dos próprios parceleiros, e as instalações necessárias à localização dos serviços administrativos assistenciais, bem como das atividades cooperativas, comerciais, artesanais e industriais”.

O critério da destinação, ademais, é previsto no art. 6º da Instrução Normativa Incra nº 82/2015, que se encontra vigente:

Imóvel rural é a extensão contínua de terras com destinação (efetiva ou potencial) agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial, localizada em zona rural ou perímetro urbano”. [1]

A adoção desse critério consta no sítio de Internet mantido pelo Incra, em página destinada ao esclarecimento de dúvidas:

O que é imóvel rural? Imóvel rural, segundo a legislação agrária, é a área formada por uma ou mais matrículas de terras contínuas, do mesmo titular (proprietário ou posseiro), localizada tanto na zona rural quanto urbana do município. O que caracteriza é a sua destinação agrícola, pecuária, extrativista vegetal, florestal ou agroindustrial.[2]

José Afonso da Silva, sobre a definição do imóvel como urbano ou rural, considera que deve prevalecer o critério da destinação, como a seguir se verifica:

A teoria da vocação urbanística ou da destinação do solo, e não sua localização ou situação, é que orienta a definição da sua qualificação. É que a localização dos terrenos consiste numa delimitação da área à vista, precisamente, da sua vocação ou destinação urbanística; ao contrário, portanto, da qualificação da propriedade urbana, já que será tal justamente porque situada, localizada, em solo qualificado como urbano.

Com base no critério da vocação, a primeira qualificação do solo permite a distinção do território municipal em zona rural e zona urbana. Além disso, o Código Tributário Nacional admite considerar como urbanas áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana” (Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 172).

A destinação dada ao imóvel é, com efeito, a adequada para a sua qualificação como urbano ou rural, sendo esse o critério utilizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA.

Adotado o critério da destinação, a parcela que foi desapropriada para uso como rodovia não pode ser caracterizada como rural e, em razão disso e da natureza originária da desapropriação, não se submete às exigências para o registro de imóvel rural, no Registro de Imóveis, ainda que a área da rodovia tenha origem em desmembramento de imóvel que tinha essa finalidade de uso.

Cabe anotar, nesse ponto, que o art. 9º do Decreto nº 4.449/2002 prevê a necessidade de certificação pelo Incra para a identificação do imóvel rural, sendo, em consequência, dispensada para a área da rodovia que foi desapropriada e passou a ter finalidade de uso não rural:

Art. 9º – A identificação do imóvel rural, na forma do §3º do art. 176 e do §3º do art. 225 da Lei nº 6015, de 1973, será obtida a partir de memorial descritivo elaborado, executado e assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro, e com precisão posicional a ser estabelecida em ato normativo, inclusive em manual técnico, expedido pelo INCRA.

§ 1º – Caberá ao INCRA certificar que a poligonal objeto do memorial descritivo não se sobrepõe a nenhuma outra constante de seu cadastro georreferenciado e que o memorial atende às exigências técnicas, conforme ato normativo próprio.

Afastada a submissão do registro da aquisição da área da rodovia aos requisitos para o desmembramento de imóvel rural, não prevalece a exigência de apresentação da descrição georreferenciada com certificação pelo Incra.

A dispensa da certificação, ademais, não causará prejuízo para a identificação do imóvel rural porque o proprietário, ao solicitar nova certificação para a área remanescente, deverá especificar a parcela que foi desapropriada para uso como rodovia, ou, se for admitida a inscrição cadastral de áreas seccionadas como unidade imobiliária única, deverá discriminar, para efeito de certificação, a parte que passou a ser ocupada pela rodovia.

4. Afastada a destinação rural a ser dada para o imóvel desapropriado, porque será utilizado para a duplicação de rodovia estadual, não prevalecem as exigências de comprovação da sua inscrição no Cadastro de Imóvel Rural CCIR e no Cadastro Ambiental Rural SICAR/CAR.

5. Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação e afasto a recusa do registro da desapropriação.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Cf. https://www.gov.br/incra/pt-br/centrais-de-conteudos/legislacao/instrucao-normativa, consulta em 22/03/2024.

[2] Cf. https://www.gov.br/incra/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes, consulta em 21.03.2024.

(DJe de 07.06.2024 – SP)