CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida – Exigência de retificação do título – Partilha extrajudicial que não observou disposições testamentárias – Cláusula testamentária que de modo claro instituiu legado de usufruto sobe a totalidade da herança – Impossibilidade de interpretação criativa pelo notário, destituído de jurisdição e a quem não se comete a prerrogativa de alterar a vontade do testador – Instituição do usufruto pelo testador que afeta um terço do valor venal dos imóveis – Aplicação do artigo 9º da Lei n. 10.705/00 – Transmissão da nua-propriedade que garante respeito ao princípio da intangibilidade da legítima – Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1174094- 95.2023.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes TOYOKO SUGA, NEY JORGE SUGA, ARNALDO SUGA e ROBERTO SUGA, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 20 de junho de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1174094-95.2023.8.26.0100

APELANTES: Toyoko Suga, Ney Jorge Suga, Arnaldo Suga e Roberto Suga

APELADO: 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital

VOTO Nº 43.374

Registro de imóveis – Dúvida – Exigência de retificação do título – Partilha extrajudicial que não observou disposições testamentárias – Cláusula testamentária que de modo claro instituiu legado de usufruto sobe a totalidade da herança – Impossibilidade de interpretação criativa pelo notário, destituído de jurisdição e a quem não se comete a prerrogativa de alterar a vontade do testador – Instituição do usufruto pelo testador que afeta um terço do valor venal dos imóveis – Aplicação do artigo 9º da Lei n. 10.705/00 – Transmissão da nua-propriedade que garante respeito ao princípio da intangibilidade da legítima – Recurso não provido.

Trata-se de recurso de apelação interposto por Toyoko Suga, Ney Jorge Suga, Arnaldo Suga e Roberto Suga contra a r. sentença de fls. 118/120, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 1º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, que julgou procedente dúvida para manter a recusa em se proceder ao registro de escritura pública de inventário e partilha relativa aos bens deixados pelo falecimento de Alcanto Suga, a qual envolve os imóveis das matrículas n. 46.142, 10.553 e 8.084 daquela serventia (prenotação n. 441.841 – fl. 04). Fê-lo a r. sentença sob o argumento de que o autor da herança, Alcanto Suga, casado pelo regime da comunhão universal de bens com Toyoko Suga, dispôs de seus bens, em testamento, aos seus três filhos, com ressalva de que, sobre a sua metade ideal de todos os imóveis partilhados fosse instituído usufruto vitalício em favor de Toyoko, pelo que caberia à viúva meeira, além da plena propriedade de sua meação, o usufruto vitalício sobre a meação do testador, o que foi validado judicialmente (processo de autos n. 1056505-53.2021.8.26.0100 – fl. 09).

Contudo, por ocasião da documentação da partilha, os herdeiros legatários, Roberto Suga, Ney Jorge Suga e Arnaldo Suga, instituíram em favor de Toyoko, e com a concordância dela, usufruto apenas sobre uma quarta parte ideal dos imóveis recebidos (fls. 25/27), o que altera substancialmente a vontade do testador.

Nesse sentido, embora não haja litígio entre a viúva e os herdeiros legatários, a Corregedora Permanente entendeu necessária a retificação da escritura para cumprimento da disposição de última vontade do autor da herança, bem como de ordem exarada em processo judicial que a validou.

A parte apelante sustenta que Alcanto Suga deixou testamento, dispondo de seus bens a seus três filhos, Ney, Roberto e Arnaldo, com a ressalva de que fosse instituído usufruto vitalício em favor de Toyoko Suga sobre todos os imóveis partilhados; que o testamento foi homologado pelo juízo da 6ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central da Capital (autos n. 1056505-53.2021.8.26.0100); que dirigiram-se ao 21º Tabelião de Notas da Capital para lavratura da escritura pública de partilha, o que foi feito em 30 de dezembro de 2022 (fls. 07/32); que o preposto do 21º Tabelião de Notas da Capital levou referida escritura a registro perante o 1º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, mas houve recusa nos termos da nota devolutiva de fl. 04.

A parte sustenta, ainda, que a partilha segue literalmente a vontade do falecido, registrada em testamento público homologado judicialmente, o qual determinou a instituição de usufruto vitalício sobre a metade ideal de todos os bens imóveis deixados; que o testador somente poderia dispor da metade de sua meação, de modo que o usufruto deverá recair sobre a parte disponível dos bens; que a cláusula testamentária é suscetível de diferentes interpretações, nos termos do artigo 1.899 do Código Civil, mas deve ser observada a última vontade do testador; que a viúva e legatária, bem como os herdeiros, se compuseram para partilhar os bens de forma equânime e sem irregularidades (fls. 125/131).

A Procuradoria de Justiça opinou pelo provimento do recurso (fls. 161/163).

É o relatório.

De início, vale ressaltar que o Oficial titular ou interino dispõe de autonomia no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (art. 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.

Em outras palavras, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

Esta conclusão se reforça pelo disposto no item 117 do Cap. XX das Normas de Serviço:

Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.

No mérito, o recurso não comporta provimento.

Vejamos os motivos.

A controvérsia diz respeito à necessidade de retificação da escritura pública de inventário e partilha dos bens deixados por Alcanto Suga (fls. 07/35), a qual envolve os imóveis das matrículas n. 46.142, 10.553 e 8.084 do 1º Oficial de Registro de Imóveis da Capital.

Prenotado o título em 29 de novembro de 2023 sob o n. 441.841 (fl. 05), emitiu-se a nota de devolução de fl. 04 com as seguintes exigências:

1. Observamos que conforme consta do subitem 5, do item ‘4. Existência de Testamento’, o testador determinou, que, ‘sobre sua metade ideal de todos os bens imóveis partilhados acima seja instituído o USUFRUTO VITALÍCIO em favor de sua mulher TOYOKO SUGA sendo que esse usufruto sairá da parte disponível de seus bens, de tal modo que sua mulher ficará com o usufruto vitalício sobre a meação do testador, nos imóveis partilhados, e com a plena propriedade de sua meação’;

1.1 Ocorre que do item 13, relativo as instituições de usufruto, os herdeiros Ney Jorge Suga e Arnaldo Suga, instituem em favor da viúva o usufruto somente de ¼ (uma quarta parte ideal) dos imóveis recebidos em legado;

1.2 Assim, deverá o interessado promover a respectiva retificação, ou, em sendo o caso o respectivo esclarecimento por meio de aditamento”.

Suscitada a dúvida, o Oficial Registrador informou que Alcanto Suga deixou testamento dispondo de seus bens aos seus três filhos, com a ressalva de que sobre a metade ideal de todos os imóveis partilhados fosse instituído usufruto vitalício em favor de Toyoko Suga, com quem era casado pelo regime da comunhão universal de bens, de tal modo que sua mulher ficasse com o usufruto vitalício sobre a herança, além da plena propriedade sobre a meação dela.

Esclareceu, ainda, que, por ocasião da partilha, os herdeiros legatários instituíram em favor de Toyoko Suga usufruto sobre ¼ dos imóveis recebidos, contrariando o testamento deixado, pelo que devida retificação do título para observância dos termos do testamento, o qual havia sido validado pelo juízo da 6ª Vara de Família e Sucessões da Capital no processo de autos n. 1056505-53.2021.8.26.0100 (fls. 01/03).

As matrículas demonstram que os imóveis pertencem a Alcanto Suga e Toyoko Suga, casados pelo regime da comunhão universal de bens (matrículas n. 8.084, 10.553 e 46.142 – fls. 100/108; fl. 81).

O autor da herança faleceu em 24 de maio de 2020 (fl. 77), deixando os bens descritos na escritura pública de inventário e partilha a três filhos, Roberto Suga, Ney Jorge Suga e Arnaldo Suga, bem como à viúva meeira, Toyoko Suga (fls. 07/35), ora apelantes.

Na escritura pública de inventário e partilha, lavrada em 30 de dezembro de 2022 pelo 21º Tabelião de Notas da Capital (fls. 07/35), houve notícia sobre a existência de testamento deixado por Alcanto (fls. 09/11).

Transcrevo a disposição testamentária para maior clareza do que se decidirá abaixo:

“(…) 2º – Que é casado, sob o regime da comunhão universal de bens com TOYOKO SUGA, com quem tem (03) três filhos de nomes, ROBERTO SUGA, NEY JORGE SUGA e ARNALDO SUGA3º – Dessa forma então, ele Testador, dispondo de seus bens para depois de sua morte, quer e determina o seguinte: (…). – Que tudo que guarnecer os bens imóveis partilhados acima, seguirão aos seus legados; – determina ainda ele Testador, que, sobre a sua metade ideal de todos os bens imóveis partilhados acima seja instituído o USUFRUTO VITALÍCIO em favor de sua mulher TOYOKO SUGA sendo que esse usufruto sairá da parte disponível de seus bens, de tal modo que sua mulher ficará com o usufruto vitalício sobre a meação do Testador, nos imóveis aqui partilhados, e com plena propriedade de sua meação (…)”.

Reconheço que a disposição poderia ser mais clara, mas o que se deduz de modo seguro é o desejo do testador de onerar a totalidade da herança com direito real de usufruto em favor do cônjuge supérstite.

Basta ver que o usufruto incide sobre a metade de todos os bens imóveis partilhados, e não sobre a metade da herança. Como se sabe o monte mor partível abrange a herança e também a meação do cônjuge supérstite. A partilha individualiza quais os bens que compõem os quinhões dos herdeiros e a meação do cônjuge supérstite.

Essa a razão pela qual a cláusula testamentária explicitou que “sobre a sua metade de todos os bens imóveis partilhados acima seja instituído o usufruto vitalício em favor de sua mulher……”, usufruto incide sobre a metade de todos os bens do monte-mor partilhável – herança e meação. Logo recai sobre a totalidade da herança.

Sucede que da escritura, de partilha, e em supost cumprimento da disposição testamentária, houve a instituição de usufruto em favor de Toyoko Suga sobre 1/4 (uma quarta parte ideal) dos imóveis em questão (fls. 25/27).

Disso decorre que a partilha levada a efeito pelo tabelião de notas em inventário extrajudicial não se encontra em harmonia com a disposição testamentária.

O que se discute, em última análise, é se podem os herdeiros e a meeira, em partilha extrajudicial lavrada pelo tabelião de notas, dar interpretação à disposição testamentária em manifesta desconformidade com a vontade do testador.

A resposta é negativa.

Há referencia na escritura de partilha que a disposição testamentária violaria o princípio da intangibilidade da legitima, uma vez que a instituição de legado de usufruto em favor da viúva ultrapassaria a força da parte disponível.

Conforme preveem os artigos 1.789 e 1.846 do Código Civil, havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor de metade da herança, visto que a outra metade aos herdeiros necessários pertence (legítima):

“Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.”

“Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima”.

Nessa linha: “a limitação à liberdade de testar, pela existência de herdeiros necessários, restringe-se à metade dos bens da herança. Essa metade que lhes é assegurada é denominada legítima e corresponde sempre à metade da herança, independentemente do número de herdeiros necessários. Basta que haja um. A outra metade pode ser objeto de livre disposição testamentária, como estabelece o art. 1.789 (…).” (Código Civil Comentado, Coord. Min. Cezar Peluso, Ed. Manole, 7ª Ed., SP, 2013, pp. 2.231).

Por conta da expressa vedação legal contida no artigo 1.846 do Código Civil, que assegura aos herdeiros necessários o direito à metade dos bens deixados pelo de cujus, não é possível que sobre essa metade recaia qualquer restrição de destinação ou uso, salvo as hipóteses de justa causa, previstas no artigo 1.848 do Código Civil.

É sabido também que, no regime de comunhão universal de bens, comunicam-se todos os bens presentes e futuros dos cônjuges (artigo 1.667 do Código Civil), ressalvadas as exceções do artigo 1.668 do Código Civil, que reproduz preceito similar do Código Civil de 1.916.

No caso concreto, Toyoko Suga e o testador foram casados pelo regime da comunhão universal de bens (fl. 81), de modo que, antes do falecimento do testador, ela já era meeira do patrimônio comum e não concorreu com os herdeiros filhos na sucessão do cônjuge falecido.

Há que se analisar, à vista de todo o exposto, qual foi a vontade real do titular dos bens ao testar (artigo 1.899 do CC), a qual deve ser interpretada nos limites da lei.

Da leitura da cláusula testamentária não sobra dúvida de que o testador desejou a instituição de usufruto em favor da mulher sobre a parte disponível de todo o seu patrimônio imobiliário.

Em consequência, resta evidente que a escritura de partilha não foi lavrada em harmonia com referida disposição testamentária, a qual nada tem de ilícito nem avança sobre a legítima dos herdeiros necessários ao dispor que sobre os imóveis que integraram a herança – 50% dos bens do casal, cuja meação é de titularidade do testador em razão do regime de bens do casamento, será instituído usufruto vitalício em favor da esposa viúva.

Isto porque a um exame limitado sobre a validade da disposição testamentária a imposição de usufruto vitalício em favor da viúva cabe na parte disponível e não invade a legítima dos herdeiros necessários, que receberão a nua-propriedade de todo o patrimônio imobiliário objeto do no testamento.

Dizendo de outro modo, o que se discute é o seguinte: qual o valor do usufruto vitalício legado em favor de viúva meeira idosa?

Vale mais ou vale menos do que a metade dos imóveis.

Caso valha mais da metade, a deixa testamentária deve ser reduzida. Caso valha menos da metade, cabe na parte disponível do testador e a disposição é válida.

Reconheço que o tema é controverso, havendo julgados em ambos os sentidos.

Razoável, para fins de calculo da parte disponível, que o valor a ser observado é aquele estabelecido pela lei fiscal (Lei 10.705/2000), a qual atribui ao usufruto o valor correspondente a um terço do valor do bem (destaques nossos):

“Artigo 9º – A base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito transmitido, expresso em moeda nacional ou em UFESPs (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo).

§ 1º – Para os fins de que trata esta lei, considera-se valor venal o valor de mercado do bem ou direito na data da abertura da sucessão ou da realização do ato ou contrato de doação.

§ 2º – Nos casos a seguir, a base de cálculo é equivalente a:

1. 1/3 (um terço) do valor do bem, na transmissão não onerosa do domínio útil;

2. 2/3 (dois terços) do valor do bem, na transmissão não onerosa do domínio direto;

3. 1/3 (um terço) do valor do bem, na instituição do usufruto, por ato não oneroso;

4. 2/3 (dois terços) do valor do bem, na transmissão não onerosa da nua-propriedade”.

No caso concreto, o monte mor foi avaliado em R$14.624.546,19, de modo que metade pertence à viúva meeira e a outra metade aos herdeiros (R$7.312.273,09 cada, itens 10, 12 e 12.1, fls.19/20).

A legítima, portanto, toca patrimônio correspondente a R$ 3.656.136,55 (R$7.312.273,09 dividido por 2).

Já o patrimônio imobiliário partilhado no inventário somou R$7.161.330,47, levando em consideração a metade do valor venal atribuído a cada imóvel. Observe-se que todos os imóveis que pertenciam ao de cujus foram partilhados por testamento, com exceção de um (imóvel situado na rua Eduardo Lobo, n.237, com valor venal de referência de R$401.102,00), cuja metade ideal, avaliada em R$200.551,00, foi transmitida ao herdeiro Ney Jorge para doação ao motorista particular Carlos Roberto, atendendo à vontade tácita do autor da herança (fl.24).

Assim, a meação sobre os imóveis tratados no testamento foi avaliada em R$6.960.779,47 (R$7.161.330,47 – R$200.551,00).

Nesse contexto, a soma do valor venal dos direitos transmitidos pelo testador à viúva meeira, ou seja, o usufruto sobre todos os imóveis que integram a sua meação, totaliza R$2.320.259,82 (que é um terço de R$6.960.779,47, nos termos do artigo 9º, §2º, ‘3’, da Lei 10.705/2000).

Por sua vez, o valor da nua propriedade transmitida por testamento será de R$4.640.519,65 (correspondente a dois terços de R$6.960.779,47, nos termos do artigo 9º, §2º, 4, da Lei n. 10.705/2000), o que, ao lado dos bens móveis que compõem a herança deixada, constitui patrimônio superior à legítima reclamada.

Na lição de Caio Mário da Silva Pereira, “usufruto é o direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa sem alterar-lhe a substância, enquanto temporariamente destacado da propriedade” (Instituições de direito civil. Direitos reais, 18. ed. Rio de Janeiro, Forense, v. IV, 2003).

Da definição, tiramos suas principais características, a saber: a) é direito real sobre coisa alheia, gravando temporariamente um bem em favor de uma pessoa (por isso alguns autores, indevidamente, denominam-no servidão pessoal), com efeito erga omnes, distinguindo-se, portanto, da locação; b) é temporário, podendo ser a termo ou sob condição resolutiva, quando muito vitalício, extinguindo-se com a morte do usufrutuário, porque constituído sobre sua cabeça; c) provoca o desdobramento da posse, atribuindo a posse direta ao usufrutuário e reservando a posse indireta ao nu-proprietário; d) é intransmissível, podendo apenas ser cedido o seu exercício.

Importante destacar que o testador também gravou todos os bens imóveis transmitidos aos seus filhos com cláusulas vitalícias de incomunicabilidade e impenhorabilidade, extensiva aos frutos e rendimentos. Sua intenção foi preservar as condições de subsistência e o padrão de vida dos herdeiros pela manutenção da propriedade exclusiva (itens 8 e 9, fl.11).

A imposição de tais cláusulas evidencia, ainda, a vontade do testador de garantir o uso tranquilo dos bens não só pelos legatários, mas principalmente pela usufrutuária, impedindo que terceiros interfiram na sua relação com os titulares da nua-propriedade.

A conclusão pela ausência de restrição indevida à plena fruição da legítima se confirma não apenas pelo exposto acima, mas também pela falta de inconformismo dos herdeiros com as condições impostas.

Há, em verdade, concordância com a instituição de usufruto sobre todos os imóveis, embora em fração menor do que a desejada pelo testador.

Em outras palavras, a preservação da legítima dos herdeiros na forma como proposta na escritura de inventário extrajudicial, com instituição do usufruto apenas sobre a quarta parte dos bens da herança, ou seja, sobre a metade da meação que constituiria o patrimônio disponível do testador, embora pareça obedecer a cálculo aritmético simples, incorre em equívoco porque ignora a nua-propriedade que permanecerá no patrimônio dos herdeiros.

A instituição do usufruto na forma querida pelo testador, porém, não excluirá absolutamente os bens imóveis do patrimônio dos herdeiros, afetando sua legítima, mas apenas restringirá a propriedade por eles exercida na proporção de um terço do respectivo valor venal, conforme estimado pela lei fiscal.

Acrescento que no caso concreto o usufruto foi instituído em caráter vitalício em favor de viúva idosa, o que certamente deve ser levado em conta quanto ao tempo provável do gravame e cálculo de seu valor.

Portanto, para que se possa admitir o acesso da escritura ao fólio real, é necessário aditamento complementando o usufruto instituído nos moldes determinados pelo testamento.

Faço um apontamento final.

Os inventários que contêm disposições testamentárias, a princípio e por força de lei, devem processar-se em juízo, exatamente para que a vontade do testador seja fielmente observada.

Admitiu-se por entendimento na esfera administrativa que, após o registro do testamento, a partilha fosse levada a efeito na esfera extrajudicial. Não cabe ao tabelião, contudo, aventurar-se em interpretação criativa, que não reflita com exatidão e clareza a vontade do testador. O desejo de herdeiros que implique em interpretação duvidosa da vontade do testador está fora e além da autonomia do tabelião ou, em outras palavras, circunscrita à esfera jurisdicional.

Dizendo de modo bem claro, não podem os herdeiros obter em partilha extrajudicial interpretação ampliativa que não obteriam em juízo.

Essa a razão pela qual não merece registro escritura de partilha extrajudicial na qual a interpretação conferida pelos herdeiros, legatários e tabelião destoa de modo claro da vontade do testador e não se encontra maculada de manifesta ilegalidade por ofensa às legítimas.

Diante do exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 26.06.2024 – SP)