CSM|SP: Registro de imóveis – Escritura Pública de doação com instituição de usufruto – Qualificação negativa – Titular de domínio que doou a integralidade do imóvel e instituiu usufruto em seu favor e em favor de terceira pessoa – Usufruto deducto possível – Possível também a instituição de usufruto em favor de terceiro adquirente – O que veda a lei é a alienação do direito real de usufruto já constituído e não a instituição de usufruto em favor de uma pessoa e a alienação da nua propriedade em favor de outra – Ofensa ao princípio da continuidade não configurado – Necessidade de retificação do título afastada – Apelação provida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001469-22.2024.8.26.0132, da Comarca de Catanduva, em que é apelante MISSAKO UEMURA, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE CATANDUVA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação para afastar os óbices apresentados ao registro e julgar improcedente a dúvida, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 27 de junho de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1001469-22.2024.8.26.0132

APELANTE: Missako Uemura

APELADO: 1º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Catanduva

VOTO Nº 43.469

Registro de imóveis – Escritura Pública de doação com instituição de usufruto – Qualificação negativa – Titular de domínio que doou a integralidade do imóvel e instituiu usufruto em seu favor e em favor de terceira pessoa – Usufruto deducto possível – Possível também a instituição de usufruto em favor de terceiro adquirente – O que veda a lei é a alienação do direito real de usufruto já constituído e não a instituição de usufruto em favor de uma pessoa e a alienação da nua propriedade em favor de outra – Ofensa ao princípio da continuidade não configurado – Necessidade de retificação do título afastada – Apelação provida.

Trata-se de apelação interposta por Missako Uemura contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Catanduva/SP, que manteve a recusa de registro da escritura de doação com reserva de usufruto, tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 4.446 junto à referida serventia extrajudicial (fls. 135/142).

Sustenta a apelante, em síntese, ser possível a cindibilidade do título, a fim de viabilizar o registro da doação e do usufruto apenas em favor do titular de domínio, Kiyonari Uyemura, tendo em vista que sua esposa, Yae Okazaki Uyemura, ainda em vida, renunciou ao benefício nos termos da escritura pública de venda e compra lavrada junto ao 1º Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos de Catanduva/SP, em 13 de outubro de 2009. Afirma que os doadores são falecidos, certo que a judicialização da controvérsia somente serviria para prolongar a resolução da questão relativa ao imóvel objeto da doação (fls. 150/158).

A douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 176/180).

É o relatório.

A escritura pública de doação com instituição de usufruto, tendo por objeto o imóvel matriculado sob nº 4.446 junto ao 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Catanduva/SP (fls. 75/80), foi qualificada negativamente pelo registrador, que expediu nota de devolução nos seguintes termos (fls. 27/29):

(…) o imóvel é de titularidade exclusiva de KIYONARI UYEMURA, não havendo comunicação com sua esposa YAE OKAZAKI UYEMURA.

O imóvel foi adquirido por KIYONARI UYEMURA através da escritura de 02/03/1973, registrada conforme transcrição nº 24.258, de 16/03/1973 (livro 3-AV), registro anterior da matrícula nº 4.446. Apesar de ter constado da citada escritura que o adquirente era “casado”, na época ele era “solteiro”, já que o casamento de KIYONARI UYEMURA e YAE OKAZAKI UYEMURA ocorreu apenas em 15/05/1976 e o regime do casal é o da “separação obrigatória”, conforme certidão de casamento anexa.

Considerando que YAE OKAZAKI UYEMURA não é proprietária do imóvel, a presente escritura (livro 44 – páginas 39/41) deverá ser retificada, com assinatura de todos, para constar o seguinte: a) NA DOAÇÃO, YAE OKAZAKI UYEMURA não deve figurar como doadora, isto é, apenas KIYONARI UYEMURA deverá figurar como doador; e b) NO USUFRUTO, YAE OKAZAKI UYEMURA não deve figurar como usufrutuária, isto é, a reserva de usufruto deverá ser feita apenas por KIYONARI UYEMURA“.

No título, constaram como outorgantes doadores e usufrutuários Kiyonari Uyemura e Yae Okazaki Uyemura e como outorgados donatários e nus-proprietários os filhos do casal, Quioco Uemura Itonaga, Sizuco Uemura, Missako Uemura, Masamitsu Uemura, Aico Uemura, Yatiyo Uemura, Mariko Uemura, Shiguero Uemura, Heiko Uemura e Alberto Sizuo Uemura.

Dentre os bens doados, encontra-se o imóvel matriculado sob nº 4.446 junto ao 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Catanduva/SP. A certidão imobiliária a fls. 87/90 e a certidão de casamento a fls. 69/70 confirmam que o imóvel é de titularidade exclusiva de Kiyonari Uyemura, que o adquiriu antes de se casar com Yae Okazaki Uyemura, sob o regime da separação obrigatória de bens.

Não se ignora a impossibilidade de cisão do título quando houver ruptura da conexão dos capítulos que o compõem, de maneira a separar, nos negócios jurídicos nele consubstanciados, as partes eficazes e desprezar as restantes. Na jurisprudência deste Colendo Conselho Superior da Magistratura, a cisão possível é a do título formal (do instrumento), e não do título causal (fato jurídico que, levado ao registro de imóveis, dá causa à mutação jurídico-real).

Na situação em análise, entretanto, o óbice apresentado ao registro não é propriamente a impossibilidade de cindir o título, e sim a alegada necessidade de retificação da escritura pública de doação com reserva de usufruto, com a participação de todos os envolvidos, para exclusão de Yae Okazaki Uyemura da condição de outorgante doadora e usufrutuária, por não ser ela titular de domínio do imóvel objeto do negócio jurídico.

Ora, a despeito do entendimento apresentado pelo registrador, não se vislumbra ofensa ao princípio da continuidade por força do qual só se admite a inscrição (registro stricto sensu ou averbação – Lei nº 6.015, art. 167, incisos I e II) “daqueles actos de disposição em que o disponente coincide com o titular do direito segundo o registro” (Carlos Ferreira de Almeida, apud Ricardo Dip, Registros sobre Registros, nº 208).

Assim se afirma, pois no título qualificado negativamente o objeto da doação foi o imóvel matriculado sob nº 4.446 junto ao 1º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Catanduva/SP, de maneira que não há controvérsia sobre a intenção do titular de domínio de transmitir, de forma gratuita, a integralidade da nua-propriedade aos filhos. Destarte, a participação da esposa no ato notarial, ainda que por equívoco – já que se tratava de bem de particular do cônjuge – em nada interfere na validade e eficácia da doação da totalidade da nua-propriedade imóvel realizada pelo titular de domínio.

Nas palavras de Afrânio de Carvalho (Registro de Imóveis, 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 304):

“O princípio de continuidade, que se apoia no de especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidades à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões que derivam umas das outras, asseguram sempre a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente. Ao exigir que cada inscrição encontre sua procedência em outra anterior, que assegure a legitimidade da transmissão ou da oneração do direito, acaba por transformá-la no elo de uma corrente ininterrupta de assentos, cada um dos quais se liga ao seu antecedente, como o seu subseqüente a ele se ligará posteriormente. Graças a isso o Registro de Imóvel inspira confiança ao público”.

E sem assim é, havendo coincidência entre o disponente e o titular de domínio constante da matrícula, não se observa ofensa ao princípio da continuidade.

Se a esposa doadora não era na realidade co-titular do domínio, o consentimento que prestou na escritura não produziu efeitos.

Isso, porém, em rigorosamente nada interfere com a doação da totalidade da nua-propriedade levada a efeito por seu marido, titular exclusivo do domínio.

A irregularidade constatada, pois, não é óbice ao registro do título.

No mais, nada impede que o doador institua usufruto em seu favor (usufruto deducto) e simultaneamente em favor de terceira pessoa, in casu, a própria esposa, ainda que esta não seja, até então, titular de nenhum direito real sobre o imóvel doado.

Nada impede que se aliene em sentido amplo a nuapropriedade a uma pessoa e se institua direito real de usufruto em favor de outra.

O que a lei veda (art. 1.393 CC) é a alienação do direito real de usufruto já constituído, o que não é o caso dos autos. O usufruto não foi alienado, mas sim constituído pela doação m favor de terceira.

Por conseguinte, também nesse ponto o óbice apresentado ao registro do título não merece prevalecer.

E uma vez registrada a escritura pública de doação com instituição de usufruto, sua extinção, seja pela renúncia formulada pela usufrutuária, seja em virtude do falecimento dos usufrutuários, é questão que deverá ser oportunamente apreciada pelo registrador, em nada interferindo no registro ora em análise.

Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para afastar os óbices apresentados ao registro e julgar improcedente a dúvida.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 11.07.2024 – SP)