1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Procedimento de usucapião extrajudicial em andamento – Determinação da Justiça do Trabalho para registro de compromisso de compra e venda e averbação de penhora – Encerramento do procedimento sem análise do mérito em razão da existência de conflito – Procedimento previsto em lei, necessidade de prosseguimento do procedimento – Dúvida improcedente, com comunicação à CGJ.

SENTENÇA

Processo nº: 1080810-96.2024.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 15º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Requerido: Antonio Brandão de Souza Neto e outro

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo Oficial do 15º Registro de Imóveis da Capital, em requerimento formulado por Antonio Brandão de Souza Neto e Manoella Cabrera Hernandes Brandão à vista de indeferimento de processamento da usucapião extrajudicial dos imóveis das matrículas ns. 293.951 e n. 304.482 daquela serventia (prenotação n. 999.206, de 03 de julho de 2023).

O Oficial informa que os suscitados apresentaram requerimento para reconhecimento extrajudicial de usucapião, na modalidade especial urbana, sobre os imóveis das matrículas ns. 293.951 e n. 304.482; que o requerimento foi prenotado, autuado e processado; que o procedimento se encontrava na fase final do ciclo citatório, restando pendente somente a publicação do edital, quando recepcionou na serventia o ofício n. 0021/2024, expedido dos autos de ação trabalhista movida contra os executados Ely Hart Cerqueira Lima e Antonio Brandão de Souza (processo n. 0001304-83.2011.5.05.0034), contendo ordem judicial expressa ao Oficial para proceder ao registro de contrato preliminar de compromisso de compra e venda na matrícula n. 293.951 e averbação da penhora dos direitos reais de aquisição na mesma matrícula, sob pena de crime de desobediência, imposição de multa diária e adoção de medidas judiciais para execução da multa contra o delegatário, no bojo da execução trabalhista, “sem prejuízo de denúncia do titular do cartório ao Conselho Nacional de Justiça” (fls. 68/69).

O Oficial esclarece que, em vista da determinação oriunda da Justiça do Trabalho, decidiu finalizar o procedimento de usucapião extrajudicial; que a decisão de indeferimento do processamento da usucapião não examinou o mérito dos requisitos da usucapião pretendida, mas foi pautada pelo conflito inaugurado pela recepção do título judicial advindo da Justiça do Trabalho, vez que, na referida decisão, o juízo trabalhista teceu considerações sobre a natureza da posse dos requerentes que, no entendimento daquele juízo, não poderia ensejar aquisição via usucapião; que, a requerimento do suscitado, suscitou a presente dúvida (fls. 01/09).

Documentos e cópia do procedimento extrajudicial foram juntados às fls. 10/750.

Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada aduz que exerce a posse mansa, pacífica, ininterrupta, sem oposição, para fins de moradia desde 08.06.2015; que, por instrumento particular de cessão de direitos firmado em 13.01.2023, Ely Hart Cerqueira Lima formalizou a cessão da posse ao suscitado; que o imóvel foi adquirido a título oneroso em 29.09.1989 pelos antecessores Antônio Brandão de Souza, falecido em 01.05.2004, e Ely Hart Cerqueira Lima, por meio de escritura pública de compra e venda; que tais antecessores exerceram a posse até a cessão feita por Ely Hart Cerqueira Lima, em 08.06.2015; que, deste modo, preencheu os requisitos para o reconhecimento da usucapião sobre o imóvel, com fulcro no artigo 183 da Constituição Federal; que, no entanto, foi surpreendida pelo indeferimento da usucapião, sem qualquer fundamentação legal, somente em razão de processo de execução trabalhista, em trâmite nos autos n. 0001304-83.2011.5.05.0034, do TRT da 5ª Região; que a indisponibilidade e penhora foram lançadas na matrícula n. 293.951 somente em 17.04.2024, ou seja, cerca de nove meses depois do início do procedimento de usucapião; que o artigo 14 do Provimento CNJ n. 65/2017 prevê que a existência de ônus real ou gravame na matrícula do imóvel não configura impedimento ao reconhecimento extrajudicial da usucapião; que não houve qualquer impugnação ao pedido de usucapião no requerimento extrajudicial e os documentos demonstram a legitimidade do pleito; que este juízo já ressaltou que a indisponibilidade de bens não impede o prosseguimento do pedido de usucapião (processo n. 1094332-06.2018.8.26.0100); que a usucapião afasta qualquer dívida do proprietário registral, não podendo o usucapiente ser prejudicado por dívidas trabalhistas que resultaram em constrição do imóvel do executado, não tendo o exequente figurado como parte naquela ação trabalhista; e que não há fundamento para o indeferimento da usucapião extrajudicial, devendo ser determinado o prosseguimento e deferimento do requerimento (fls. 10/21).

A parte suscitada não apresentou impugnação nos autos (fls. 751).

O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela improcedência da duvida suscitada (fls. 755/757).

É o relatório.

FUNDAMENTO e DECIDO.

De início, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No Sistema Registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Por isso, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ): “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.

O E. Conselho Superior da Magistratura já decidiu que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Ap. Cível n. 413-6/7). Neste sentido, também a Ap. Cível n. 464-6/9, de São José do Rio Preto:

“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental.”

E, ainda:

“REGISTRO PÚBLICO – ATUAÇÃO DO TITULAR – CARTA DE ADJUDICAÇÃO – DÚVIDA LEVANTADA – CRIME DE DESOBEDIÊNCIA – IMPROPRIEDADE MANIFESTA. O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no artigo 330 do Código Penal – crime de desobediência – pouco importando o acolhimento, sob o ângulo judicial, do que suscitado.” (STF, HC 85911 / MG – MINAS GERAIS, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, j. 25/10/2005, Primeira Turma)

Sendo assim, não há dúvidas de que a origem judicial não basta para garantir ingresso automático dos títulos no fólio real, cabendo ao oficial qualificá-los conforme os princípios e as regras que regem a atividade registral.

No tocante ao instituto da usucapião, o Código Civil a define como modo originário de aquisição da propriedade e de outros direitos reais pela posse prolongada e qualificada por requisitos estabelecidos em lei.

A partir da vigência do artigo 216-A da Lei n. 6.015/1973, inaugurouse, no Sistema Brasileiro, uma nova forma de procedimento de usucapião que pode ser buscado pela parte, em caráter facultativo, na via administrativa perante o Oficial de Registro de Imóveis competente, com observância do procedimento específico regulado no artigo 216-A da Lei n. 6.015/73, Provimentos n. 65/17 e n. 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça, e Seção XII do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

O procedimento de usucapião extrajudicial tem como principal requisito a inexistência de lide, de modo que, apresentada qualquer impugnação, a via judicial se torna necessária, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum nos termos do §10, do artigo 216-A, da Lei n. 6.015/73.

As Normas de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, prestigiando a qualificação do Oficial de Registro, que dispõe de autonomia independência para exercitar a missão que a lei lhe confiou, e a importância do procedimento extrajudicial, trouxeram pequena flexibilização a tal regra no item 420.5 de seu Capítulo XX, permitindo que seja julgada a fundamentação da impugnação, com afastamento daquela claramente impertinente ou protelatória.

No mérito, a dúvida é improcedente. Vejamos os motivos.

No caso, consta que, após regular prenotação do título, aos 03 de julho de 2023, autuou-se na serventia imobiliária requerimento apresentado por Antonio Brandão de Souza Neto e Manoella Cabrera Hernandes Brandão pelo reconhecimento extrajudicial da usucapião dos imóveis, apartamento e respectiva vaga de garagem, objetos das matrículas ns. 293.951 e n. 304.482 do 15º Registro de Imóveis da Capital, sob a titularidade dominial de CIMOB Companhia Imobiliária (fls. 337/338).

No requerimento inicial, a parte aduz que exerce posse mansa, pacífica e ininterrupta sobre os imóveis, utilizando-os para moradia da família, sem oposição, desde 08 de junho de 2015. Em relação à cadeia possessória, sustenta que os antecessores na posse, Antônio Brandão de Souza e Ely Hart Cerqueira Lima adquiriram os imóveis por escritura pública de compromisso de compra e venda firmada com a titular de domínio Gomes de Almeida Fernandes Imobiliária S/A, em 29 de setembro de 1989. Em relação à origem de sua própria posse (causa possessionis), alega que exerce a posse desde 08 de junho de 2015, em virtude de cessão verbal feita por Ely Hart Cerqueira Lima, a título gratuito, conforme declarado pela cedente na escritura pública de declaração de posse lavrada em janeiro de 2023. Afirma que preenche os requisitos legais para o reconhecimento extrajudicial da usucapião, na modalidade especial urbana, sobre os imóveis, com fundamento no artigo 1240 do Código Civil.

O requerimento foi instruído com os documentos previstos em lei, tais como ata notarial, documentos comprobatórios da posse, certidões dos distribuidores da Justiça Estadual e da Justiça Federal expedidas em nome da titular de domínio, do requerente, de Antonio Brandão de Souza e de Ely Hart Cerqueira Lima, demonstrando a inexistência de ações que caracterizem oposição à posse do imóvel em desfavor dos atuais possuidores e seus antecessores (fls. 198/216).

Observa-se dos autos que, em sede de qualificação registral preliminar de admissibilidade da via administrativa, o Oficial analisou os requisitos formais de admissibilidade do procedimento de usucapião extrajudicial, com base no requerimento e documentos juntados, e, tendo positivado sua conformidade com as disposições legais e normativas que regem este procedimento específico, deu início ao ciclo das notificações previstas em lei, na forma dos §§ 2º a 4º, do artigo 216-A da Lei de Registros Públicos e das normas de serviço.

Já na fase final do ciclo citatório, restando pendente a publicação do edital, consta que a serventia recepcionou título consubstanciado em mandado de averbação da penhora extraído de ação trabalhista (processo n. 0001304-83.2011.5.05.0034), levado ao protocolo sob a prenotação n. 1.014.850, em 29 de novembro de 2.023, o qual restou desqualificado mediante a emissão de nota devolutiva, nos seguintes termos (com nossos destaques):

“1. Da matrícula no 293.950 não consta que o (s) executado (s) SÃO MARCOS EMPREENDIMENTOS HOSPITALARES S/A, MANOEL BARRETO EMPREENDIMENTO SP LTDA, BOULEVARD ADMINISTRADORA DE BENS. E EMPREENDIMENTOS LTDA, HSM GESTÃO HOSPITALAR LTDA, ELY HART CERQUEIRA LIMA, VERA LUCIA SOUZA MOTTA, MARILIA ROSADO DE SOUZA LEITE, MARCIA SOUZA FERNANDEZ, E ANTONIO BRANDÃO DE SOUZA FILHO é/são detentor(es) de direitos sobre o imóvel dela objeto. A efetivação da averbação da penhora fica condicionada ao cumprimento do princípio da continuidade registrária, previsto no artigo 195 da Lei 6.015/13, isto é, o registro do título de propriedade do(s) citado(s) réu(s); ou que se indique a responsabilidade patrimonial do executado, nos termos dos artigos 790 e 792 do CPC, constando a data da r. decisão, e fls. dos autos do processo, conforme previsto no parecer no 312/2012-E exarado no Provimento CG n. 22/2072. Conforme a matrícula n. 293.950, a atual titular do imóvel penhorado é CIMOB COMPANHIA IMOBILIARIA.

2. Existe prenotado sob no 999.206 em 03 de junho de 2023, o requerimento datado de 30 de junho de 2023, onde ANTONIO BRANDÃO DE SOUZA NETO, CPF n. ., requer reconhecimento extrajudicial de usucapião do imóvel objeto da matricula n. 293.957, e nos termos dos artigos 186 c/c 216-A, §1º da Lei 6.015/13, referido título terá prioridade de registro”.

Portanto, o Oficial de Registro, de forma acertada, desqualificou o título contraditório subsequentemente apresentado durante a vigência da prenotação anteriormente ativada pelo protocolo do requerimento de usucapião extrajudicial, já que essa prenotação anterior deflagrou o início de procedimento registral ainda pendente de definição. A acertada a qualificação registral revela que o Registrador mantém rigorosa observância dos princípios da continuidade e da prioridade que regem e iluminam o Sistema Registral, além de controle de títulos contraditórios.

Como já mencionado, o E. Conselho Superior da Magistratura assentou o entendimento de que a origem judicial não basta para garantir ingresso automático dos títulos no fólio real, cabendo ao Oficial qualificá-los conforme os princípios e as regras que regem a atividade registral.

Sucede, todavia, que após a desqualificação do título de penhora, o Oficial recepcionou o ofício n. 0021/2024, expedido dos autos da mesma ação trabalhista, contendo ordem judicial expressa ao Oficial para proceder ao registro de contrato preliminar de compromisso de compra e venda na matrícula n. 293.951 e à averbação da penhora dos direitos reais de aquisição na mesma matrícula, sob pena de crime de desobediência, imposição de multa diária e adoção de medidas judiciais para execução da multa contra o delegatário, no bojo da execução trabalhista, “sem prejuízo de denúncia do titular do cartório ao Conselho Nacional de Justiça” (fls. 68/69).

Diante desta situação, o Oficial deu cumprimento à ordem judicial, deixando consignado nas matrículas que os atos de registro e averbação foram praticados por ordem judicial. Ou seja, o registro que constituiu direito real não decorreu de rogação do interessado (art. 8º, II da LRP).

Pois bem. No que tange ao processamento do pedido de usucapião extrajudicial, verifica-se que o procedimento foi iniciado após regular qualificação preliminar de admissibilidade da via administrativa e tem seu andamento regular desde então, atualmente em fase adiantada de encerramento do ciclo das notificações previstas em lei, na forma dos §§ 2º a 4º, do artigo 216-A da Lei de Registros Públicos e normas de serviço.

As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, na regulação do procedimento de usucapião extrajudicial, dispõem sobre as notificações e impugnações, destacando-se o seguinte:

“418. Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância.

(…)

418.11. No caso de o imóvel usucapiendo ser unidade autônoma de condomínio edilício, fica dispensado consentimento dos titulares de direitos reais e outros direitos registrados ou averbados na matrícula dos imóveis confinantes e bastará a notificação do síndico para se manifestar na forma do § 2º do art. 216-A da Lei 6.015/73.

(…)

418.19. A existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião.

(…)

418.21. Após as notificações dos titulares do domínio do imóvel usucapiendo e dos confrontantes, o oficial de registro de imóveis expedirá edital, que será publicado pelo requerente e às expensas dele, na forma do art. 257, III, do CPC, para ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão manifestar-se nos quinze dias subsequentes ao da publicação.

(…)

420. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, por ente público ou por terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis tentará promover a conciliação ou a mediação entre as partes interessadas.

(…)

420.2. Consideram-se infundadas a impugnação já examinada e refutada em casos iguais pelo juízo competente; a que o interessado se limita a dizer que a usucapião causará avanço na sua propriedade sem indicar, de forma plausível, onde e de que forma isso ocorrerá; a que não contém exposição, ainda que sumária, dos motivos da discordância manifestada; a que ventila matéria absolutamente estranha à usucapião.

420.3. Se a impugnação for infundada, o Oficial de Registro de Imóveis rejeitá-la-á de plano por meio de ato motivado, do qual constem expressamente as razões pelas quais assim a considerou, e prosseguirá no procedimento extrajudicial caso o impugnante não recorra no prazo de 10 (dez) dias. Em caso de recurso, o impugnante apresentará suas razões ao Oficial de Registro de Imóveis, que intimará o requerente para, querendo, apresentar contrarrazões no prazo de 10 (dez) dias e, em seguida, encaminhará os autos ao juízo competente.

420.4. Se a impugnação for fundamentada, depois de ouvir o requerente o Oficial de Registro de Imóveis encaminhará os autos ao juízo competente.

420.5. Em qualquer das hipóteses acima previstas, os autos da usucapião serão encaminhados ao juízo competente que, de plano ou após instrução sumária, examinará apenas a pertinência da impugnação e, em seguida, determinará o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que prosseguirá no procedimento extrajudicial se a impugnação for rejeitada, ou o extinguirá em cumprimento da decisão do juízo que acolheu a impugnação e remeteu os interessados às vias ordinárias, cancelando-se a prenotação.”

Depreende-se dos dispositivos transcritos que, com o início da fase procedimental de notificações dos interessados, cientificação das Fazendas Públicas e publicação de edital (ciclo das notificações previstas em lei), se vier impugnação formal apresentada contra o pedido, abrem-se dois caminhos para definir o rumo do procedimento, sendo que ambos dependerão do resultado do exame da impugnação pelo Oficial: a) se considerar a impugnação infundada, deverá rejeitá-la por ato motivado, passível de revisão administrativa; b) se considerar a impugnação fundamentada, depois de ouvir o requerente e observar o disposto no item 420.6., encaminhará os autos à Corregedoria Permanente.

No entanto, se o pedido não sofrer impugnação formal nesta fase, o procedimento deverá prosseguir em seus ulteriores termos, na forma do disposto no item 421 e seguintes, do Cap. XX das NSCGJ (nossos destaques):

“421. No caso de ausência ou insuficiência dos documentos de que trata o inciso III do item 416.2, a posse e os demais dados necessários poderão ser comprovados em procedimento de justificação administrativa perante o oficial de registro de imóveis, que obedecerá, no que couber, ao disposto no § 5º do art. 381 e ao rito previsto nos arts. 382 e 383, todos do Código de Processo Civil.

421.1. Para a elucidação de dúvidas, imprecisões ou incertezas, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis ou por escrevente habilitado.

421.2. Se, ao final das diligências, ainda persistirem dúvidas, imprecisões ou incertezas, bem como a ausência ou insuficiência de documentos, o oficial de registro de imóveis rejeitará o pedido mediante nota de devolução fundamentada.”

No caso telado, constata-se que, ao menos até o momento, não houve qualquer impugnação formal ao pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião apresentada por qualquer dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo, por ente público ou por terceiro interessado.

A superveniente averbação de penhora na matrícula do imóvel, conforme previsto no item 418.19, do Cap. XX das NSCGJ, por si só, não impede o reconhecimento extrajudicial da usucapião:

“418.19. A existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impedirá o reconhecimento extrajudicial da usucapião.”

No caso, a r. decisão interlocutória proferida pelo juízo trabalhista não tem o condão de interromper o regular processamento do procedimento extrajudicial.

É importante lembrar que, na esteira da evolução legislativa voltada ao tema da desjudicialização de alguns institutos antes restritos à via judicial, a Lei n. 13.105/2015 (Código de Processo Civil), incluiu o artigo 216-A na Lei n. 6.015/1973, posteriormente alterado pela Lei n. 13.465/2017, dispondo sobre a usucapião extrajudicial e atribuindo ao Oficial Registrador competência para análise do próprio requerimento, inclusive eventual impugnação, permitindo-se a rejeição do pedido por intermédio de nota de devolução fundamentada.

Forte na função pública delegada (cf. artigo 236 da Constituição Federal), o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

Na lição de Walter Ceneviva:

“A independência do delegado destina-se a ser preservada e fruída no exercício da missão que a lei lhe atribui. O melhor discernimento do titular se cumpre na prática dos atos próprios da serventia, como se interpreta em leitura conjunta com o art. 22, para dar-lhes cumprimento eficiente e adequado, conforme melhor pareça a seu equilibrado juízo.” (Walter Ceneviva. Lei dos Notários e dos Registradores Comentada. Editora Saraiva. 8ª ed. 2010. P. 28)

Portanto, se a lei atribui ao Oficial a competência para análise do próprio requerimento de usucapião extrajudicial, permitindo que a rejeição se dê por meio de nota devolutiva fundamentada, é preciso respeitar a autonomia e independência que Registrador detém para exercitar esta importante missão que a lei lhe confiou (art. 216-A da LPR), com observância do procedimento específico regulado no artigo 216-A da Lei n. 6.015/73, Provimentos n. 65/17 e n. 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça, e Seção XII do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.

Nesta toada, se o procedimento de usucapião extrajudicial cumpriu todas as etapas procedimentais previstas na lei e nas normas (requerimento formal apto foi instruído com ata notarial; planta e memorial descritivo, se o caso; certidões negativas de distribuição; notificações dos interessados e cientificação das Fazendas Públicas; publicação de edital; eventuais diligências para elucidação de qualquer ponto de dúvida; possibilidade de justificação administrativa; ausência de impugnação formal ao pedido), a última fase do procedimento desaguará na qualificação registral definitiva, incumbindo ao Oficial emitir nota fundamentada acerca do deferimento ou da rejeição do pedido de usucapião.

É evidente que, por ocasião da qualificação registral definitiva, o Oficial deverá examinar todo o panorama fático que acabou sendo revelado pelo juízo trabalhista, e que não constava do requerimento inicial, especialmente acerca do vínculo de parentesco entre o usucapiente e os antecessores na posse, com possibilidade de repercussão na natureza da posse.

De todo modo, a lei atribui ao Oficial a competência para análise do requerimento de usucapião extrajudicial, se entender que não restou presente algum requisito procedimental, formal ou material, deverá emitir nota de devolução fundamentada ao interessado, o qual poderá suscitar dúvida (art. 198 da LRP).

Não é demais repisar que a usucapião é modo originário de aquisição da propriedade em decorrência da posse qualificada exercida sobre a coisa durante o prazo da prescrição aquisitiva. Estes dois elementos, o tempo e a posse, estão sempre presentes em qualquer modalidade de usucapião.

No entanto, a posse normal ad interdicta não basta para configurar usucapião, exigindo-se a posse ad usucapionem, na qual, além de exteriorizar uma aparência de domínio, o usucapiente deve demonstrar uma posse com qualidades especiais, no caso concreto, previstas no artigo 1240 do Código Civil: prazo de cinco anos, sem interrupção (posse contínua), nem oposição (posse pacífica), com “animus domini”, sobre área urbana de até 250 m², utilizandoa para sua moradia ou de sua família.

No tocante ao “animus domini”, atrela-se intrinsecamente à causa da posse, ao motivo pelo qual exerce a posse. Como ensina o Desembargador Francisco Eduardo Loureiro: “Possui a coisa como sua quem não reconhece a supremacia do direito alheio. Ainda que saiba que a coisa pertence a terceiro, o usucapiente se arroga soberano e repele a concorrência ou a superioridade do direito de outrem sobre a coisa.” (Código Civil Comentado, Editora Manole, 8ª edição, página 1.131).

Oportuna, ainda, menção a doutrina de Fabio Caldas de Araújo: “No que diz respeito à usucapião, tendo-se em vista tratar-se de modo originário de aquisição de propriedade, seus reflexos precisam ser analisados não só em relação ao titular da posse, mas abrangendo todos que são atingidos pelos seus efeitos.” (Fabio Caldas de Araújo. Malheiros Editores. 3ª ed. P. 199).

Em suma, no caso concreto, à míngua de qualquer impugnação formal ao pedido, o Oficial não poderia ter finalizado, de forma precoce e abrupta, o prosseguimento do processamento extrajudicial da usucapião, como fez, sem nota de devolução fundamentada.

Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada, determinando o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis para prosseguir com o procedimento extrajudicial.

Dado o poder hierárquico a que se submete este juízo, reputo conveniente a comunicação à E.CGJ do teor do ofício n. 0021/2024, expedido com ordem judicial ao Oficial para registro de contratos preliminares de compromisso de compra e venda nas matrículas n. 293.950 e 999.206 do 15º RI, sem observância do princípio da prioridade, tendo em vista a vigência ativa da prenotação do título anterior (requerimento de usucapião extrajudicial).

A presente servirá como ofício, devidamente instruído com cópias de fls. 68/75.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 11 de julho de 2024.

Renata Pinto Lima Zanetta

Juíza de Direito 

(DJe de 12.07.2024 – SP)