CSM|SP: Registro de imóveis – Usucapião extraordinária – Exigência de registro da escritura de aquisição dos anteriores compradores com o proprietário tabular e de reconhecimento de firma dos compromissários compradores apelantes – Forma originária de aquisição de propriedade – Desnecessidade de observância do princípio da continuidade registral – Reconhecimento de firmas não exigível porque a usucapião é o título que se pretende registrar – Afastadas as exigências – Dúvida improcedente – Apelação provida para determinar o processamento da usucapião.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000692-26.2022.8.26.0126, da Comarca de Caraguatatuba, em que são apelantes MAURÍCIO TASSONI e ELVIRA CRISTINA MARTINS TASSONI, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE CARAGUATATUBA.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso para julgar a dúvida improcedente, determinando o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que prosseguirá com o procedimento extrajudicial, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), SÁ DUARTE E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 4 de julho de 2024.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1000692-26.2022.8.26.0126
APELANTES: Maurício Tassoni e Elvira Cristina Martins Tassoni
APELADO: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Caraguatatuba
VOTO Nº 43.442
Registro de imóveis – Usucapião extraordinária – Exigência de registro da escritura de aquisição dos anteriores compradores com o proprietário tabular e de reconhecimento de firma dos compromissários compradores apelantes – Forma originária de aquisição de propriedade – Desnecessidade de observância do princípio da continuidade registral – Reconhecimento de firmas não exigível porque a usucapião é o título que se pretende registrar – Afastadas as exigências – Dúvida improcedente – Apelação provida para determinar o processamento da usucapião.
Trata-se de apelação interposta por MAURÍCIO TASSONI e esposa, ELVIRA CRISTINA MARTINS TASSONI, contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Caraguatatuba/SP, que, na dúvida suscitada, manteve a negativa ao processamento extrajudicial e registro da usucapião extraordinária do imóvel urbano, objeto da matrícula nº 50.387 daquela serventia (fls. 300/303).
Afirmam os apelantes, em síntese, que as exigências apresentadas pelo Registrador quanto ao registro da escritura de compra e venda firmada entre o proprietário tabular e as pessoas de Irineu Dollo e esposa, com quem celebraram o compromisso de venda e compra do imóvel, assim como quanto ao reconhecimento de firmas no instrumento de compromisso, são descabidas porque postulam usucapião extraordinária, onde não se exige justo título, além de aduzirem a impossibilidade de cumprimento das exigências, já que a proprietária tabular Fama Imóveis S/C Limitada está baixada desde 1996 e os compromissários vendedores são falecidos.
A Douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 350/353).
O recurso foi inicialmente distribuído à Corregedoria Geral de Justiça, que declinou da competência, determinada a redistribuição ao Colendo Conselho Superior da Magistratura (fls. 356/358).
É o relatório.
MAURÍCIO TASSONI e ELVIRA CRISTINA MARTINS TASSONI apresentaram ao Oficial do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas de Caraguatatuba/SP, ata notarial e requerimento para processamento e registro de Usucapião Extraordinária do imóvel urbano, objeto da matrícula nº 50.387, acompanhados de documentos.
O pedido foi negado pelo Oficial, conforme nota de devolução nº 207.792 (fls. 64 e 221/222), com o seguinte teor:
“1. O item 419 do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, dispõe sobre a dispensa da notificação dos proprietários tabulares do imóvel usucapiendo, caso seja anexo ao processo, justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica entre o proprietário tabular e o requerente da usucapião extrajudicial. Contudo, o item 419.2 das referidas normas impõe a necessidade de ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes’. No presente caso, verificamos que foi anexa ao processo, a certidão da escritura pública (L.57 – p. 186), de 01/03/1993, do Tabelião de Notas do Distrito de Maresias, São Sebastião/SP, datada de 22/11/2006, através da qual a proprietária tabular do imóvel objeto da matrícula n° 50.387, FAMA IMÓVEIS S/C LTDA. vende o mesmo a IRINEU DOLLO, e sua mulher MERCEDES GONÇALVES DOLLO. Ocorre que, da análise da referida escritura, verificamos que não há óbice ao registro da mesma, devendo ela ser prenotada para registro, este que após efetuado, irá alterar o polo passivo do presente processo, pois os proprietários tabulares passarão a ser IRINEU DOLLO, e sua mulher MERCEDES GONÇALVES DOLLO.
2. É importante ressaltar que também analisamos o instrumento particular de compromisso de venda e compra datado de 29/05/2002, anexo ao processo, através do qual IRINEU DOLLO, e sua mulher MERCEDES GONÇALVES DOLLO, compromissaram a venda do imóvel usucapiendo aos requerentes MAURÍCIO TASSONI, e sua mulher ELVIRA CRISTINA MARTINS TASSONI. Desta análise sim, verificamos que o mesmo não possui todos os requisitos para o seu devido registro nesta Serventia, o que justifica o presente pedido de reconhecimento de usucapião extrajudicial. No entanto, as firmas lançadas em referido instrumento não se acham devidamente autenticadas por notário, o que precisa ser providenciado.
3. Verificamos que a maioria da documentação que compõe o presente processo foi apresentada por meio de cópias simples (documentos dos requerentes, documentos que comprovam a posse), estas que não produzem qualquer efeito no fólio registral, devendo as mesmas ser substituídas por seus originais ou cópias autenticadas (se não todas, ao menos aquelas mais representativas).
5. As custas e emolumentos importam, nesta data, em aproximadamente R$ 2.401,96, conforme segue.”
Discordando das exigências apresentadas, foi instaurado o procedimento da dúvida (fls. 01/06), insistindo o Oficial tão somente quanto ao cumprimento dos itens 1 e 2 da nota devolutiva.
A r. sentença julgou procedente a dúvida para manter as exigências, sustentando a necessidade do registro da escritura pública de venda e compra havida entre Fama Imóveis S/C Ltda e Irineu Dollo e sua mulher Mercedes Gonçalves Dollo, além da necessidade do reconhecimento das assinaturas apostas no instrumento particular de compromisso de venda e compra firmado entre os requerentes e os antigos vendedores, a teor do que dispõe o artigo 13 do Provimento 65/17 do CNJ.
Todavia, o recurso deve ser provido.
Descabida a exigência de registro da escritura pública de venda e compra firmada em 01/03/1993 entre a proprietária tabular Fama Imóveis S/C Ltda e os compradores Irineu Dollo e Mercedes Gonçalves Dollo (fls. 96/99), com quem os apelantes celebraram contrato de compromisso de compra e venda (fls. 104/105).
Como se sabe, a usucapião traduz forma originária de aquisição de propriedade, desvinculada de conteúdo declaratório de vontade de anteriores proprietários, sem necessidade de observância do princípio do trato sucessivo.
Nesse sentido, esclarecedor o voto do então Corregedor Geral de Justiça e Relator, Des. Pereira Calças, na apelação nº 1006009-07.2016.8.26.0161, cujo trecho merece transcrição:
“ (….)
Por se cuidar de forma originária de aquisição da propriedade, indagação alguma haverá de ser feita acerca da continuidade. Rompem-se todos os vínculos preteritamente havidos sobre o bem, de tal arte que prescindível a estrita observância da continuidade, diversamente do quanto afirmado pela Oficial.
(….)”.
Para mais, o pedido formulado foi de usucapião extraordinária, que prescinde da existência de justo título para seu reconhecimento.
Deve ser observado que os apelantes não postularam o registro do contrato de compromisso de compra e venda, caso em que certamente deveria ser observado o Princípio da Continuidade, registrando-se, deste modo, todos os instrumentos de transferência dentro da cadeia dominial.
A pretensão dos apelantes é de ser declarado o domínio pela usucapião extraordinária, com fundamento no artigo 1.238 do Código Civil:
“Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”.
Na espécie, a prova documental apresentada permite vincular os apelantes aos compromissários vendedores Irineu Dollo e Mercedes Gonçalves Dollo, que firmaram a escritura de compra e venda com a proprietária tabular do imóvel entre Fama Imóveis S/C Ltda. A escritura de compra e venda foi lavrada em 01 de março de 1993 e o instrumento de compromisso de compra e venda foi firmado em 29 de maio de 2002, donde se vê cumprido o lapso temporal da usucapião extrajudicial.
Nesse cenário, o item 1 da nota devolutiva, não poderia prevalecer.
O item 2 da nota devolutiva – as firmas lançadas em referido instrumento não se acham devidamente autenticadas por notário, o que precisa ser providenciado – também não se justifica porque não há pretensão de inscrição do referido título no fólio real. O instrumento de compromisso de compra e venda apenas compõe o conjunto probatório para demonstrar a posse do imóvel pelo tempo necessário à concretização da prescrição aquisitiva.
Embora o reconhecimento de firma seja requisito legal para ingresso do instrumento particular de compromisso de compra e venda no Registro de Imóveis (artigo 221, inciso II, da Lei de Registros Públicos, e item 108, “b”, Cap. XX, das NSCGJ), é preciso reiterar que o título que se pretende registrar é a usucapião extrajudicial, e não o instrumento particular de compra e venda firmado entre os compradores do proprietário tabular e os ora apelantes. O documento apenas foi apresentado para dar amparo à pretensão usucapienda.
Desta forma, afasta-se a exigência constante no item 2 da dúvida suscitada.
Por oportuno, anote-se que a regulamentação da usucapião extrajudicial trazida pelo Provimento CNJ nº 65/2017, em vigor quando do início do procedimento, foi incorporada no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça (Provimento nº 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça), sem modificações dignas de nota.
Afastados os óbices, é mister o deferimento do processamento da usucapião extrajudicial, nos seus ulteriores termos, incluindo a notificação dos herdeiros de Irineu Dollo e Mercedes Gonçalves Dollo, assim como da proprietária tabular Fama Imóveis S/C Ltda, na pessoa de seu liquidante, ou, na sua falta, por edital.
Diante do exposto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso de apelação para julgar a dúvida improcedente, determinando o retorno dos autos ao Oficial de Registro de Imóveis, que prosseguirá com o procedimento extrajudicial, nos termos desta decisão.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJe de 19.07.2024 – SP)