CSM|SP: Registro de imóveis – Usucapião extrajudicial – Dúvida julgada procedente – Ausência de justo título apto a embasar a usucapião ordinária – Documentos apresentados que não comprovam o efetivo exercício da posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo tempo da prescrição aquisitiva – Rejeição do pedido que se impõe, na forma do art. 216-A, § 8º, da Lei Nº 6.015/1973 – Interessada que, assim querendo, poderá buscar na esfera jurisdicional o reconhecimento de seu alegado direito – Apelação não provida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1022470-62.2024.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante DIANA MIMOSA DOS SANTOS MACEDO, é apelado 7º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), SÁ DUARTE E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 4 de julho de 2024.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1022470-62.2024.8.26.0100
APELANTE: Diana Mimosa dos Santos Macedo
APELADO: 7º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital
VOTO Nº 43.472
Registro de imóveis – Usucapião extrajudicial – Dúvida julgada procedente – Ausência de justo título apto a embasar a usucapião ordinária – Documentos apresentados que não comprovam o efetivo exercício da posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo tempo da prescrição aquisitiva – Rejeição do pedido que se impõe, na forma do art. 216-A, § 8º, da Lei Nº 6.015/1973 – Interessada que, assim querendo, poderá buscar na esfera jurisdicional o reconhecimento de seu alegado direito – Apelação não provida.
Trata-se de apelação interposta por Diana Mimosa dos Santos Macedocontra a r. sentença proferida pela MM.ª Juíza Corregedora Permanente do 7º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, que manteve a recusa de registro da usucapião dos imóveis transcritos sob nos 77.559 e 77.560 junto à serventia extrajudicial referida, por entender que não há provas da existência de justo título a embasar o pedido de usucapião ordinária, bem como por ser necessária a anuência ou notificação de todos os titulares de direitos registrados e por não estar comprovado o exercício da posse pelo tempo alegado (fls. 167/175).
Alega a apelante, em síntese, que a escritura de cessão de direitos hereditários e o testamento apresentados constituem justo título apto a embasar o pedido de usucapião ordinária. Afirma estar comprovado o exercício da posse mansa, pacífica e ininterrupta, como se depreende das notificações de IPTU e do contrato de locação celebrado. Aduz, por fim, que ambas as transcrições se referem a um imóvel de numeração única, relativo à área total das transcrições agrupadas (fls. 181/186).
A douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 205/207).
É o relatório.
O procedimento extrajudicial de usucapião ordinária foi iniciado perante o Oficial de Registro de Imóveis, que indeferiu o pedido de registro por entender que (fls. 152/154):
“Primeiramente deverá ser esclarecido se o nome da requerente é DIANA MIMOSA ou DIANA MIMOZA isso porque na certidão de casamento e em toda a qualificação consta que o correto seria com “S”, contudo a CNH e o reconhecimento da firma indicam que a grafia correta seria com “Z”.
Conforme já exposto nas notas devolutivas de 02/08/2022, 11/01/2023 e 18/06/2023 verifica-se que no presente caso é pretendida a usucapião pela modalidade ordinária (art. 1.242, do Código Civil). Essa modalidade determina a necessidade de apresentação de todos os justos títulos que compõem a cadeia possessória, desde a titular do domínio até a requerente. Isso porque o art. 401, inciso III, do Provimento 149/23 do CNJ dispõe expressamente sobre a necessidade de demonstrar a origem e a continuidade da cadeia possessória.
(…)
Quanto aos títulos que compõem a cadeia de transmissões dos Imóveis, foram apresentados:
a) Cópia da escritura de testamento lavrada pelo 19º Tabelião de Notas desta Capital (Lv. 1.687, fls. 33) em 15/01/1971, na qual a titular de domínio JULIA PADOVANE legou os imóveis usucapiendos à ASSOCIAÇÃO ESPÍRITA BENEFICENTE DR. ADOLFO BEZERRA DE MENEZES, reservando, entretanto, o usufruto vitalício dos imóveis à OLGA PADOVANI, nomeando ainda como testamenteiros e inventariantes Olga e em segundo lugar ARMANDO PADOVANI;
b) Cópia do Instrumento Particular de Cessão de Direitos, datado de 26/02/2007, no qual ASSOCIAÇÃO ESPÍRITA BENEFICENTE DR. ADOLFO BEZERRA DE MENEZES cede os direitos aquisitivos dos imóveis usucapiendo para a requerente, em observação à escritura de testamento mencionada.
(…)
No entanto, conforme se depreende dos títulos bem como da jurisprudência, a escritura de testamento não se reveste como título hábil à transferência de propriedade, em verdade, in casu, o real justo título seria a sentença que adjudicasse à anterior possuidora os imóveis usucapiendos, uma vez que, como já apontado por esta Serventia, existe o processo de inventário nº 1028159-39.2014.8.26.0100, referente aos bens deixados por Julia Padovane em virtude de seu falecimento. Assim, para que seja possível a verificação da destinação do imóvel usucapiendo, far-se-á necessária a apresentação da certidão de objeto e pé, das primeiras declarações, da partilha, de sua homologação judicial e trânsito em julgado.
(…)
Diferentemente do alegado pela requerente, não foram apresentados documentos hábeis a demonstrar a posse pelo período mínimo exigido. Isso porque, contrato de locação a Luís Laura Santori teve início em 01/03/2015 e findou-se em 01/03/2018. Destarte, é necessário robustecer a apresentação de documentos comprobatórios do exercício efetivo da posse pela usucapiente sobre o imóvel, pelo menos de 2008 até 2014 e 2018 até 2023, período mínimo necessário à modalidade escolhida (v.g. contas de consumo e manutenção do imóvel ainda que em nome do locatário, recibos de serviço, contrato de locação para terceiros, etc) conforme reza o art. 216-A, inciso IV, da Lei 6.015/73.
(…)“.
Atendida a primeira exigência, a apelante não se conformou com as demais e requereu a suscitação de dúvida, que foi julgada procedente pela MM.ª Juíza Corregedora Permanente, com a consequente manutenção da negativa de registro (fls. 167/175).
A usucapião ordinária, modalidade eleita pela apelante, pressupõe a existência de coisa hábil a ser objeto de usucapião, exercício da posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo lapso temporal de dez anos, justo título e boa-fé, tal como ensina Carlos Roberto Gonçalves:
“os pressupostos da usucapião são: coisa hábil (res habilis) ou suscetível de usucapião, posse (possessio), decurso do tempo (tempus), justo título (titulus) e boa-fé (fides). Os três primeiros são indispensáveis e exigidos em todas as espécies de usucapião. O justo título e a boa-fé somente são reclamados na usucapião ordinária“. (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro Vol. 5: Direito das Coisas, 11ª edição, 2015, Ed. Saraiva, p. 274).
Nos termos dos comentários que fiz ao art. 1.242 do Código Civil, justo título “é aquele potencialmente hábil para a transferência de propriedade ou de outros direitos reais, que, porém, deixa de fazê-lo, por padecer de um vício de natureza substancial ou de natureza formal. O título pode se consubstanciar nos mais diversos negócios jurídicos aptos à transmissão de direitos reais, como a venda e compra, a doação, a dação em pagamento, a arrematação, a adjudicação, entre outros. Em tese, seria tal título suficiente, caso levado ao registro, para a transmissão do direito real.” (in “Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência”. Coordenador Ministro Cezar Peluso. 18ª edição. São Paulo: Manole, 2024, p. 1153).
Como é sabido, o testamento nada mais é que a expressão escrita em vida da vontade do titular do patrimônio em relação à destinação de seus bens após seu falecimento. O testamento é aberto e validado depois do óbito da pessoa, procedimento este que está vinculado à abertura do inventário.
Sendo assim, considerando que o testamento, por si só, não é título hábil à transferência de domínio, o instrumento particular de cessão de direitos datado de 21 de fevereiro de 2007, por meio do qual a Associação Espírita Beneficente Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, herdeira testamentária, cede os diretos sobre os imóveis em questão em favor da apelante não pode ser considerado justo título hábil a fundamentar o pedido de usucapião ordinária.
Há mais. Existe no testamento a instituição de legado de usufruto em favor de Olga Padovani.Sabido que o direito real de usufruto secciona a propriedade, permanecendo a substância com o núproprietário e o proveito com o usufrutuário. Disso decorre que a posse – ao menos a direta – é transmitida ao usufrutuário.
Logo, a associação, titular de nua propriedade, não poderia ter cedido a posse direta à recorrente.
O possuidor indireto também pode, em tese, ter direito à usucapião, pois age como dono, tal como nas conhecidas situações de locador e comodante.
Sucede que no caso concreto não há prova concludente da posse quer direta, quer indireta da ora recorrente, apta à aquisição do domínio pela usucapião.
Não tendo a usucapiente adquirido os imóveis de quem figura como titular de domínio no fólio real ou de seus sucessores, mostra-se correta a exigência formulada pelo registrador, no que diz respeito à necessidade de apresentação dos justos títulos que compõem a cadeia possessória, desde a proprietária tabular até a apelante.
Como consignado pela MM.ª Juíza Corregedora Permanente, o “instrumento particular de cessão de direitos, tal como apresentado, não configura justo título, tendo em vista que o objeto da cessão cinge-se aos direitos de aquisição previstos na escritura de testamento público, na qual consta cláusula de usufruto vitalício do imóvel para Olga Padovani, de modo que, para que pudesse ser considerado justo título, seria necessária a finalização da ação de inventário da “de cujus” (processo n. 128159-39.2014.8.26.0100), com a definição da situação jurídica da disposição testamentária relativa ao usufruto vitalício e comprovação da efetiva destinação do imóvel à cedente Associação Espírita Beneficiente Dr. Adolfo Bezerra de Menezes. Veja-se ainda, que no parágrafo terceiro da cláusula primeira do instrumento consta: a cedente somente outorgará a escritura definitiva para transferência do imóvel à cessionária após o término do inventário dos bens deixados pela testadora Julia Padovani. Ou seja, no momento da celebração do contrato, a requerente/cessionária tomou conhecimento da necessidade da prévia finalização do inventário para viabilizar a posterior transmissão da propriedade (art. 1201, parágrafo único CC).”
Por outro lado, deixou a apelante a demonstrar do regular exercício da posse qualificada por todo o período necessário à configuração da prescrição aquisitiva. Com efeito, foram acostadas aos autos as notificações de lançamento de IPTU relativas aos exercícios de 2008, 2014 e 2023 (fls. 13, 18 e 19) e os contratos de locação referentes aos períodos de 18/09/2009 a 18/09/2011 e de 01/03/2015 a 01/03/2018 (fls. 14/17 e 123/126), o que não é suficiente para corroborar o efetivo exercício da posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo prazo legal da usucupião postulada.
Ora, insiste a apelante em afirmar que as provas trazidas aos autos seriam suficientes para deferimento do pedido de usucapião.
No entanto, sem que sejam atendidas as exigências formuladas pelo registrador, com a consequente juntada dos documentos faltantes, mostra-se inviável o deferimento da usucapião, na modalidade escolhida pela apelante. A propósito, o art. 216-A, § 8º, da Lei nº 6.015/1973 impõe a rejeição do pedido pelo Oficial do Registro de Imóveis se a documentação apresentada não estiver em ordem para a concessão da usucapião extrajudicial.
O reconhecimento da usucapião na esfera extrajudicial deve refletir situação indene de dúvidas, marcada pela clareza de posse inequívoca. Não é o caso dos autos, em que a posse ad usucapionem da recorrente não se encontra cristalina.
Consigne-se, por fim, que a apelante, assim querendo, deverá buscar na via jurisdicional o reconhecimento de seu alegado direito, segundo a possibilidade instituída pelo art. 216-A, § 9º, da Lei nº 6.015/1973 e pelo subitem 421.5, Capítulo XX, Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça.
Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJe de 19.07.2024 – SP)