CSM|SP: Registro de imóveis – Usucapião extrajudicial – Óbices referentes à participação dos cônjuges como requerentes e exigência de escritura pública declaratória de únicos herdeiros do titular de direito real – Expressa anuência dos cônjuges quanto ao requerimento de usucapião – Impossibilidade de obrigar cônjuge a ingressar com requerimento – Expressa anuência dos herdeiros de titular de direito real – Certidão de óbito com indicação dos herdeiros e ausência de bens a inventariar – Documentação satisfatória para comprovação da qualidade de herdeiros da falecida – Óbices afastados – Dúvida julgada improcedente.

ACÓRDÃO  

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1175858-19.2023.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que são apelantes SANDRA FUENTES VENTURINI, ALESSANDRO FUENTES VENTURINI, ADRIANA FUENTES VENTURINI e ANDREA FUENTES VENTURINI DE FREITAS ADRIÃO, é apelado 7º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA COMARCA DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 6 de agosto de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL Nº 1175858-19.2023.8.26.0100

APELANTES: Sandra Fuentes Venturini, Alessandro Fuentes Venturini, Adriana Fuentes Venturini e Andrea Fuentes Venturini de Freitas Adrião

APELADO: 7º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca da Capital

VOTO Nº 43.447

Registro de imóveis  Usucapião extrajudicial  Óbices referentes à participação dos cônjuges como requerentes e exigência de escritura pública declaratória de únicos herdeiros do titular de direito real  Expressa anuência dos cônjuges quanto ao requerimento de usucapião  Impossibilidade de obrigar cônjuge a ingressar com requerimento  Expressa anuência dos herdeiros de titular de direito real  Certidão de óbito com indicação dos herdeiros e ausência de bens a inventariar  Documentação satisfatória para comprovação da qualidade de herdeiros da falecida  Óbices afastados  Dúvida julgada improcedente.

Cuida-se de apelação interposta por SANDRA FUENTES VENTURINI em face da r.sentença de fls. 581/589, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital, que, em procedimento de reconhecimento extrajudicial de usucapião do imóvel objeto da transcrição nº 46.099, julgou procedente a dúvida suscitada e manteve os óbices registrários levantados pelo 7º Oficial de Registro de Imóveis da Capital.

Apelam os requerentes, buscando a reforma da sentença com o afastamento dos óbices registrários. Sustentam que houve declaração de expresso consentimento firmado pelos cônjuges para o procedimento de usucapião extrajudicial e que o imóvel em questão foi aquirido em razão da partilha de direitos hereditários, sendo os herdeiros casados pelo regime da comunhão parcial de bens e o bem, portanto, não se comunica. Outrossim, assinalam que os sucessores de Marlene Scuro Gilberti apresentaram expressa anuência por declaração com firmas reconhecidas, tornando desnecessária a exigência de expedição de notificações (fls. 607/615).

A Douta Procuradora Geral de Justiça opinou substancialmente pelo improvimento do recurso (fls. 637/639).

É o relatório.

A apelação merece provimento, devendo ser afastados os óbices registrários.

Com todo o respeito ao entendimento exposto pelo Registrador e pela MM. Juíza sentenciante, as exigências mostram-se realmente indevidas diante da prova documental carreada.

Os apelantes ingressaram com procedimento de reconhecimento extrajudicial de usucapião, na modalidade extraordinária, sobre o imóvel situado a Rua Herval, 338, nesta Capital, objeto da transcrição 46.099 do 7º Registro de Imóveis da Capital.

Segundo consta, os direitos sobre o imóvel foram adquiridos por Ernesto Venturini e sua esposa Sandra Fuentes Venturini, mediante contrato particular de cessão de direitos e obrigações celebrado em 18 de fevereiro de 1995, com os compromissários compradores Oswaldo Gilberti e Lydia Brandão Gilberti. Posteriormente, com o falecimento de Ernesto Venturini, em 18 de fevereiro de 2012, seus direitos sobre o imóvel foram partilhados aos requentes (cônjuge e filhos) pela escritura pública de inventário e partilha lavrada pelo 23º Tabelião de Notas da Capital, atribuindo-se metade ideal à viúva meeira Sandra e 1/6 a cada um dos herdeiros filhos, Andrea, Alessandro e Adriana, todos casados em comunhão parcial de bens.

A primeira exigência feita pelo Oficial está fundada na obrigatoriedade de participação dos cônjuges Adriano, Camila e Alexandre, exigência sustentada na alegação de que a usucapião é modo originário de aquisição de propriedade, houve composse, devendo ser cumprido o disposto no artigo 401, §4º do Provimento 149/23 do CNJ e artigo 1.658 e 1199 do Código Civil.

Os apelantes, Andrea, Alessandro e Adriana são herdeiros filhos dos antecessores, casados sob o regime da comunhão parcial de bens com Adriano, Camila e Alexandre, respectivamente, tendo eles apresentado expressa anuência ao requerimento de usucapião.

A simples anuência, ao invés de figurarem os cônjuges como requerentes, tem explicação lógica e jurídica. Isso porque no caso concreto os genitores dos recorrentes eram ttulares de direitos aquisitivos sobre o imóvel. Com a morte do genitor, tais direitos foram transmitidos pela saisine aos herdeiros. Invocam os serdeiros, assum, a successio possessionis prevista no art. 1.243 para a usucapião extraordinária.

Está absolutamente claro que a usucapião no caso concreto é mecanismo de regularização de aquisição derivada que padece de vícios formais e inapta ao registro. Em outras palavras, se os direitos patrimoniais de cessionários de promissários compradores tinham a natureza de bem próprio, adquirido por força de sucessão hereditária, os cônjuges não são parte na relação de direito material. Correto que prestem mera anuência à aquisição da propriedade pelos herdeiros, com quem são casados pelo regime legal da comunhão parcial de bens, em estrita obediência ao artigo 1658 do Código Civil, cujo teor é o seguinte:

“Art. 1658. No regime de comunhão parcial, comunicam se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.

Art. 1.659. Excluem-se da comunhão:

I – os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão, e os sub-rogados em seu lugar”.

Ora, tratando-se de direito disponível, não estavam e não estão os cônjuges obrigados a integrarem o “polo ativo” do requerimento de usucapião, quer extrajudicial, quer judicial, pela simples razão de não sere titulares de direito material à aquisição do imóvel.

Foram juntadas as autorizações e anuência dos cônjuges nos autos para o procedimento em questão, a fim de que seus cônjuges figurassem como requerentes e beneficiários do título de forma exclusiva.

Além disso, o comparecimento espontâneo dos cônjuges supre eventual falta ou nulidade de notificação. Eles apresentaram declaração de consentimento na escritura de inventário (fls. 80/83); na ata notarial (fls. 65/66), no requerimento de usucapião extrajudicial (fls. 33/43), na procuração (fls. 46/47) e na declaração de consentimento (fls. 431/433).

Por consequência, não há que se falar em impossibilidade de processamento da usucapião pela falta da inclusão dos cônjuges dos apelantes no polo ativo do procedimento de usucapião visto que o litisconsórcio previsto no artigo 73, § 1º, inciso I, do CPC, para ações envolvendo direito real imobiliário, somente é indispensável no polo passivo.

Ainda nos casos de litisconsórcio ativo necessário, na hipótese do litisconsorte deixar de oferecer meios para, voluntariamente, ingressar no polo ativo de uma determinada demanda, tal litisconsorte deve ser incluído no polo passivo da demanda, a fim de ser citado e notificado aos termos da demanda. Ocorre que, no presente caso, a anuência já foi instruída com o próprio requerimento inicial de usucapião, de modo que totalmente dispensável nova notificação.

Na hipótese, inevitável utilizarmos os ensinamentos do processo civil, pois o mesmo raciocínio há de ser aplicado.

O cabimento da figura do litisconsórcio ativo necessário somente se dá em hipóteses absolutamente restritas.

Como bem explica CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO (Instituições de Direito Processual Civil, v. II, 6ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2009, pp. 364-5) a esse respeito:

“Se o litisconsórcio necessário passivo já é excepcional no sistema, de excepcionalidade ainda maior reveste-se a necessariedade em relação ao polo ativo da relação jurídica processual. As dificuldades para implementá-lo são mais graves e podem revelar-se insuperáveis, o que se dará sempre que um colegitimado se negue a participar da demanda. Como ninguém pode ser obrigado a demandar contra sua própria vontade (nemo ad agendum cogi potest, princípio constitucional da liberdade), em casos assim o autor ficará em um impasse sem solução e não poderá obter a tutela jurisdicional pretendida; não é o que sucede em casos de litisconsórcio necessário passivo, nos quais mais cedo ou mais tarde todos os litisconsortes serão citados e, se preferirem não comparecer, serão revéis. E determinar a citação do colegitimado ativo para vir ao processo figurar como autor sob pena de revelia, é um enorme absurdo. Citações fazem-se ao demandado e não a possíveis demandantes. (…) Por essa razão, a admissibilidade do litisconsórcio ativo confina-se no campo rigorosamente restrito das situações em que, segundo o direito material, cada um dos colegitimados tenha o poder de opor-se aos resultados desejados pelos outros”.

Neste sentido precedentes do E. Tribunal de Justiça:

“USUCAPIÃO. INEXISTÊNCIA DE CASO DE LITISCONSÓRCIO ATIVO NECESSÁRIO. FIGURA EXCEPCIONALÍSSIMA QUE NÃO TEM LUGAR NO FEITO. AÇÃO DECLARATÓRIA QUE, CASO JULGADA PROCEDENTE, CONFIGURARÁ UM BÔNUS AO PATRIMÔNIO DO CASAL. PRECEDENTES, INCLUSIVE DESTA CÂMARA EM CASOS SEMELHANTES. DECISÃO REFORMADA. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.” (TJSP; Agravo de Instrumento 2124538-19.2023.8.26.0000; Relator (a): Vito Guglielmi; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Guarulhos – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 07/11/2023; Data de Registro: 07/11/2023)

Em casos análogos, assim vem decidindo o E. Tribunal de Justiça:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. Ação de usucapião. Determinação de inclusão de cônjuge no polo ativo. Desnecessidade. Nas ações reais imobiliárias os cônjuges são litisconsortes necessários apenas quando réus. Não constituição de ônus sobre o patrimônio imobiliário de um ou de ambos os cônjuges. Anuência da esposa validando a propositura da ação de usucapião. Recurso a que se dá provimento.” (TJSP, 7ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 2085429-37.2019.8.26.0000, relator o Desembargador JOSÉ RUBENS QUEIROZ, j. 01/07/2019)

“USUCAPIÃO – Substituição do polo ativo – Indeferimento – Cabimento – Inteligência dos arts 41 e 42 do Código de Processo Civil – Determinação de inclusão do marido da autora no polo ativo – Desnecessidade – Nas ações reais imobiliárias os cônjuges são litisconsortes necessários apenas quando réus – Inexistente constituição de ônus sobre o patrimônio imobiliário de um ou de ambos os cônjuges, também é dispensável a outorga marital – Recurso parcialmente provido” (TJSP, 1ª Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº 0240588-51.2012.8.26.0000, relator o Desembargador RUI CASCALDI, j. 12/03/2013)

Assim, há de ser afastada a exigência levantada pelo Registrador quanto à inclusão dos cônjuges como requerentes do procedimento de usucapião.

No que diz respeito à segunda exigência, referente à apresentação de escritura pública declaratória de únicos herdeiros ou notificação dos sucessores de Marlene Scuro Gilberte, com o máximo respeito, os apelantes igualmente têm razão em suas alegações.

O óbice tem fundamento na suposta irregularidade da notificação dos sucessores de Marlene Scuro Gilberti, falecida em 24 de fevereiro de 2019. A certidão de óbito de fl. 350 aponta que Marlene Scuro Gilberti era casada com Flavio Brandão Gilberti e deixou duas filhas maiores, Daniella e Millena, tendo todos eles subscrito a “declaração de anuência ao pedido de usucapião extrajudicial” às fls. 347/349.

A certidão de óbito deixa claro que a falecida não deixou bens a inventariar, não deixou testamento.

É certo que no processamento da usucapião extraordinária impõe-se a observância das diretrizes trazidas pelo Provimento CNJ nº 65/2017, em vigor quando do início do presente procedimento. Essa circunstância não se alterou com a edição do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça (Provimento nº 149/2023 do Conselho Nacional de Justiça), que atualmente regula a usucapião extrajudicial.

De seu turno, as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça dispõem, nos subitens 416.1 e 416.2, Capítulo XX, Tomo II, sobre os requisitos do requerimento da usucapião extrajudicial e os documentos que devem instruir o pedido.

O Oficial de Registro de Imóveis exigiu, então, a anuência dos herdeiros legais da Marlene Scuro Gilberti, acompanhada de escritura pública declaratória de únicos herdeiros com nomeação de inventariante, judicial ou extrajudicialmente.

No mais, destacou o Registrador ser inviável a dispensa de notificação, como pretendido pelos apelantes, à vista do § 10 do artigo 10, do Provimento CNJ nº 65/2017.

Ocorre que, ao contrário do que está fundamentado na sentença, quanto à anuência dos titulares de direitos reais, a documentação apresentada está de acordo com o item 418.7 do Capítulo XX das NSCGJ, “o consentimento expresso poderá ser manifestado pelos confrontantes e titulares de direitos reais a qualquer momento, por documento particular com firma reconhecida ou por instrumento público, sendo prescindível a assistência de advogado ou defensor público”.

Tais requisitos estão plenamente observados no documento de fls. 347/349, tendo sido apresentado consentimento expresso dos sucessores por documento particular, com firma reconhecida, ao procedimento de usucapião extrajudicial formulado, o que, indiretamente, implicitamente envolve o negócio jurídico de interesse ao imóvel.

Exigir que os apelantes imponham aos herdeiros da falecida a obrigação de lavratura de escritura pública declaratória de únicos herdeiros para anuência ao pedido de usucapião é absolutamente descabido. Não pode o Oficial de Registro apresentar óbice que dependa de providências de terceiros e, com isso, barrar o direito dos requerentes da usucapião extrajudicial.

Não se desconhece que, em relação aos titulares de direitos reais já falecidos, prevê o art. 12 do Provimento CNJ nº 65/2017 que:

“Art. 12. Na hipótese de algum titular de direitos reais e de outros direitos registrados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula do imóvel confinante ter falecido, poderão assinar a planta e memorial descritivo os herdeiros legais, desde que apresentem escritura pública declaratória de únicos herdeiros com nomeação do inventariante.”

Sobre a questão, contudo, esclarece Francisco José Barbosa Nobre: “Se há certeza da morte, comprovada por certidão do registro civil ou pela existência de inventário, ou se é fato sabido na localidade, mas não se sabe com exatidão qual é o conjunto de sucessores, os que são conhecidos poderão passar sua anuência expressa ou serem notificados nominalmente, e os sucessores desconhecidos ou incertos serão notificados por edital. Se há inventário judicial aberto, ou escritura de inventário lavrada, com definição do conjunto de herdeiros e inventariante nomeado, não há necessidade da escritura de únicos herdeiros mencionada neste artigo. O espólio poderá ser representado pelo inventariante, desde que não seja dativo, ou pelo conjunto dos sucessores (…) Por fim, se, verificada a morte do notificando, não houver inventário em andamento ou concluído, e os sucessores se dispuserem a outorgar sua anuência expressa, nesse caso, e SOMENTE NESTE, far-se-á necessária a escritura de únicos herdeiros” (“Manual da Usucapião Extrajudicial”, Ed. Clube de Autores, 2021).

Na presente situação, foi juntada a certidão de óbito com a clara identificação dos herdeiros, de modo que se mostra incabível a exigência de apresentação de escritura pública. Logo, demonstrada a inexistência de inventário em curso e apresentada a declaração de anuência com firma reconhecida de todos os subscritores, está plenamente atendida a regularidade do procedimento.

Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO à apelação para julgar improcedente a dúvida, determinando o retorno dos autos para encerramento do procedimento administrativo de usucapião, com afastamento dos óbices objeto da presente dúvida.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 15.08.2024 – SP)