CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida – Indeferimento de usucapião extrajudicial pela insuficiência do tempo de posse própria dos requerentes – Accessio possessionis – Usucapião que pode ser excepcionalmente utilizada para sanar vícios da propriedade ou de outros direitos reais – Precariedade da descrição tabular e consolidação de desmembramentos irregulares que afastam a via da retificação – Possibilidade da acessão do tempo de posse do antecessor proprietário a fim de viabilizar a transmissão do domínio – Recurso provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1006252-41.2023.8.26.0278, da Comarca de Itaquaquecetuba, em que são apelantes SIDNEY JOSE DOS REIS, ROSANA DOS REIS TORHACS, EUGENIO MARTINS TORHACS, MARCIA CRISTINA DOS REIS SANTOS, DENIS FRANCISCO BUGIGA DOS SANTOS e KATIA REGINA NUCCI DA SILVA REIS, é apelado OFICIAL DE REGISTROS DE IMÓVEIS DA COMARCA DE ITAQUAQUECETUBA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento ao recurso para julgar improcedente a dúvida, determinando o prosseguimento do processo administrativo de usucapião extrajudicial perante o Oficial de Registro de Imóveis, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 22 de agosto de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1006252-41.2023.8.26.0278

Apelantes: Sidney Jose dos Reis, Rosana dos Reis Torhacs, Eugenio Martins Torhacs, Marcia Cristina dos Reis Santos, Denis Francisco Bugiga dos Santos e Katia Regina Nucci da Silva Reis

Apelado: Oficial de Registros de Imóveis da Comarca de Itaquaquecetuba

VOTO Nº 43.527

Registro de imóveis – Dúvida – Indeferimento de usucapião extrajudicial pela insuficiência do tempo de posse própria dos requerentes – Accessio possessionis – Usucapião que pode ser excepcionalmente utilizada para sanar vícios da propriedade ou de outros direitos reais – Precariedade da descrição tabular e consolidação de desmembramentos irregulares que afastam a via da retificação – Possibilidade da acessão do tempo de posse do antecessor proprietário a fim de viabilizar a transmissão do domínio – Recurso provido.

Trata-se de recurso de apelação interposto por Sidney José dos Reis, Rosana dos Reis Torhacs, Eugenio Martins Torhacs, Marcia Cristina dos Reis Santos, Denis Francisco Bugiga dos Santos e Katia Regina Nucci da Silva Reis contra a r. sentença de fls. 188/189, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoa Jurídica e Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da Comarca de Itaquaquecetuba/SP, que julgou procedente dúvida suscitada pelo indeferimento do reconhecimento de usucapião extrajudicial de área com origem na transcrição n. 31.880 do 1º Registro de Imóveis de Mogi das Cruzes (prenotação n. 59.770).

Fê-lo a r. sentença sob o argumento de insuficiência do tempo de posse própria dos requerentes para atender os requisitos legais necessários para o reconhecimento da usucapião e pela impossibilidade de preenchimento do lapso com a soma da posse dos antecessores, porquanto exercida na qualidade de proprietários tabulares do imóvel, o que caracteriza posses não homogêneas e inviabiliza a acessão.

A parte apelante sustenta, em síntese, que se trata de posse contínua, mansa e pacífica, exercida há mais de setenta anos quando somada ao tempo dos seus antecessores, de quem adquiriram os direitos por sucessão hereditária; que a lei permite a soma das posses (artigos 1206, 1207 e 1243 do Código Civil), as quais não têm naturezas distintas, pois a propriedade dos antecessores jamais foi registrada na matrícula do imóvel; que possível a soma conforme entendimento jurisprudencial (fls.192/200).

O Oficial prestou informações às fls. 208/210 e a Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 221/224).

É o relatório.

De início, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n.6.015/73, pelos artigos 398 a 423 do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ e pela Seção XII do Cap. XX das NSCGJSP.

Assim, como a parte interessada optou por esta última para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.

No mérito, o recurso comporta provimento. Vejamos os motivos.

Trata-se de dúvida suscitada em razão de indeferimento de reconhecimento de usucapião extrajudicial de imóvel com origem na transcrição n. 31.880 do 1º Registro de Imóveis de Mogi das Cruzes, de 29 de janeiro de 1953, a qual indica Ludovina Tugnoli como proprietária tabular. O imóvel foi recebido por ela por herança com a seguinte descrição (fls.45/46):

“(…) UM QUINHÃO DE TERRAS nº 02, situado na Fazenda Aracaré, distrito de Itaquaquecetuba, neste município, medindo de frente para a rua projetada, para servidão comum, onde mede 24,90 metros e da frente aos fundos, 88 metros, com uma área de 2.189m², confrontando de um lado com Wanda Tugnoli (filha também de João Tugnoli), nos fundos com herdeiros de Carmela Casile Davine e de outro lado com o quinhão de José Tugnoli, existindo ainda nessa área, uma casa em mau estado, atijolada e telha vá e um barracão pequeno, de tijolos e coberto de telhas; dito imóvel foi havido conforme transcrição n.4.480 (…)”.

Na sequência, em 11/06/1959, Ludovina Tugnolli se casou com Jair dos Reis pelo regime da comunhão universal de bens, vindo a falecer em 04/07/2012, ainda casada; Jair dos Reis faleceu em 05/04/2019, na condição de viúvo de Ludovina. É o que consta na escritura de inventário e partilha de fls. 38/43, na qual o tabelião certifica o arquivamento das certidões de óbito e de casamento.

Assim, os herdeiros Márcia, Rosana e Sidney, ora requerentes ao lado de seus cônjuges, sucederam seus pais Ludovina e Jair na posse da área remanescente do referido imóvel, a qual foi assim descrita no inventário conjunto (destaques no original):

A) UM TERRENO constituído de remanescente do QUINHÃO nº02, perímetro urbano do Município e Comarca de Itaquaquecetuba, deste Estado, medindo 14,90m (quatorze metros e noventa centímetros) de frente para a atual Rua Piauí; do lado direito de quem da via pública o olha mede 22,40m. (vinte e dois metros e quarenta centímetros), confrontando com propriedade de César Alvino, do lado esquerdo mede 19,80m. (dezenove metros e oitenta centímetros), confrontando com propriedade de João A. Rebelato e nos fundos mede, em três segmentos, de 9,90m. (nove metros e noventa centímetros), vira à esquerda e desce 2,60m. (dois metros e sessenta centímetros), aí vira novamente à esquerda e mede 5,00 (cinco metros), confrontando, ainda, com remanescente da área maior, encerrando a área de 320,76m². (trezentos e vinte metros e setenta e seis centímetros quadrados); Imóvel esse havido pela autora, em maior área, por atribuição dos bens deixados por falecimento de Henrique Tugnoli e João Tugnoli, conforme Formal de Partilha transcrito sob nº 31.880 do 1º Oficial de Registro de Imóveis do Município e Comarca de Mogi das Cruzes, deste Estado, esclarecendo, ainda, que o registro da presente depende de prévia regularização do desdobro implantado sobre a área maior objetivada, circunstância essa que as partes têm conhecimento, assumindo a responsabilidade pela sua regularização; (…)”.

Os herdeiros visam reconhecimento de usucapião extrajudicial justamente para regularizar seu domínio sobre a área.

Considerando que sua posse exclusiva somente se iniciou em 2019, com o falecimento de Jair, precisam somar o tempo de posse de seus antecessores para preencher o lapso previsto em lei.

Como se vê, ao contrário do que afirmam nas razões de seu recurso, existe registro da propriedade em nome de seus antecessores: Ludovina recebeu formalmente o imóvel por herança lançada no fólio real. Posteriormente, em virtude de seu casamento com Jair pelo regime da comunhão universal, o imóvel passou a integrar o patrimônio conjugal.

As posses alegadas, ademais, não são homogêneas: o jus possidendi decorrente da propriedade não se confunde com o jus possessionis, o que inviabiliza, em tese, a acessão pretendida.

A usucapião não pode servir de alternativa imediata à transmissão regular do domínio, sob pena de se afastar, por via oblíqua, eventual incidência tributária, bem como os vínculos decorrentes da aquisição derivada da propriedade, o que não pode ser admitido. É nesse sentido que se deve evitar a soma da posse exercida pelo antecessor proprietário.

Entretanto, a usucapião não é apenas um meio para aquisição da propriedade.

Pode também ser utilizada para saneamento de vícios de propriedade ou de outros direitos reais adquiridos a título derivado, com conserto do domínio derivado imperfeito, o que é endossado pela jurisprudência:

“USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO – Irrelevância da irregularidade dominial do imóvel, salvo marcada fraude à lei – Concordância dos confrontantes e dos herdeiros dos titulares do domínio, bem como ausência de impugnação das Fazendas Públicas – Accessio possessionis – Possibilidade de somar a posse atual com a posse dos antecessores, herdeiros dos titulares do domínio, mas sem registro da partilha, em razão de vícios formais – Prova documental da cessão de direitos possessórios – Prova testemunhal que atesta de modo razoável os atos de posse dos usucapientes e de seus antecessores – Recurso provido, para julgar procedente a ação de usucapião – Recurso provido” (TJSP; Apelação Cível 9172553-56.2007.8.26.0000; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sertãozinho – 3.VARA CIVEL; Data do Julgamento: 13/12/2007; Data de Registro: 17/01/2008).

“Usucapião ordinária. Pedido objetivando o reconhecimento da propriedade de área delimitada inserida em área maior, detentora da matrícula. Condomínio pro diviso. Reconhecimento, pelo magistrado, da falta de interesse de agir, pois se trataria de retificação ou desdobro com utilização da usucapião como sucedâneo do procedimento específico. Irresignação. Acolhimento. Interesse de agir que exsurge da necessidade dos autores obterem a propriedade da porção de terra que possuem em condomínio pro diviso. Inexistência em nosso ordenamento jurídico de óbice específico a que se declare a aquisição por usucapião, de imóvel que já se encontre transcrito em nome dos autores, especialmente diante da falta de certeza emanada do documento. Reconhecimento da possibilidade jurídica do pedido. Afastamento da extinção, com determinação de prosseguimento até os ulteriores termos. Recurso provido” (TJSP; Apelação Cível 0007228-29.2014.8.26.0586; Relator (a): Moreira Viegas; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Roque – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/07/2019; Data de Registro: 31/07/2019).

Nesse sentido, ainda, entendimento esposado pelo C. Superior Tribunal de Justiça:

“Usucapião. Autores com títulos de domínio. Dificuldade de unificação e reconstituição.

1. É cabível a ação de usucapião por titular de domínio que encontra dificuldade, em razão de circunstância ponderável, para unificar as transcrições ou precisar área adquirida escrituralmente.

2. Recurso especial conhecido e provido” (REsp n. 292.356/SP, relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 27/8/2001, DJ de 8/10/2001, p. 213.)

A melhor Doutrina também acompanha tal posição:

“Não nos parece que deva prevalecer o entendimento invariavelmente contrário à usucapião de coisa própria.

Não há, sistematicamente, ausência de interesse processual nessas circunstâncias. A utilidade da usucapião, em casos dessa ordem, reside justamente em pretender-se a declaração originária de propriedade imobiliária (própria da usucapião). Trata-se de situação excepcional, por certo, que exige análise prudente, criteriosa, mas que não deve ser negada indiscriminadamente. A hipótese em estudo revela a utilidade da aplicação concreta da segunda finalidade da usucapião: servir como forma de sanear aquisições derivadas imperfeitas”(g.n.). (…)

Logo, para a admissão da possibilidade da usucapião de coisa própria, deverá haver uma análise minuciosa do fato concreto ou seja, dependem dos fundamentos jurídicos invocados e consequentemente a possibilidade de um juízo de mérito, sob pena de conforme acima mencionado constituir burla a lei, especificamente em relação ao recolhimento tributário” (Fernando Antonio Maia da Cunha e Alexandre de Mello Guerra, Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil, São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2018, volume 2, página 684).

No presente caso, a transcrição n. 31.880 e a escritura de inventário não identificam perfeita correspondência entre o direito real inscrito, do qual deriva o jus possidendi, e a área efetivamente ocupada, sobre a qual se exerce o jus possessionis, de modo que a posse anteriormente exercida pelos cedentes pode ser somada à da parte requerente, com prosseguimento do expediente extrajudicial.

Esta conclusão se reforça porque a descrição tabular do imóvel, produzida ainda sob a vigência do Decreto n. 4.857/1939, é precária e não permite afirmar com segurança se o terreno que se pretende usucapir foi mesmo destacado do imóvel citado na transcrição.

O próprio Oficial anota essa precariedade nas exigências inicialmente formuladas (item 2.c, fl.88).

Por sua vez, a ata notarial e os trabalhos técnicos que instruem o requerimento ilustram bem a situação atual do imóvel (fls.29/35 e 155/159), comprovando que o quinhão de terras com área de 2.189 metros quadrados descrito no Registro de Imóveis já não existe mais, notadamente pela consolidação de desmembramentos informais realizados ao longo dos setenta anos que se passaram desde aquele último registro.

Conforme dispõe o item 57.4, Cap.XX, das NSCGJ, o procedimento previsto no artigo 213, inciso II, da Lei n.6.015/73, é a via adequada para retificação da descrição de imóvel que sofreu destaque parcial.

No entanto, de acordo com nota ao item 136.6, do Cap. XX, das NSCGJ, “a retificação será negada pelo Oficial de Registro de Imóveis sempre que não for possível verificar que o registro corresponde ao imóvel descrito na planta e no memorial descritivo (…)”.

É justamente o que ocorre na hipótese, em que o Oficial já informou, ao qualificar o título, que “o imóvel descrito na referida transcrição possui descrição bem precária, o que nos impossibilita saber, com segurança, se o terreno que se pretende usucapir foi mesmo destacado do imóvel da citada transcrição” (item 2.c, fl.88), como já referido.

Em outras palavras, a via tradicional, de retificação da matrícula e posterior ingresso do formal de partilha, está inacessível, o que confirma a possibilidade de aceitação excepcional da usucapião para regularização do domínio.

Ora, se o titular do domínio imperfeito pode usar da usucapião para sanar os vícios, o seu tempo de posse também pode ser usado e somado pelo cessionário para fins de accessio possessionis, nos moldes do artigo 1243 do Código Civil.

Todavia, deve-se atentar que o procedimento administrativo ainda está no início e não se está aqui antecipando o reconhecimento do pedido, que dependerá do regular processamento e de análise pelo Oficial.

Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento ao recurso para julgar improcedente a dúvida (a parte requerente poderá acrescentar à sua posse a dos seus antecessores, Ludovina e Jair), determinando o prosseguimento do processo administrativo de usucapião extrajudicial perante o Oficial de Registro de Imóveis.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 30.08.2024 – SP)