CSM|SP: Registro de imóveis – Usucapião extrajudicial – Procedimento administrativo – Anuência em relação a uma das exigências formuladas – Dúvida prejudicada – Apelação não conhecida – Análise da exigência impugnada a fim de orientar futura prenotação – Possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião não impede a declaração da prescrição aquisitiva por ação judicial ou procedimento administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos – Usucapião que a um só tempo visa a conversão da posse em propriedade e também sanar a aquisição derivada defeituosa – Precedentes do Conselho Superior da Magistratura – Recusa indevida quanto ao processamento do pedido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001336-27.2024.8.26.0472, da Comarca de Porto Ferreira, em que é apelante DAIANE DE MERLO BAZE, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PORTO FERREIRA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram a dúvida por prejudicada e não conheceram da apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO (PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 29 de agosto de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1001336-27.2024.8.26.0472

APELANTE: Daiane de Merlo Baze

APELADO: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Porto Ferreira

VOTO Nº 43.534

Registro de imóveis – Usucapião extrajudicial – Procedimento administrativo – Anuência em relação a uma das exigências formuladas – Dúvida prejudicada – Apelação não conhecida – Análise da exigência impugnada a fim de orientar futura prenotação – Possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião não impede a declaração da prescrição aquisitiva por ação judicial ou procedimento administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos – Usucapião que a um só tempo visa a conversão da posse em propriedade e também sanar a aquisição derivada defeituosa – Precedentes do Conselho Superior da Magistratura – Recusa indevida quanto ao processamento do pedido.

Trata-se de apelação interposta por Daiane de Merlo Bazecontra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Porto Ferreira/SP, que manteve o indeferimento do processamento da usucapião extrajudicial do imóvel matriculado sob no 18.190 junto à referida serventia extrajudicial (fls. 96/97).

Preliminarmente, argui a apelante a nulidade da sentença recorrida, por ausência de fundamentação e consequente cerceamento de defesa. No mérito, argumenta estar demonstrado o exercício da posse mansa, pacífica e ininterrupta pelo tempo necessário à configuração da usucapião ordinária, como confirmam a ata notarial e demais documentos apresentados ao Oficial de Registro. Aduz que o registro pretendido independe da observância ao princípio da continuidade registral, pois a usucapião constitui modo de aquisição originário da propriedade. Por fim, sustenta que a cessão de direitos em que fundamenta o pedido representa justo título apto a embasar a usucapião ordinária do imóvel (fls. 107/114).

A douta Procuradoria de Justiça manifestou desinteresse no feito (fls. 131/135).

É o relatório.

Desde logo, há que ser afastada a alegada nulidade da decisão recorrida, pois, ainda que sucinta, a fundamentação apresentada justifica a conclusão a que chegou o MM. Juiz Corregedor Permanente.

Ademais, os argumentos apresentados pela apelante fazem referência a caso concreto totalmente diverso daquele tratado nos autos.

No mérito, a dúvida está prejudicada.

Assim se afirma, pois o procedimento extrajudicial de usucapião ordinária foi iniciado perante o Oficial de Registro de Imóveis, que indeferiu o pedido de registro por entender que seria necessário atender às seguintes exigências (fls. 15/19):

“(…) os documentos apresentados pela parte interessada para registro constitui título físico e que foi desmaterializado/digitalizado por particular (conversão de título físico em digital).

Conforme artigo 1º, § 4º da Lei 6.015/73, com nova redação dada pela Lei 14.382/2022, “É vedado às serventias dos registros públicos recusar a recepção, a conservação ou o registro de documentos em forma eletrônica produzidos nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça”, que, prevê a desmaterialização/digitalização de documentos apenas por notário/registrador (…).

2) Deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, sendo que a prestação de declaração falsa configurará crime de falsidade, sujeito às penas da Lei (art.13, §2º, do Provimento 65/2017, CNJ);

Não foi apresentado o formal de partilha para registro, devendo ser seguida a continuidade registrária, não justificando tal procedimento. O procedimento de usucapião não poderá burlar a lei, mesmo porque haverá incidência de impostos, havendo risco de fraude (art. 13, do Provimento nº 65/2017, da Corregedoria Geral da Justiça) (…)“.

A r. sentença recorrida, com fundamento no art. 13, § 2º, do Provimento nº 65/2017 do Conselho Nacional de Justiça, confirmou a recusa do Oficial quanto ao processamento do pedido de usucapião extrajudicial.

Ocorre que, das exigências formuladas na nota devolutiva (fls. 15/19), a apelante impugnou apenas aquela trazida no item “2”, concordando com o óbice trazido no item “1” (fls. 23) que, de fato, deverá ser atendido, tal como se propôs a parte a fazer. Com efeito, a mera digitalização de documentos físicos pelo requerente da usucapião e respectiva remessa eletrônica ao Oficial de Registro não é o quanto basta. É preciso que esses documentos tenham uma assinatura válida, em conformidade com as normas e disposições legais que regem a matéria, sob pena de se admitir menor segurança jurídica nos documentos digitais que nos físicos, o que não faz sentido e, no longo prazo, inviabilizaria o sistema vigente.

Ora, é sabido que a anuência em relação a uma, ou mais, das exigências formuladas, assim como a juntada de documentos para complementação do título durante o processamento da dúvida não é possível, pois sua qualificação há que ser feita de acordo com a documentação apresentada ao Oficial no momento do protocolo. Dentro do prazo de prenotação, a parte tem que suprir ou impugnar a exigência apontada pela qualificação, pois, a não ser assim, restaria indevidamente prorrogado o termo legal posto no art. 205 da Lei nº 6.015/1973.

O processo da dúvida é reservado à análise da discordância do apresentante com os motivos que levaram à recusa do registro do título e de seu julgamento decorrerá a manutenção da qualificação negativa, com o cancelamento da prenotação, ou a improcedência da objeção do Oficial, o que terá como consequência a realização do ato solicitado (inciso II do art. 203 da Lei nº 6.015/1973).

Ressalte-se que, com a suscitação da dúvida, o prazo de validade da prenotação é prorrogado para possibilitar a análise da dissensão entre o apresentante e o Oficial registrador sobre as exigências formuladas para a inscrição do título, controvérsia que há de ser decidida a partir de sua conformação no momento da suscitação.

Destarte, não pode a apelante pretender, no curso do procedimento de dúvida, complementar ou alterar o título prenotado.

Nesse sentido:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – CARTA DE SENTENÇA EXTRAÍDA DOS AUTOS DA AÇÃO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL DO CASAL – CONCORDÂNCIA COM OS ÓBICES APRESENTADOS PELO REGISTRADOR – COMPLEMENTAÇÃO DO TÍTULO NO CURSO DA DÚVIDA – PRECEDENTES DO EGRÉGIO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA – DÚVIDA PREJUDICADA – APELAÇÃO NÃO CONHECIDA.” (TJSP; Apelação Cível 1004574-57.2022.8.26.0526; Relator (a): Fernando Torres Garcia (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Salto – 1ª Vara; Data do Julgamento: 22/09/2023; Data de Registro: 27/09/2023).

“DÚVIDA – REGISTRO DE IMÓVEIS – Suscitação parcial em relação às exigências formuladas pelo Oficial de Registro Imobiliário – Apresentação de documento não atendida até a suscitação da dúvida – Impossibilidade de atendimento no transcorrer do procedimento de dúvida, mediante apresentação de documentos – Impossibilidade de alteração do título e dos documentos essenciais que instruem a dúvida após a suscitação, sob pena de prorrogação indevida dos efeitos da prenotação – Exigência não impugnada que impede o conhecimento da dúvida, vedada a emissão de decisão condicional – Dúvida Prejudicada – Recurso não conhecido.” (TJSP; Apelação Cível 1000614-42.2018.8.26.0459; Relator (a): Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro de Pitangueiras – 1ª Vara; Data do Julgamento: 18/06/2020; Data de Registro: 26/06/2020).

“REGISTRO DE IMÓVEIS – Anuência parcial do apresentante com as exigências formuladas – Complementação superveniente do título – Impossibilidade – Dúvida prejudicada – Recurso não conhecido.” (TJSP; Apelação Cível 1001907-18.2018.8.26.0404; Relator (a): Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Foro de Orlândia – 1ª Vara; Data do Julgamento: 07/06/2019; Data de Registro: 12/06/2019).

Por essas razões, prejudicada a dúvida, a apelação não pode ser conhecida, o que não impede o exame – em tese – da exigência impugnada, a fim de orientar futura prenotação.

Não se desconhece o teor do art. 13, § 2º, do Provimento CNJ nº 65/2017, que impede a utilização da usucapião como alternativa à correta escrituração das transações, com burla aos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários.

No caso concreto, porém, alega a apelante preencher os requisitos da usucapião pleiteada, afirmando, inclusive, ter justo título para o exercício da posse sobre o imóvel ao longo do tempo. E como já ficou decidido por este Colendo Conselho Superior da Magistratura, nos termos do v. acórdão proferido nos autos da Apelação nº 1004044-52.2020.8.26.0161, em que foi relator o então Corregedor Geral da Justiça, Desembargador Ricardo Mair Anafe:

“(…) o Código de Processo Civil, em seu art. 1.071, incluiu na Lei de Registros Públicos o art. 216-A – dispositivo legal responsável pela instituição da usucapião extrajudicial.

Em breve síntese, a usucapião extrajudicial não é uma nova modalidade de aquisição originária da propriedade, mas mero procedimento facultativo apresentado diretamente ao Oficial de Registro de Imóveis em que estiver situado o imóvel usucapiendo para fins de declaração da propriedade em favor do possuidor, desde que preenchidos os requisitos legais para tanto.

Neste cenário, em que pese a legítima preocupação da Registradora, cautelosa com o erário, zelosa pelos cofres públicos, certo é que o óbice ofertado não encontra respaldo legal.

O obstáculo apresentado pela Oficiala do Registro de Imóveis da Comarca de Diadema não se sustenta, pois a multiplicidade de opções franqueadas pela legislação vigente para regularização do imóvel a cargo do possuidor não é excludente – ainda que uma ou outra possibilidade seja mais demorada ou mais ou mesmo custosa.

Ademais, se não é vedado ao possuidor, que preencha os requisitos legais, intentar ação judicial de usucapião, não pode ser cerrada a via extrajudicial para o reconhecimento de seu direito. Não há sentido em ser proibido ou dificultado o acesso à via extrajudicial, em descompasso, aliás, do intuito legislativo, que concebeu uma opção à parte, célere e igualmente eficaz, desafogando-se o Judiciário.”

Em outras palavras, verificadas, em tese, a presença dos requisitos da usucapião e a ausência de qualquer das causas que obstem, suspendam ou interrompam a prescrição aquisitiva, não se pode cogitar de burla ao sistema notarial e registral, tampouco de evasão fiscal.

Nesse cenário, porque a possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa não impede o reconhecimento da prescrição aquisitiva em favor do apelante, desde que comprovado o preenchimento dos requisitos legais da modalidade da usucapião eleita, o óbice apresentado pelo Oficial de Registro deve ser afastado. Em hipóteses semelhantes, já ficou decidido que:

Usucapião – Procedimento administrativo – Direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos – Possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo – Recusa indevida quanto ao processamento do pedido – Dúvida improcedente – Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião extrajudicial“. (TJSP; Apelação Cível 1004047-07.2020.8.26.0161; Relator (a): Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Diadema – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 02/02/2021; Data de Registro: 05/02/2021).

Registro de imóveis – Usucapião Extrajudicial – Procedimento administrativo – Direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos – Possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo – Recusa indevida quanto ao processamento do pedido – Dúvida improcedente – Recurso provido, com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião extrajudicial“. (TJSP; Apelação Cível 1004046-22.2020.8.26.0161; Relator (a): Ricardo Anafe (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior da Magistratura; Foro de Diadema – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 06/04/2021; Data de Registro: 13/04/2021).

Ante o exposto, pelo meu voto, dou a dúvida por prejudicada e não conheço da apelação.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 03.09.2024 – SP)