CSM|SP: Dúvida – Registro de imóveis – Escritura pública de venda e compra – Qualificação negativa – Exigência de prévio registro de loteamento – Imóvel que se encontra em área de parcelamento de fato irregular – Alienação de parte destacada e certa do todo – Inteligência dos itens 10.1.1 e 166, Cap.XX, das NSCGJ – Precedentes deste Conselho Superior da Magistratura – Descrição precária do imóvel matriculado em área maior – Violação ao princípio da especialidade objetiva – Óbices mantidos em parte – Recurso ao qual se nega provimento.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001111-82.2023.8.26.0426, da Comarca de Patrocínio Paulista, em que é apelante ASSOCIAÇÃO AREIA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE PATROCÍNIO PAULISTA.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 5 de setembro de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça

Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1001111-82.2023.8.26.0426

APELANTE: Associação Areia

APELADO: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Patrocínio Paulista

VOTO Nº 43.541

Dúvida – Registro de imóveis – Escritura pública de venda e compra – Qualificação negativa – Exigência de prévio registro de loteamento – Imóvel que se encontra em área de parcelamento de fato irregular – Alienação de parte destacada e certa do todo – Inteligência dos itens 10.1.1 e 166, Cap.XX, das NSCGJ – Precedentes deste Conselho Superior da Magistratura – Descrição precária do imóvel matriculado em área maior – Violação ao princípio da especialidade objetiva – Óbices mantidos em parte – Recurso ao qual se nega provimento.

Trata-se de recurso de apelação interposto por Associação Areia contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente da Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Patrocínio Paulista (fls. 162/164), que julgou procedente dúvida para manter a recusa de registro de escritura pública de compra e venda referente a parte destacada do imóvel matriculado sob n. 10.135 perante aquela serventia (prenotação n. 48.915, fls. 38/39).

A Oficial, ao suscitar a dúvida, esclareceu que o bem se encontra em área de parcelamento físico, pelo que necessário o registro do loteamento para regularização da situação fática, conforme dispõe a Lei n. 6.766/79 (item 166, Cap. XX, da NSCGJ); que há divergência quanto à descrição do imóvel nos trabalhos técnicos apresentados e na escritura, o que torna necessária retificação com a participação de todos os envolvidos, os quais devem assinar os mapas e memoriais (os trabalhos técnicos não contam com a assinatura da vendedora Camila); que a descrição do imóvel no registro é precária, o que também torna necessária retificação na forma do artigo 213, inciso II, da Lei n. 6.015/73 (especialidade objetiva – fls. 01/06).

O MM. Juiz Corregedor Permanente entendeu que referido parcelamento do solo é irregular já que não houve aprovação municipal nem observância ao item 166, Cap. XX, das NSCGJ (fls. 162/164).

A parte apelante sustenta, em síntese, que é possível o registro da parte destacada como um todo, notadamente porque não há burla à Lei de Parcelamento do Solo; que a associação foi criada justamente para regularização da situação do imóvel: várias famílias foram prejudicadas pela proprietária tabular; que obrigações com terceiros foram quitadas para solução do problema; que há temor quanto a penhoras advindas de processos judiciais em curso; que a tentativa de regularização se dá também perante a Prefeitura Municipal; que autorizou-se registro em casos semelhantes (Associações Pé de Serra e Patrocínio); que, subsidiariamente, averbação com a finalidade de publicidade acerca da existência do negócio de venda e compra pode ser autorizada (fls. 170/175).

A Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 274/275).

É o relatório.

De início, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.

Por isso mesmo, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e das normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que se extrai do item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ):

“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.

No mérito, o recurso não comporta provimento, ainda que nem todos os óbices subsistam. Vejamos.

No caso concreto, não resta dúvida, tal como relatado pela Oficial (fl. 01/06), de que o imóvel objeto da escritura de venda e compra foi parcelado fisicamente.

Na forma da Lei n. 6766/79, o parcelamento do solo urbano pode ser feito mediante loteamento, para o qual se faz necessária aprovação pelo município e pelo GRAPOHAB, ao lado de registro especial perante o Registro de Imóveis (artigos 2º e 18 da lei).

O loteamento ou desmembramento do solo sem autorização do órgão público competente ou em desacordo com a lei constitui crime (artigo 50 da Lei n. 6.766/79).

Neste contexto, e por força dos itens 164 e 166, Capítulo XX, das Normas de Serviço:

“164. O parcelamento do solo para fins urbanos será precedido de averbação de lei municipal que incluiu o imóvel parcelado em zona urbana, bem como da comprovação da ciência do INCRA. (…)

166. É vedado o registro de alienação voluntária de frações ideais com localização, numeração e metragem certas, ou a formação de condomínio voluntário, que implique fraude ou qualquer outra hipótese de descumprimento da legislação de parcelamento do solo urbano, de condomínios edilícios e do Estatuto da Terra. A vedação não se aplica à hipótese de sucessão causa mortis”.

No caso concreto, porém, o que se busca é o registro de escritura pública de venda e compra por meio da qual a proprietária alienou parcela do imóvel à parte apelante, Associação Areia (20 ha fls. 07/12). A matrícula n. 10.135, copiada às fls. 60/62, atesta que o imóvel é uma área rural de 24 ha, cadastrada perante o INCRA sob o número 950.190.886.041-3, de propriedade de Camila Souza de Paula.

Em outros termos, ainda que reste evidenciado que o imóvel foi parcelado, há que se analisar a possibilidade de ingresso da escritura de compra apresentada pela parte recorrente, por meio da qual houve alienação de uma parcela de 20 ha a apenas uma compradora, a Associação Areia.

Quanto ao parcelamento, vale registrar que são muitos os elementos que o comprovam.

De fato, o estatuto social da Associação Areia demonstra que uma das finalidades da pessoa jurídica é a regularização das pendências da área adquirida perante o poder público (fls. 31/37).

No mesmo sentido, as razões recursais (mais de setenta famílias adquiriram lotes na gleba destacada), o conteúdo da ação judicial de autos n. 1000627.77.2017.8.26.0426 (fls. 188/217), em que se reconheceu o parcelamento irregular em imóvel rural, com interdição do empreendimento, as providências tomadas pelo Ministério Público (fls. 218/260) e as imagens de fls. 40/41.

Quanto ao parcelamento de imóvel rural, o artigo 65 do Estatuto da Terra, Lei n.4.504/64, veda expressamente a sua divisão em áreas de dimensão inferior ao módulo de propriedade rural, enquanto o artigo 61, §2º, do mesmo diploma exige aprovação e fiscalização do INCRA nos casos de loteamento para fins de urbanização ou formação de sítios de recreio.

No mesmo sentido é a Lei n.6.766/79, que dispõe:

“Art. 53. Todas as alterações de uso do solo rural para fins urbanos dependerão de prévia audiência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, do Órgão Metropolitano, se houver, onde se localiza o Município, e da aprovação da Prefeitura municipal, ou do Distrito Federal quando for o caso, segundo as exigências da legislação pertinente”.

Já as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, no Capítulo XVI, do Tomo II, destacam a necessidade de se incluir nas escrituras o teor das autorizações:

“66. As escrituras relativas a imóveis rurais devem conter, ainda: (…)

b) o interior teor da autorização emitida pelo INCRA para fins de desmembramento de bem imóvel rural, quando exigível, observadas as normas legais referentes à fração mínima de parcelamento (fmp) e à reserva legal”.

A escritura apresentada, que foi lavrada no Cartório de Notas da cidade de Claraval, Estado de Minas Gerais, nada menciona neste sentido.

Por outro lado, como já exposto, não se busca regularização do parcelamento do imóvel neste primeiro momento. O que se pretende é o registro de escritura de venda e compra de parcela do imóvel a uma compradora, de modo que não pode subsistir a exigência de prévia regularização do loteamento.

Ainda que, na espécie, se admitisse o destacamento de parte do imóvel rural por simples convenção entre a proprietária vendedora e a associação compradora, uma vez que, a princípio, foi observado o módulo mínimo de área para as duas porções remanescentes, que ficaram com dois hectares de superfície cada (fl.13), a identificação do imóvel destacado que constará na nova matrícula deve ser apurada em memorial descritivo assinado por profissional habilitado, como determina o artigo 176, §3º, da Lei de Registros Públicos.

Entretanto, a descrição do imóvel inserida na escritura diverge da descrição informada nos trabalhos técnicos.

Observe-se que a escritura assim descreve a área destacada de vinte hectares (fls.08/09, destaques nossos):

“Inicia-se no ponto 8 definido pelas coordenadas N: 7.719.840,957 m e E: 264.726,218 m, confrontando com DR. ANTÔNIO FERNANDO BERSANI, deste segue até o azimute de 174º36’36” e distância de 260,22 até o porto 9 agora confrontando com LUIZ CÂNDIDO DOS SANTOS; deste segue até o azimute de 173º44’10” e distância de 105,20 até o ponto 10; deste segue até o azimute de 272º59’34” e distância de 89,26 até o ponto 11 agora confrontando com IMOBILIÁRIA CHAPARRRAL S/C LTDA; deste segue até o azimute de 272º34’10” e distância de 174,72 até o ponto 12; deste segue até o azimute de 189º19’59” e distância de 359,08 até o ponto 12A agora confrontando com REMANESCENTE DO SÍTIO SANTA MARIA (…); deste segue até o azimute de 65º14’33” e distância de 22,80 até o ponto 8 chegando ao ponto onde teve início e finda esta descrição (…)”.

O memorial descritivo de fls.15/16, por sua vez, descreve esses mesmos trechos da seguinte forma:

“Inicia-se no ponto 8, de coord. UTM do eixo X=264726,2165m e Y=7719840,9742m, localizado em uma cerca de arame, no ponto de confrontação com Dr. Antônio Fernando Bersani; daí segue com a Az. 174º36’36” por 260,22m, até o porto 9, confrontando neste percurso com Dr. Antônio Fernando Bersani; daí segue com a Az. 173º44’10” por 105,20m até o ponto 10; daí segue com o Az. 272º59’34” por 89,26m até o ponto 11, confrontando neste percurso com Luiz Cândido dos Santos; daí segue com o Az. 272º34’10” por 174,72m, até o ponto 12; daí segue com o Az. 189º17’47” e distância de 359,08m, até o ponto 12ª confrontando neste percurso com Imobiliária Chaparral S/C LTDA (…); daí segue com Az. 64º11’23” por 21,93 até o ponto 8; confrontando neste percurso com MARIA ESTELA MOREIRA CARLOS ESPER, chegando ao ponto onde tere início e finda esta descrição (…)”.

Como se vê, existem divergências quanto à coordenada geodésica do ponto inicial, quanto aos graus de direção horizontal em alguns trechos e quanto aos confrontantes indicados para os mesmos trechos, sendo necessária retificação para que a escritura e os trabalhos técnicos guardem coerência entre si e possam informar, com segurança, a exata descrição a ser utilizada na abertura de matrícula própria para a parcela destacada.

Observe-se que a ata retificativa de fls.11/12 somente foi lavrada para constar a descrição correta do imóvel conforme a matrícula n.10.135, de modo que necessária nova retificação para adequação do título ao memorial descritivo, nos termos do artigo 176, §3º, da LRP, com indicação correta da localização e das confrontações da parcela negociada.

Na forma do item 55, do Cap XVI, das NSCGJ:

“55. Os erros, as inexatidões materiais e as irregularidades, quando insuscetíveis de saneamento mediante ata retificativa, podem ser remediados por meio de escritura de retificação-ratificação, que deve ser assinada pelas partes e pelos demais comparecentes do ato rerratificado e subscrita pelo Tabelião de Notas ou pelo substituto legal”.

Quanto ao destaque dado pela Oficial à ausência de assinatura da proprietária Camila na planta de fls.13/14, trata-se de mera declaração da responsabilidade prevista no § 14, inciso II, do artigo 213, da LRP.

Havendo, na escritura firmada pelas partes, descrição correta e em sintonia com os trabalhos técnicos assinados por profissional habilitado, pode ser dispensada a assinatura das partes na planta e no memorial descritivo (basta sua manifestação na escritura pública).

Neste ponto, mesmo que se considere relevante a expressa advertência aos requerentes e ao profissional que elaborou o memorial descritivo por prejuízos decorrentes de eventual falsidade detectada no trabalho técnico, a transcrição desse dispositivo é mera recomendação feita pelo IBAPE/SP, sem força legal ou normativa que autorize a desqualificação do título por omissão.

Ademais, não se pode escusar da aplicação da lei sob a justificativa de desconhecimento (artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

Quanto à terceira exigência, que diz respeito à necessidade de prévia retificação da matrícula para ingresso do título aquisitivo, ela também deve ser mantida.

É certo que, de acordo com o item 136.2, Cap.XX, das NSCGJ, o protocolo do requerimento de retificação de registro não gera prioridade nem impede a qualificação e o registro de demais títulos não excludentes ou contraditórios, sendo que o item 136.4 deixa claro que é plenamente possível a transmissão do domínio no curso de procedimento de retificação.

Isto porque, ainda que pendente o aperfeiçoamento da base física da matrícula, é possível o registro se o objeto do título corresponder ao do fólio real. Do contrário, toda transferência estaria prejudicada até a finalização do procedimento de retificação, pois só então seria conhecida a real configuração do imóvel.

Mas não é esse o espírito da norma.

A correspondência que se espera não é entre o título e a base física, mas entre o título e o fólio real, a fim de se confirmar, com segurança, o objeto do negócio jurídico formalizado.

Todavia, quando a transmissão implica parcelamento de imóvel rural, a retificação prévia deve ser exigida conforme disposto no Cap.XX, das NSCGJ (destaque nosso):

“10.1.1. A descrição precária do imóvel rural, desde que identificável como corpo certo e localizável, não impede o registro de sua alienação ou oneração, salvo quando sujeito ao georreferenciamento ou, ainda, quando a transmissão implique atos de parcelamento ou unificação, hipóteses em que será exigida sua prévia retificação“.

Importante destacar que a retificação exigida pela Oficial afeta uma parte do perímetro onde a confrontação do imóvel é marcada por uma grota de água e uma voçoroca, sendo descrita na matrícula como uma linha reta, de modo que exigido aperfeiçoamento com a descrição da sinuosidade natural do percurso nesse trecho.

A retificação, portanto, poderá resultar em alteração de área para mais ou para menos.

Porém, conforme ilustra a planta de fls.13/14, essa parte do perímetro onde a Fazenda Areião confronta com imóvel de Vicente Paulo Faleiros e que teria sido transmitida a Deyvid Silva Francisco Mazeo (Gleba 02) foi projetada com a superfície mínima admitida, de apenas 2 hectares.

Assim, caso a retificação do perímetro importe em redução da área original, será necessária reformulação das divisas propostas para que nenhuma gleba fique com área inferior ao módulo mínimo, o que é vedado pelo artigo 65 da Lei n.4.504/64.

Nesse contexto, o resultado da retificação condiciona a viabilidade da transmissão conforme a divisão proposta na escritura.

Vale anotar que, neste caso, a retificação exigida não se restringe à simples adequação da descrição do imóvel rural ao parcelamento proposto na escritura, hipótese em que o procedimento específico seria dispensável (artigo 213, §11, III, e artigo 176, §§3º e 4º, da LRP), mas afeta confrontação com imóveis vizinhos, sendo fundamental a participação dos confrontantes.

Por fim, no que diz respeito ao pedido subsidiário, acolhimento não é possível na medida em que o negócio de venda e compra implica transferência de direito real e, por isso mesmo, seria em tese passível de registro em sentido estrito e não de averbação para fins publicitários (artigo 167, inciso I, da Lei de Registros Públicos).

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça

Relator.

(DJe de 12.09.2024 – SP)