CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida – Recusa de ingresso de escritura de venda e compra de parte ideal correspondente a dois décimos do bem – Orientação da Corregedoria Geral da Justiça pela impossibilidade de registro de venda de parte ideal por caracterizar possível fraude à lei do parcelamento do solo – Caso concreto que não envolve novo parcelamento, mas venda de parte ideal nas condições originalmente estabelecidas pelos condôminos, anteriormente à entrada em vigor da Lei n.6.766/79 e sem referência a localização específica ou metragem definida para cada copropriedade – Elementos suficientes para afastar, na espécie, a aplicação do item 166 do Capítulo XX das NSCGJ – Averbação de indisponibilidade de bens em nome do vendedor – Medida acautelatória que impede o registro de alienação voluntária, ainda que a escritura tenha sido lavrada anteriormente, uma vez que a qualificação registral é levada a efeito no momento da apresentação do título para registro (tempus regit actum) – Averbação de penhora para garantia de execução – Constrição que não impede a alienação do imóvel – Dúvida procedente Recurso não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001755-32.2022.8.26.0338, da Comarca de Mairiporã, em que é apelante ROGER LOMBARDI, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE MAIRIPORÃ.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso de apelação, v. u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 31 de outubro de 2024.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1001755-32.2022.8.26.0338
Apelante: Roger Lombardi
Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Mairiporã
VOTO Nº 43.617
Registro de imóveis – Dúvida – Recusa de ingresso de escritura de venda e compra de parte ideal correspondente a dois décimos do bem – Orientação da Corregedoria Geral da Justiça pela impossibilidade de registro de venda de parte ideal por caracterizar possível fraude à lei do parcelamento do solo – Caso concreto que não envolve novo parcelamento, mas venda de parte ideal nas condições originalmente estabelecidas pelos condôminos, anteriormente à entrada em vigor da Lei n.6.766/79 e sem referência a localização específica ou metragem definida para cada copropriedade – Elementos suficientes para afastar, na espécie, a aplicação do item 166 do Capítulo XX das NSCGJ – Averbação de indisponibilidade de bens em nome do vendedor – Medida acautelatória que impede o registro de alienação voluntária, ainda que a escritura tenha sido lavrada anteriormente, uma vez que a qualificação registral é levada a efeito no momento da apresentação do título para registro (tempus regit actum) – Averbação de penhora para garantia de execução – Constrição que não impede a alienação do imóvel – Dúvida procedente Recurso não provido.
Trata-se de apelação interposta por Roger Lombardi contra a r. sentença de fls. 97/99, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Mairiporã, que manteve os óbices ao registro de escritura pública de compra e venda relativa a parte ideal de dois décimos (2/10) do imóvel objeto da matrícula nº 3.005 daquela serventia (prenotação n.95.334, fl. 05).
O Oficial informou que o registro não é possível justamente porque o título trata de venda de parte ideal do imóvel, o que é vedado, nos termos da orientação firmada no Processo CG n.2.588/2000, por caracterizar possível fraude à Lei do Parcelamento do Solo. Anotou, ainda, que existe decreto de indisponibilidade de bens contra o vendedor, bem como penhora desta parte ideal, a qual foi decretada pelo juízo da 2ª Vara Cível da Comarca de São Paulo e averbada sob n.40 na matrícula (fls. 01/03).
A parte recorrente sustenta, em síntese, que faz jus à gratuidade processual; que adquiriu o imóvel em 2008, quando passou a exercer posse sobre ele; que somente conseguiu juntar recursos para lavrar a escritura em 2015; que, na época da aquisição, não havia registro de indisponibilidade; que comprou o bem de boa-fé, o que afasta a configuração de fraude à execução; que os demais coproprietários anuíram com a venda, conforme documento assinado em novembro de 2007; que já tomou as medidas judiciais cabíveis para levantamento das ordens indisponibilidade que existem contra o vendedor, o que está ocasionando diversos transtornos; que se trata de sua única propriedade e está desempregada; que outros compradores conseguiram registrar a transmissão das cotas ideais que adquiriram, o que revela a injustiça da recusa (fls. 107/119).
Regularização de representação processual às fls. 161/162.
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 174/175).
É o relatório.
De início, vale anotar que não há por que se falar em gratuidade processual: no âmbito administrativo, não incidem custas, despesas ou honorários advocatícios.
De fato, e a despeito do teor do artigo 207 da Lei Federal n.6.015/73, não há previsão específica nas Leis Estaduais n.11.331/02 e n.11.608/03, as quais disciplinam a incidência dos emolumentos sobre os serviços notariais e de registro e da taxa judiciária sobre os serviços públicos de natureza forense.
No mérito, o recurso não comporta provimento.
Vejamos os motivos.
Trata-se de requerimento pelo registro de escritura de venda e compra lavrada em 21 de outubro de 2015, por meio da qual os vendedores Ivan Fábio Vigiato e sua mulher, Emília Yuri Honda, casados pelo regime da comunhão universal de bens, venderam para Roger Lombardi parte ideal correspondente a dois décimos do imóvel objeto da matrícula n. 3.005 do Registro de Imóveis de Mairiporã, constituído por uma chácara localizada na zona urbana, com área total de 1.218,90 metros quadrados (fls. 33/38).
Na mesma escritura, consta que o imóvel pertence a outros quatro coproprietários, também titulares de dois décimos do imóvel cada um. Três deles anuíram expressamente com a venda por documento assinado em novembro de 2007, conforme demonstrado à fl.117.
Assim, o primeiro óbice apontado pelo Oficial foi a impossibilidade do registro por se tratar de venda de parte ideal, o que caracteriza possível fraude à Lei do Parcelamento do Solo.
Nesse sentido, indicou a orientação firmada no Parecer n.348/2001, aprovado no Processo CG n.2.588/2000, o qual tem a seguinte ementa:
“Registro de Imóveis – Alienação de partes ideais quantificadas em metragem quadrada – Indícios registrários de que se trata de expediente para irregular desmembramento do imóvel – Fraude à lei que impede o registro – Situação evidenciada na verificação das certidões das matrículas, e que deve ser necessariamente observada pelos tabeliães de notas, dada a irregularidade administrativa da lavratura de instrumentos públicos cujo registro se mostra inviável – Necessidade da inclusão, em todos os instrumentos públicos que envolvam a alienação de partes ideais que possam caracterizar fraude à lei de parcelamento do solo” (CGJSP – Processo: 2.588/2000; Relator: Luís de Macedo; Data de Julgamento: 05/06/2001).
Trata-se de problema antigo, percebido no início da década de 1980, imediatamente após a sanção da Lei n.6.766/79, que regulamentou o parcelamento do solo urbano.
Neste sentido, o parecer aprovado no Processo CG n.59.044/81, que traz a seguinte ementa:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Registro de vendas de frações ideais, com localizações, numerações e metragens certas – Forma de instituição de condomínio ordinário em desacordo com os princípios da legislação civil – Vedação ordenada – Expediente oblíquo e irregular destinado a ocultar caracterizado parcelamento do solo e a contornar a incidência da legislação especial” (CGJSP – Processo: 59044/81; Relator: José Mello Junqueira; Data de Julgamento: 28/06/1982).
Consta do referido parecer:
“A imaginação fértil de inescrupulosos encontrou, para fugir às exigências urbanísticas e protetivas da lei do parcelamento do solo urbano, a forma do retalhamento por condomínio ou através das próprias Prefeituras, pelo expediente da desapropriação de faixas de ruas. Ficou comprovado, nos autos, os registros de diversas frações ideais, em número de 2.430, junto à Matrícula de n.56.787 do Cartório de Registro de Imóveis da comarca de Itanhaém.
As correições procedidas pelas comarcas do Interior do Estado têm confirmado as desapropriações, pelas municipalidades, de faixas de terra, com destinação específica de arruamento, propiciando o parcelamento do solo, de forma irregular.
Realmente, todos esses expedientes desnaturam a finalidade precípua da lei que, a par de proteger os particulares adquirentes de lotes, visa estabelecer a fiscalização por parte dos poderes públicos de urbanização.
Destarte, devem os Cartórios de Registros de Imóveis estar atentos a essas artimanhas e ardis, negando-lhes seguimento, toda vez que se propiciar qualquer fundamento para recusa do registro”.
Foi com base neste último parecer que as Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça foram atualizadas para trazer dispositivo expresso vedando a alienação voluntária de frações ideais, o que atualmente está previsto no item 166 do Capítulo XX das NSCGJ, que tem a seguinte redação:
“166. É vedado o registro de alienação voluntária de frações ideais com localização, numeração e metragem certas, ou a formação de condomínio voluntário, que implique fraude ou qualquer outra hipótese de descumprimento da legislação de parcelamento do solo urbano, de condomínios edilícios e do Estatuto da Terra. A vedação não se aplica à hipótese de sucessão causa mortis.
166.1 Para comprovação de efetivação de parcelamento irregular, poderá o oficial valer-se de imagens obtidas por satélite ou aerofotogrametria”.
Não obstante, em que pese a cautela do Oficial, não se identificam, no caso concreto, elementos de violação à legislação do parcelamento do solo.
Primeiramente, porque o título apresentado a registro não provoca novo parcelamento, mas apenas transfere a fração ideal de dois décimos que já pertence aos vendedores, sendo que o condomínio estabelecido precede a Lei n.6.766/79.
Como se vê da matrícula, desde a sua abertura, em 18 de janeiro de 1977, o imóvel já pertencia a nove coproprietários, sendo que Branko Luketic possuía dois décimos e cada um dos demais um décimo (fl.09).
Desde então, a mesma parte ideal foi transmitida até alcançar a parte recorrente: em 02 de julho de 1981, Branko Luketic transmitiu a parte ideal para Ignez Maria Calabresi (R.6, fl.11), que a transmitiu, em 20 de dezembro de 1982, para Ricardo Barbosa Balesteros (R.8, fl.11), que a transmitiu, em 25 de outubro de 1984, para Armando Adriano Niel e Alcione Pimentel Niel (R.12, fl.12), os quais a transmitiram, em 29 de maio de 1986, para João Elenirson Costa Contador (R.20, fl.14), que a transmitiu, em 25 de abril de 1991, para Ivan Fábio Vigiato e Emília Yuri Honda, atuais titulares do domínio, que venderam a parte ideal para a parte recorrente.
Nota-se, ainda, que nem a escritura nem a matrícula do bem fazem referência a localização específica, numeração autônoma ou metragem definida de cada coproprietário, que hoje são em número de cinco, possuindo dois décimos do imóvel cada um.
Essas circunstâncias são suficientes para, no caso concreto, afastar a aplicação do item 166 do Capítulo XX das NSCGJ, pois ausente efetivo descumprimento da legislação do parcelamento do solo.
Importante frisar, por oportuno, que o caso em tela não se confunde com os precedentes deste Conselho Superior em que registros foram obstados justamente pela existência de indícios de fraude à legislação do parcelamento do solo.
A título exemplificativo, a Apelação nº 1012223- 96.2022.8.26.0292, de que fui relator, a qual tratava do registro de escritura de compra e venda por meio da qual os proprietários alienaram, para dezoito compradores sem vínculo pessoal entre si ou com os vendedores, frações ideais em proporções variadas, algumas delas mínimas (20,78%; 1,95%; 4,43%; 3,21%; 4,13%; 5,19%; 4,11%; 14,14%; 1,70%; 1,50%; 2,55%; 2,50%; 3,90%; 5,24%; 2,26%; 2,35%; 2,48% e 1,69%), a evidenciar parcelamento irregular do solo e não mero condomínio.
O presente caso, por sua vez, trata de condomínio consolidado há anos, em que fração ideal de um dos condôminos é alienada em moldes bastante similares àqueles da Apelação Cível n. 1001065-45.2024.8.26.0269, julgada em 29 de agosto deste ano, também de minha relatoria.
Desse modo, o primeiro óbice ao registro pode ser afastado.
O segundo óbice, no entanto, é intransponível neste momento.
Verificam-se, na matrícula do imóvel, diversas averbações ainda não canceladas, que informam ordens de indisponibilidade de bens do vendedor em virtude de decisões judiciais proferidas em diversos processos (Av.39 e 43/47, fls. 18/21).
A matéria relativa às indisponibilidades é regulada atualmente pelo item 413, do Cap. XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, nos seguintes termos (destaques nossos):
“413. As indisponibilidades averbadas nos termos do Provimento CG. 13/2012 e CNJ nº 39/2014 e na forma do § 1º, do art. 53, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, não impedem a inscrição de constrições judiciais, assim como não impedem o registro da alienação judicial do imóvel“.
A indisponibilidade é proibição ao poder de dispor com finalidade acautelatória: impedir alienação, ainda que não acarrete necessariamente a expropriação do bem.
Dessa forma, a existência de ordem neste sentido obsta o registro da alienação voluntária e isso mesmo que a sua decretação tenha ocorrido após lavratura da escritura de venda e compra.
Com efeito, pouco importa que a escritura de compra evenda tenha sido lavrada anteriormente à inscrição das indisponibilidades na matrícula do imóvel, uma vez que a qualificação registral é levada a efeito no momento da apresentação do título para registro (tempus regit actum).
Nesse sentido:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA – ESCRITURA PÚBLICA DE VENDA E COMPRA – ORDEM DE INDISPONIBILIDADE QUE OBSTA O REGISTRO DA ALIENAÇÃO VOLUNTÁRIA – PRINCÍPIO DA INSCRIÇÃO – ÓBICE MANTIDO – DÚVIDA PROCEDENTE – RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO” (TJSP; Apelação Cível 1027485-33.2021.8.26.0224; Relator(a): Fernando Antonio Torres Garcia (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Data do Julgamento: 31/08/2023).
“REGISTRO DE IMÓVEIS – CARTA EXTRAÍDA DOS AUTOS DE AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA – ALIENAÇÃO VOLUNTÁRIA – INDISPONIBILIDADES DE BENS EM DESFAVOR DE UM DOS TITULARES DOMINIAIS JÁ AVERBADAS AO TEMPO EM QUE APRESENTADO O TÍTULO OBSTAM O SEU INGRESSO NO ASSENTO IMOBILIÁRIO – DÚVIDA PROCEDENTE – APELAÇÃO A QUE SE NEGA PROVIMENTO” (TJSP; Apelação Cível 1014432-51.2022.8.26.0223; Relator(a): Fernando Antônio Torres Garcia (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Data do Julgamento: 16/06/2023).
“REGISTRO DE IMÓVEIS. Partilha de direitos hereditários. Cessão de direitos ocorrida nos autos do arrolamento, com adjudicação integral do bem em favor de um dos herdeiros. Imóvel com ordem de indisponibilidade. Alienação voluntária. Impossibilidade de registro. Recurso desprovido” (TJSP; Apelação Cível 1003970-04.20218.8.26.0505; Relator(a): Geraldo Francisco Pinheiro Franco (Corregedor Geral); Órgão Julgador: Conselho Superior de Magistratura; Data do Julgamento: 15/08/2019).
Por fim, quanto à penhora que pesa sobre o imóvel para garantia de execução movida contra o vendedor Ivan Fábio Vigiato, objeto da Averbação n.40 (fl.19), tal constrição não impede a alienação do imóvel.
De fato, as constrições não têm o efeito de indisponibilidade, mas tão somente sujeitam o imóvel à satisfação de um crédito. Tanto é assim que permanecem averbadas mesmo com o registro de eventual alienação voluntária. Debate sobre fraude contra credores ou à execução deverá se dar, em consequência, na via adequada, a judicial, se o caso.
Em suma, ainda que correta apenas a segunda exigência formulada pelo Oficial ao registro da escritura apresentada, é de rigor a manutenção da sentença proferida.
Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso de apelação.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJe de 07.11.2024 – SP)