CSM|SP: Registro de imóveis – Dúvida – Escritura pública de doação de imóvel lavrada há mais de trinta anos – Pretensão ao ingresso do título no fólio real após o falecimento da doadora, averbado na matrícula – Simples notícia do óbito não afeta o princípio da continuidade, pois não afeta a cadeia dominial – Existência de constrições judiciais consistentes de arresto e penhora não são impeditivas de alienação voluntária do imóvel, mas que não podem ser canceladas sem ordem específica – Indisponibilidade decretada em processo de falência, porém, impede eventual registro do título no fólio real – Apelação desprovida.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1002383-57.2024.8.26.0659, da Comarca de Vinhedo, em que é apelante ARNALDO BONIFÁCIO JUNIOR, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE VINHEDO.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso, v. u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 25 de outubro de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1002383-57.2024.8.26.0659

Apelante: Arnaldo Bonifácio Junior

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Vinhedo

VOTO Nº 43.606

Registro de imóveis – Dúvida – Escritura pública de doação de imóvel lavrada há mais de trinta anos – Pretensão ao ingresso do título no fólio real após o falecimento da doadora, averbado na matrícula – Simples notícia do óbito não afeta o princípio da continuidade, pois não afeta a cadeia dominial – Existência de constrições judiciais consistentes de arresto e penhora não são impeditivas de alienação voluntária do imóvel, mas que não podem ser canceladas sem ordem específica – Indisponibilidade decretada em processo de falência, porém, impede eventual registro do título no fólio real – Apelação desprovida.

Trata-se de recurso de apelação (fls. 111/137) interposto por ARNALDO BONIFÁCIO JUNIOR contra a r. sentença (fls. 102/103) proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas da Comarca de Vinhedo/SP, que julgou procedente a dúvida suscitada e manteve o óbice registrário.

O apelante alega, em síntese, que as exigências devem ser afastadas porque: (i) a morte da doadora após a lavratura da escritura pública de doação do imóvel ao seu filho não impede que seja registrada na matrícula do imóvel, por se tratar de ato jurídico perfeito que preenchia todos os requisitos exigidos à época de sua lavratura; (ii) em relação às constrições judiciais (arresto e penhora) as partes quedaram-se inertes após intimadas para manifestar interesse no imóvel, o que levou à preclusão; e (iii) quanto à arrecadação do imóvel levada a efeito na falência da empresa ALBERT CASAMAYOR ARTEFATOS DE MADEIRA LTDA., afirma que o síndico requereu a extinção da falência, pois reputa a mesma frustrada, haja vista que o débito dos imóveis são superiores ao seu valor de mercado, o que, no seu entender afastaria a exigência.

Requer, então, a reforma da sentença, para determinar ao Oficial a adoção de providências quanto ao registro da escritura pública de doação, lavrada pelo 24º Tabelião de Notas da Capital, referente a matrícula sob nº 18.132 desta serventia (fls. 08/11 e 37/38), para dar sequência no andamento da ação de adjudicação compulsória que move em face da doadora, do donatário e seus herdeiros (fl. 50).

A Douta Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 157/159).

É o relatório.

Decido.

No caso concreto, o título cujo registro se pretende é a Escritura Pública de Doação de fls. 08/11, refiticada a fls. 37/38, lavrada pelo 24º Tabelião de Notas da Capital em 01/03/1993, referente à doação do imóvel de matrícula nº 18.132 do Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de Vinhedo /SP feita por Encarnacion Casamayor Elies de Garcia a seu filho, Alberto Garcia Casamayor.

Todavia, a doadora faleceu em 1999 sem que a referida escritura tenha sido levada a registro, e seu óbito foi averbado na matrícula do imóvel, como se verifica da certidão de fls. 166/168.

O recorrente, Arnaldo Bonifácio Júnior, afirma que, em 29/05/2015, recebeu o imóvel objeto da Dúvida do donatário, Alberto Garcia Casamayor, por meio de instrumento particular de confissão de dívida e dação em pagamento de dívidas trabalhistas.

Em 01/09/2015, Alberto Garcia Casamayor faleceu e, em 06/06/2023, o recorrente distribuiu ação de adjudicação compulsória em face de Encarnacion Casamayor Elies de Garcia, Alberto Garcia Casamayor e suas sucessoras, Julia Santos Casamayor, Daisy Gomes Casamayor Lavezzo e Priscylla Gomes Casamayor, que tramita perante a 3ª Vara Judicial da Comarca de Vinhedo/SP, sob o nº 1001721-30.2023.8.26.0659.

Ocorre que, em dezembro de 2023, o MM. Magistrado que preside a referida ação de adjudicação exarou decisão (copiada às fls. 50), determinando que o ora recorrente providenciasse o registro da escritura pública de doação, lavrada pelo 24º Tabelião de Notas da Capital, referente à matrícula sob nº 18.132, a fim de observar o princípio da continuidade registral.

Em cumprimento à determinação, em 06/06/2024, o recorrente apresentou a registro a escritura de doação, sobrevindo a qualificação negativa do título por meio da Nota Devolutiva de nº 35.980 (fls. 164/165), de 20/06/2024, nos seguintes termos:

“Trata-se da apresentação para registro a certidão expedida aos 14/03/2023 extraída da escritura pública de doação lavrada pelo 24º Tabelião de Notas de São Paulo, livro 3.174, fls. 139, referente a matrícula sob nº 18.132 desta serventia (Lote 31 da Quadra 48 do Condomínio Estância Marambaia), que fica adiado pelos seguintes motivos: – Reitero integralmente a nota de devolução nº 35.171, feita em 23/04/2024, que diz:

Foi a referida escritura pública avaliada por esta serventia no protocolo nº 79.652, em 19/02/2024, sendo que nessa ocasião foi apresenta (sic) a mesma certidão da escritura da doação, ficando impossibilitado o registro devido ao princípio da continuidade e disponibilidade registral, uma vez que consta na matrícula na av.5 o óbito da proprietária ENCARNACION CASAMAYOR ELIES DE GARCIA, e considerando que com a morte da proprietária seu patrimônio se transfere aos herdeiros, bem como considerando que a propriedade só é transmitida mediante o registro do título aquisitivo no Registro de Imóveis competente, nos moldes do artigo 1.245 do Código Civil Brasileiro, ficamos impossibilitados do registro da escritura pública de doação. SE NÃO FOSSE O ÓBICE ACIMA:

1- Reitero o item 2 da nota de devolução, que diz: “em análise a matrícula nº 18.132 desta serventia foi possível constatar que existem constrições, devidamente averbadas sob nº 2 (arresto) e 6 (penhora).

Desta forma, para o registro da escritura pública apresentada, necessário que seja apresentada ordem judicial de cancelamento das constrições acima mencionadas, emitidas pelo Juízo competente, nos moldes dos artigos 250, inciso I e 259 da Lei nº 6.015/73″. OU alternativamente, poderá ser apresentada declaração subscrita pelo donatário ALBERTO GARCIA CASAMAYOR, com a respectiva firma reconhecida, declarando ciência com relação ao arresto e penhora averbados na matrícula do imóvel.

2- Reitero item 3, que diz: ainda em análise a matrícula nº 18.132 desta serventia foi possível verificar a existência de averbação de arrecadação do imóvel, em processo falimentar (Av.8), o que torna indisponível o bem, o que obsta atos de transmissão e oneração do imóvel. Desta forma, para a prática do ato desejado (doação), necessário que seja apresentado ordem judicial de cancelamento da arrecadação averbada sob n 8 na Matrícula nº 18.132, proferida pelo Juízo competente, devidamente transitada em julgado, nos moldes dos artigos 250, inciso I e 259 da Lei nº 6.015/73.

3- Para a averbação do seu título deve ser feito o complemento de depósito de emolumentos no valor de R$ 3.190,93, quando do atendimento de todas as exigências e documentos acima indicados, ou seja, quando da reentrada do seu título nessa serventia.

Observação: foi apresentado requerimento de dúvida registral, porém, com informações relativas a nota de devolução envolvendo também outra escritura de outro imóvel, motivo pelo qual, caso a solicitação se refira a este título (escritura pública de doação lavrada pelo 24º Tabelião de Notas de São Paulo, livro 3.174, fls. 139, referente a matrícula sob nº 18.132 desta serventia (Lote 31 da Quadra 48 do Condomínio Estância Marambaia), objeto desta prenotação, corrigir a solicitação onde cabível, fazendo referência a esta escritura e este protocolo. Atentar que a referida solicitação deve ser apresentada dentro do prazo de vigência desta prenotação (04/07/2024).

Observação: consta ordem de indisponibilidade em nome de Alberto Garcia Casamayor.”

Após a manifestação de fls. 16/35, a Oficial suscitou a Dúvida de fls. 01/06, que foi julgada procedente pela sentença ora recorrida.

O recurso não comporta provimento.

Como mencionado, a escritura de doação do imóvel tratado nos autos não foi levada a registro à época de sua lavratura (1993), mas apenas em 2024, quando já averbada na matrícula do imóvel a morte da doadora, Encarnacion Casamayor Elies de Garcia (AV.5 – fls. 166).

O primeiro óbice post pelo registrador, de violação ao princípio da continuidade não se sustenta.

Não há dúvida que a escritura pública de doação não foi levada oportunamente ao registro imobiliário, de natureza constitutiva da transmissão da propriedade.

Não se discute, mais, que a morte acarreta a abertura da sucessão, com a transmissão da herança, desde logo, aos herdeiros, sendo o processo de inventário apenas o meio pelo qual se dá a partilha dos bens, conforme dispõe o artigo 1.784 do Código Civil, consagrando o princípio da saisine.

Sucede que a só averbação da morte da doadora na matrícula do imóvel, por si só, não afeta o princípio da continuidade. Isso porque o imóvel continua registrado em nome da doadora.

A continuidade não é violada com a só notícia da morte da titular do domínio. Embora a propriedade se transmita ex lege com a morte, por força do princípio da saisine, o que ingressará no registro será o formal de partilha ou a carta de adjudicação conferindo o imóvel a um dos herdeiros.

Disso decorre que, sob tal ângulo, absolutamente nada impede o ingresso no registro imobiliário do contrato de doação celebrado em vida pela autora da herança.

A propósito, ensina Afrânio de Carvalho:

“O princípio da continuidade, que se apóia no de especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram sempre a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente. Ao exigir que cada inscrição encontre sua procedência em outra anterior, que assegure a legitimidade da transmissão ou da oneração do direito, acaba por transformá-la no elo de uma corrente ininterrupta de assentos, cada um dos quais se liga ao seu antecedente, como o seu subseqüente a ele se ligará posteriormente. Graças a isso o Registro de Imóveis inspira confiança ao público” (Registro de Imóveis, 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 253).

Está claro, pela lição acima, que a continuidade nada mais é do que o encadeamento dos registros, não afetados pelo fato jurídico da morte antes da partilha ingressar no fólio real.

Também não tem pertinência a exigência de cancelamento das ordens de arresto e de penhora averbadas na matrícula do imóvel ou, alternativamente, de apresentação de declaração de ciência a seu respeito, subscrita pelo donatário.

A razão disso é simples e não exige maior tirocínio.

As constrições efetivadas na matrícula do imóvel referentes às averbações de nº 2 (arresto) e 6 (penhora) não impedem o ingresso da escritura de doação no fólio real, já que eventual debate sobre fraude contra credores ou à execução se daria na via judicial adequada, além do que elas permaneceriam averbadas apesar do registro da doação.

Dizendo de outro modo, as constrições não tem o efeito de indisponibilidade, mas tão somente sujeitam o imóvel à satisfação de um crédito.

Um único óbice impede o registro A averbação de nº 8, efetivada à vista da arrecadação do imóvel nos autos de ação falimentar é incompatível com o ingresso do contrato de doação no fólio real.

Embora o recorrente afirme que o administrador da Massa Falida requereu a extinção da Falência (fls. 133), apenas mediante ordem de cancelamento da indisponibilidade oriunda do juízo em que determinada é que o óbice poderia ser afastado. Não se admite a revisão na esfera administrativa, para o fim de cancelamento da ordem de indisponibilidade, haja vista a impossibilidade da sobreposição do juízo administrativo em relação ao jurisdicional.

Sobre as ordens de indisponibilidade, a matéria é regulada pelo item 413, Capítulo XX, Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, que dispõe:

“413. As indisponibilidades averbadas nos termos do Provimento CG. 13/2012 CNJ nº 39/2014 e na forma do § 1º, do art. 53, da Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991, não impedem a inscrição de constrições judiciais, assim como não impedem o registro da alienação judicial do imóvel.”

Na hipótese vertente, não se está diante de alienação judicial do imóvel, mas de doação, que configura ato voluntário de disposição do bem, de sorte que a indisponibilidade impede o registro da escritura pública de doação.

Destacam-se os seguintes precedentes em sentido semelhante:

“Registro de imóveis – Dúvida – Carta de sentença extraída de ação de adjudicação compulsória – Indisponibilidade judicialmente decretada sobre o patrimônio da vendedora – Óbice existente ao tempo da prenotação – Irrelevância, neste caso, da data da celebração do negócio jurídico – Inaplicabilidade, no caso, das regras que permitem a inscrição de atos coativos – Compromisso de compra e venda que configura alienação voluntária – Óbice mantido – Apelação a que se nega provimento” (Apelação Cível nº 1008790-78.2022.8.26.0100; CSM; Relator: Desembargador Fernando Antônio Torres Garcia; Data do julgamento: 12/12/2022).

“Registro de imóveis. Procedimento de dúvida. Mandado judicial para registro de transferência de imóvel. Indisponibilidade judicialmente decretada sobre o patrimônio da vendedora. Óbice existente ao tempo da prenotação. Irrelevância, no caso concreto da data da celebração do negócio jurídico, em razão da ausência de expresso reconhecimento e determinação judicial da precedência jurídica do negócio preliminar. Inaplicabilidade das regras que permitem a inscrição de atos coativos. Negócio jurídico que configura alienação voluntária. Fato gerador de ITBI. Óbice mantido. Apelação a que se nega provimento” (Apelação Cível nº 1006283-76.2024.8.26.0100; CSM; Relator: Desembargador Francisco Loureiro; Data do julgamento: 25/07/2024.

Assim, é de rigor a manutenção da procedência da dúvida, apesar de afastadas duas das exigências formuladas pelo Oficial.

Ante o exposto, pelo meu voto, NEGO PROVIMENTO ao recurso.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 07.11.2024 – SP)