CSM|SP: Registro de imóveis – Procedimento de dúvida – Exigência de apresentação de Certidão Negativa de Débitos (CND) para registro de escritura pública de dação em pagamento – Exigência afastada – Restrição indevida ao acesso de título à tábua registral, imposta como forma oblíqua para forçar o contribuinte ao pagamento de tributos – Ofensa ao devido processo legal – Item 117.1 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça – Precedentes deste Conselho Superior da Magistratura e do Conselho Nacional de Justiça – Sentença reformada – Apelo provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1001124-15.2024.8.26.0663, da Comarca de Votorantim, em que é apelante SHELBY SECURITIZADORA S.A., é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE VOTORANTIM.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro da escritura pública de dação em pagamento, v. u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 31 de outubro de 2024.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1001124-15.2024.8.26.0663

APELANTE: Shelby Securitizadora Sa

APELADO: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Votorantim

VOTO Nº 43.613

Registro de imóveis  Procedimento de dúvida  Exigência de apresentação de Certidão Negativa de Débitos (CND) para registro de escritura pública de dação em pagamento  Exigência afastada  Restrição indevida ao acesso de título à tábua registral, imposta como forma oblíqua para forçar o contribuinte ao pagamento de tributos  Ofensa ao devido processo legal  Item 117.1 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça  Precedentes deste Conselho Superior da Magistratura e do Conselho Nacional de Justiça  Sentença reformada  Apelo provido.

Cuida-se de apelação interposta por SHELBY SECURITIZADORA S/A em face da r.sentença de fls. 101/108, proferida pela MMª Juíza Corregedora Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos, Civil de Pessoa Jurídica e Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas da Sede da Comarca de Votorantim, que, em procedimento de dúvida, manteve a negativa de registro da escritura de dação em pagamento junto às matrículas 21.301 e 21.360 da Serventia, em razão do descumprimento à exigência de apresentação de Certidão Negativa de Débito (CND) em nome da doadora K F Comércio e Serviços de Alimentação Ltda.

O recurso busca a reforma da sentença, alegando que se fundamenta em premissa equivocada. A apelante informa que ajuizou ação de execução em face da devedora KF Comércio e Serviços de Alimentação Ltda perante a 4ª Vara Cível da Comarca de Sorocaba (processo nº 1010594-98.2020.8.26.0602), sobrevindo acordo judicial pelo qual as partes concretizaram o negócio com a formalização da escritura pública de dação em pagamento lavrada perante o Tabelião de Notas de Sorocaba. Sustenta ser ilegal a exigência de apresentação de CND para registro do título, tratando-se de entendimento já consolidado no Conselho Superior da Magistratura porque afronta o art. 170 da Constituição Federal e constituiu meio anômalo para a cobrança de débitos fiscais, com o escopo de constranger o contribuinte.

A Douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo provimento do recurso (fls. 174/176).

É o relatório.

O recurso merece provimento, devendo ser afastada a exigência levantada pela Registradora.

De acordo com a nota devolutiva de fls. 17/20, a escritura pública de retificação e ratificação, lavrada em 6 de setembro de 2023 (fls. 29/36), foi desqualificada pelo Oficial do Registro de Imóveis de Votorantim, em virtude da não apresentação de certidão negativa relativa a créditos tributários federais e à dívida ativa da União (CND), emitida pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, em nome da empresa apelante.

Como sintetizou a Oficial em suas razões de dúvida, o dissenso neste procedimento está limitado à exigência de apresentação da Certidão Negativa de Débito.

A matéria já se encontra normatizada no âmbito administrativo nos termos do item 117.1 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça, que preceitua:

“117.1. Com exceção do recolhimento do imposto de transmissão e prova de recolhimento do laudêmio, quando devidos, nenhuma exigência relativa à quitação de débitos para com a Fazenda Pública, inclusive quitação de débitos previdenciários, fará o oficial, para o registro de títulos particulares, notariais ou judiciais.”

Não há razão para inaplicabilidade da referida norma nem mesmo diante da legislação apontada nas razões de dúvida, ante o entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal e deste Conselho Superior da Magistratura a respeito do tema.

Consoante reiteradas decisões, inclusive do Supremo Tribunal Federal, “o Estado não pode valer-se de meios indiretos de coerção, convertendo-os em instrumentos de acertamento da elação tributária, para, em função deles e mediante interdição ou grave restrição ao exercício da atividade empresarial, econômica ou profissional constranger o contribuinte a adimplir obrigações fiscais eventualmente em atraso” (STF, RE 666405/RS, Rel. Min. Celso de Mello).

Igualmente, a jurisprudência consolidada deste Conselho é no sentido de que exigir certidões negativas de tributos federais e contribuições previdenciárias para a prática de ato de registro caracteriza exercício abusivo de cobrar tributos.

Ainda sobre o tema, julgados deste Conselho:

“REGISTRO DE IMÓVEIS – DÚVIDA – INSTRUMENTO PARTICULAR DE CESSÃO DE DIREITOS – CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITO – CND – EXIGÊNCIA AFASTADA, SEGUNDO ATUAL ORIENTAÇÃO DESTE CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA E DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – SUBITEM 117.1, CAPÍTULO XX, TOMO II, DAS NORMAS DE SERVIÇO DA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA – APELO PROVIDO” (CSM/SP – apelação nº 1003559-67.2022.8.26.0198, Rel. Des. Torres Garcia, j. Em 28/11/2023).

“Registro de Imóveis – Carta de Adjudicação – Desqualificação do título judicial, exigindo-se certidão negativa de débitos (CND) expedida conjuntamente pela Receita Federal e pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – Impossibilidade – Item 119.1, do Capítulo XX, Tomo II, das NSCGJ – Registrador que não pode assumir o papel de fiscal dos tributos não vinculados ao ato registrado – Dúvida improcedente – Apelação provida” (Apelação Cível n. 1000791-27.2017.8.26.0625, Rel. Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco, j. 15.5.2018, DJe 17.7.2018).”

No mesmo sentido, Apelação Cível nº 0013759-77.2012.8.26.0562, rel. Des. Renato Nalini, j. em 17.1.2013; Apelação Cível nº 0021311-24.2012.8.26.0100, rel. Des. Renato Nalini, j. em 17.1.2013; Apelação Cível nº 0013693-47.2012.8.26.0320, rel. Des. Renato Nalini, j. em 18.4.2013; Apelação Cível nº 9000004-83.2011.8.26.0296, rel. Des. Renato Nalini, j. em 26.9.2013; Apelação Cível nº 0002289-35.2013.8.26.0426, rel. Des. Hamilton Elliot Akel, j. em 26.8.2014; Apelação Cível nº 0014803-69.2014.8.26.0269, rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, j. em 30.6.2016).

No último precedente mencionado (Apelação nº 0014803-69.2014.8.26.0269, relatada pelo Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças), restou consignado:

“Não se justifica, igualmente, a exibição de CND (certidões negativas de débitos previdenciários e tributários), seja porque originária a aquisição da propriedade, seja diante da contemporânea compreensão do C. CSM, iluminada por diretriz estabelecida pela Corte Suprema, a dispensá-la, porquanto a exigência, uma vez mantida, prestigiaria vedada sanção política.

Em atenção a esse último fundamento, a confirmação da exigência importaria, na situação em apreço, uma restrição indevida ao acesso de título à tábua registral, imposta como forma oblíqua, instrumentalizada para, ao arrepio e distante do devido processo legal, forçar o contribuinte ao pagamento de tributos.

Caracterizaria, em síntese, restrição a interesses privados em desacordo com a orientação do E. STF, a qual se alinhou este C. CSM, e, nessa trilha, incompatível com limitações inerentes ao devido processo legal, porque mascararia uma cobrança por quem não é a autoridade competente, longe do procedimento adequado à defesa dos direitos do contribuinte, em atividade estranha à fiscalização que lhe foi cometida, ao seu fundamento e fins legais, dado que as obrigações tributárias em foco não decorrem do ato registral buscado.

Conforme Humberto Ávila, “a cobrança de tributos é atividade vinculada procedimentalmente pelo devido processo legal, passando a importar quem pratica o ato administrativo, como e dentro de que limites o faz, mesmo que – e isto é essencial – não haja regra expressa ou a que seja prevista estabeleça o contrário”.

E os respeitáveis argumentos apresentados na r. sentença recorrida não têm o condão de modificar o entendimento já consolidado. Isso porque as diversas decisões judiciais e administrativas mencionadas, que resultaram no afastamento da exigência das certidões e na inserção do item 117.1 no Capítulo XX das NSCGJ, foram proferidas enquanto vigentes os artigos 47 e 48 da Lei nº 8.212/91.

Não bastasse a mencionada previsão normativa, recentemente, o C. Conselho Nacional de Justiça CNJ, no julgamento do Pedido de Providências n° 0001230-82.2015.2.00.0000, por votação unânime, firmou entendimento de que, reconhecida a inconstitucionalidade do art. 1°, inciso IV da Lei n° 7.711/88 (ADI 394), não há mais que se falar em comprovação de quitação de créditos tributários, de contribuições federais e de outras imposições para o ingresso de qualquer título do registro de imóveis.

Assim, ainda que o dispositivo legal que revogava em parte o art. 47 da Lei nº 8.212/91 tenha sido vetado (art. 20, IV, da Lei nº 14.382/2022), não houve alteração no panorama legislativo da matéria.

Em outras palavras: o art. 47 da Lei nº 8.212/91 permanece em vigor, assim como já ocorria quando a tese que dispensou a apresentação de CND passou a prevalecer.

Nota-se, desse modo, que o óbice apresentado pelo registrador não se sustenta.

Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro da escritura pública de dação em pagamento.

São Paulo, data registrada no sistema.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 07.11.2024 – SP)