1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Dúvida – Instituição de bem de família convencional – Imóvel gravado com alienação fiduciária – Violação aos princípios da continuidade e da disponibilidade – Impossibilidade de registro.

Sentença 

Processo nº: 1146173-30.2024.8.26.0100

Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis

Suscitante: 18º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

Suscitado: Flavia Abreu Ribeiro

Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta

Vistos.

Trata-se de dúvida suscitada pelo 18º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Flávia Abreu Ribeiro, diante de negativa em se proceder ao registro de escritura pública de instituição de bem de família voluntário, envolvendo o imóvel objeto da matrícula n. 131.032 daquela serventia.

O Oficial Interino informa que o título consiste em “escritura pública de constituição de bem de família” lavrada pelo 19º Tabelião de Notas de São Paulo (livro n. 4.827, fls. 179/183), a ser instituído sobre os direitos aquisitivos do imóvel da matrícula n. 131.032; que a qualificação negativa foi motivada pela inobservância dos princípio da continuidade e da disponibilidade (artigos 195 e 237 da Lei de Registros Públicos), tendo em vista constar da matrícula que o imóvel foi adquirido pela suscitada e seu marido, Cláudio Ribeiro da Silva Neto, por meio de instrumento particular datado de 26 de novembro de 2014, e alienado fiduciariamente ao Banco Santander (Brasil) S/A, com fundamento no artigo 23 da Lei Federal n. 9.514/1997, sob R. 10, situação que permanece inalterada até a presente data; que o bem de família convencional tem previsão nos artigos 1.711 e seguintes, do Código Civil, e para sua efetivação há necessidade da observância de formalidades: lavratura de escritura pública ou testamento em Tabelião de Notas, instauração do procedimento administrativo próprio (artigo 260 da Lei de Registros Públicos), além do posterior registro no Registro de Imóveis competente; que no caso, o imóvel foi alienado fiduciariamente em garantia para o Banco Santander (Brasil) S/A e, nos termos do artigo 22 da Lei n. 9.514/1997, após a contratação da alienação fiduciária, o credor fiduciário detém a propriedade fiduciária, o domínio resolúvel e a posse indireta sobre o bem, ao passo que o devedor fiduciante possui a posse direta, de modo que seu direito de propriedade plena dar-se-á apenas após o implemento da condição resolutiva; que, por esta razão, a instituição de bem de família convencional em imóvel que não pertence ao instituidor configura ofensa ao princípio da disponibilidade; que, como a propriedade plena do imóvel em nome do instituidor é requisito essencial para instituição do bem de família convencional, também não se vislumbra o encadeamento subjetivo exigido para o atendimento ao princípio da continuidade, insculpido nos artigos 195 e 237 da Lei n. 6.015/1973 (fls. 01/08).

Documentos vieram às fls. 09/68.

Em manifestação dirigida ao Oficial, a parte suscitada aduz que o imóvel em comento é objeto de contrato de financiamento imobiliário, porém, é o único bem de propriedade da requerente e serve de habitação de sua família; que, segundo entendimento do STJ, a regra da impenhorabilidade do bem de família também abrange o imóvel em fase de aquisição decorrentes de financiamento bancário com garantia de alienação fiduciária e, portanto, o registro pretendido pode ser efetivado; que a intenção do devedor fiduciante, ao afetar o imóvel ao contrato de alienação fiduciária, é apenas garantir o adimplemento do contrato de financiamento a que se vincula, e não transferir, ao fim, para o credor fiduciário, a propriedade plena do bem, como sucede na compra e venda; que se este for o único imóvel utilizado para moradia do devedor e/ou sua família, enquanto vigente esta condição, deve incidir a garantia da impenhorabilidade prevista no artigo 1º da Lei n. 8.009/1990; que, assim, o óbice deve ser afastado (fls. 19/22).

Intimada, a parte suscitada não apresentou impugnação nos autos (fls. 69).

O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção do óbice (fls. 73/75).

É o relatório.

Fundamento e Decido.

De proêmio, cumpre ressaltar que o Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.

No sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Por isso, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.

É o que dispõe o item 117, Cap. XX, das NSCGJ: “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.

No mérito, a dúvida é procedente.

No caso concreto, a parte pretende o registro de escritura pública de instituição de bem de família formalizada após a alienação fiduciária do bem imóvel.

O artigo 22 da Lei n. 9.514/97 trata do instituto da alienação fiduciária, nos seguintes termos:

“Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.”

Como se vê, com a constituição da alienação fiduciária, a propriedade do imóvel é transferida para o credor, ficando o devedor na posse direta do bem durante o período em que vigorar o financiamento. Logo, o credor fiduciário adquire a propriedade de modo resolúvel, restrito e limitado, e quando adimplida a dívida, a propriedade retorna ao devedor fiduciante.

A regra da não oponibilidade da impenhorabilidade do bem de família ao credor é aplicada ao bem de família legal, em havendo inadimplemento da dívida e consequente leilão, nos termos da Lei nº 8.009/90.

Contudo, a situação examinada versa sobre instituição de bem de família convencional ou voluntário, incidindo as regras estabelecidas no artigo 1.711 do Código Civil:

“Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.”

De fato, o registro de escritura pública de instituição de bem de família formalizada após a alienação fiduciária do bem imóvel importaria violação aos princípios registrários da continuidade e da disponibilidade.

De acordo com os ensinamentos de Afrânio de Carvalho, relativos ao princípio da continuidade: ” O princípio da continuidade, que se apóia no de especialidade, quer dizer que, em relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia, de titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam umas das outras, asseguram a preexistência do imóvel no patrimônio do transferente” (Registro de Imóveis, Editora Forense, 4ª Ed., p. 254).

Ou seja, o título deve estar em conformidade com o quanto inscrito no registro.

Por seu turno, a disponibilidade é um atributo do direito real, de modo que somente poderá alienar ou ceder quem tiver disponibilidade, ou seja, quem for proprietário ou titular do direito.

No caso, houve o registro na matrícula n. 131.032, sob o R. 10, da alienação fiduciária, constituindo como proprietário do imóvel o Banco Santander (Brasil) S/A.

Bem por isso, não pode a suscitada requerer o registro do bem que não tem a propriedade, detendo apenas a posse direta. Necessário, por conseguinte, que o titular de domínio seja o mesmo no título apresentado a registro e no registro de imóveis, sob pena de violação ao princípio da continuidade.

Em termos diversos, justamente pela falta de identificação das informações constantes do título apresentado com o conteúdo da matrícula é que a qualificação negativa foi acertada, tudo em respeito ao princípio da continuidade registrária citada (artigos 195 e 237 da Lei n. 6.015/1973):

“Art. 195 Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.”

“Art. 237 Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro.”

Nesse mesmo sentido, o item 47, Cap. XX, das NSCGJ, assim preconiza:

“47. Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro, observando-se as exceções legais no que se refere às regularizações fundiárias.”

Situação semelhante foi analisada pelo E. Conselho Superior da Magistratura, na Apelação Cível n. 003981-64.2011.8.26.0100, da lavra do então Corregedor Geral da Justiças Dr. José Renato Nalini:

“Registro de imóveis  Instituição de bem de família voluntário pelos proprietários – Registro da escritura pública depois da alienação fiduciária do bem imóvel dado em garantia de confissão de dívida – Negócio jurídico fiduciário  Registro do título recusado  Dúvida – Procedente  Recurso improvido.”

Destarte, acertado o óbice apontado pelo Oficial Interino.

Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida suscitada, para manter o óbice registrário.

Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.

Oportunamente, ao arquivo.

P.R.I.C.

São Paulo, 03 de outubro de 2024.

Renata Pinto Lima Zanetta

Juíza de Direito 

(DJe de 07.10.2024 – SP)