1ª VRP|SP: Dúvida Registral – Usucapião Extrajudicial – Imóvel com averbação de bloqueio judicial decorrente de ação anulatória – Controvérsia sobre a origem e natureza da posse – Configuração de conflito em relação ao imóvel – Impossibilidade de processamento pela via administrativa.
Sentença
Processo nº: 1179023-40.2024.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Requerente: 11º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo
Requerido: Mario Americo Ramos Bruno e outro
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida suscitada pelo 11º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, a requerimento de Mario Américo Ramos Bruno e Paulo Estevão Ramos Bruno, à vista de indeferimento do procedimento pelo reconhecimento extrajudicial de usucapião do imóvel matriculado sob n. 251.551 daquela serventia (prenotação n. 1.511.964).
O Oficial informa que Mário Américo Ramos Bruno e Paulo Estevão Ramos Bruno apresentaram pedido de reconhecimento de usucapião extrajudicial, fundado nos artigos 1.238 e 1.243 do Código Civil, do imóvel objeto da matrícula n. 251.551 da serventia, que se encontra sob a titularidade dominial de João Bruno Netto e Vanda do Nascimento Ramos Bruno (genitores dos requerentes); que consta em referida matrícula, averbada sob n. 08 (Av. 08/251.551), decisão proferida pelo juizo da 45ª Vara Cível do Foro Central da Comarca desta Capital nos autos da ação declaratória de nulidade autuada sob n. 1120479-64.2021.8.26.0100, que determinou o bloqueio de transferência de aludido imóvel; que, em consulta a referido processo, verificou que existem peticionamentos relativos a contestação e réplica à contestação oferecidas em 27.03.2024 e 15.05.2024; que, de qualquer modo, o imóvel acha-se registrado sob a titularidade dominial dos genitores dos requerentes desde 24.07.2007, sendo que o pai deles, João Bruno Netto, veio a falecer em 2022 e não se vislumbra a existência de óbice à correta escrituração da partilha do espólio de João Bruno Netto; que, ante todo o exposto, pautado nos critérios da prudência e da razoabilidade, considerou por bem indeferir o pedido de usucapião extrajudicial; que foi apresentado, em 07.08.2024, pedido de reconsideração do indeferimento, que não foi aceito, sendo expedida nova nota, mantendo o indeferimento do pedido; que, em face do indeferimento do pedido, os interessados requereram a suscitação da presente dúvida (fls. 01/04).
Documentos e cópia do procedimento extrajudicial foram juntados às fls. 05/156.
Em manifestação dirigida ao Oficial, e em impugnação, a parte suscitada aduz que a existência de averbação de bloqueio judicial na matrícula e de ação judicial declaratória de nulidade de escritura pública não obstam o reconhecimento da usucapião extrajudicial do bem; que o artigo 14 do Provimento CNJ n. 65/2017 já previa que a existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel não impede o reconhecimento extrajudicial da usucapião, de modo que a averbação de bloqueio judicial na matrícula do imóvel não seria impeditivo para a usucapião; que a ação de nulidade mencionada pelo Oficial (processo n. 1120479-64.2021.8.26.0100), movida pelo Espólio de Zaida Pereira Peruche, foi julgada improcedente por sentença datada de 29.10.2024 (fls. 163/172). Juntou documentos (fls. 173/176).
O Ministério Público ofertou parecer, pugnando pela manutenção da negativa ao procedimento extrajudicial (fls. 180/181).
É o relatório.
Fundamento e Decido.
De proêmio, é importante consignar que a existência de outras vias de tutela não exclui a da usucapião administrativa, a qual segue rito próprio, com regulação pelo artigo 216-A da Lei n. 6.015/73, pelo Provimento CNJ n. 149/23 e pela Seção XII do Cap. XX das NSCGJ.
Assim, como a parte interessada optou pela usucapião administrativa para alcançar a propriedade do imóvel, a análise deve ser feita dentro de seus requisitos normativos.
Neste sentido, decidiu o Conselho Superior da Magistratura na Apelação Cível n. 1004044-52.2020.8.26.0161, com relatoria do então Corregedor Geral da Justiça, Des. Ricardo Anafe (destaque nosso):
“Usucapião Extrajudicial direito que deve ser declarado por ação judicial ou expediente administrativo nas hipóteses em que os pressupostos legais estejam rigorosamente cumpridos possibilidade de regularização do imóvel de maneira diversa à usucapião que não impede esta última, inclusive por procedimento administrativo recusa indevida quanto ao processamento do pedido dúvida improcedente – Recurso provido com determinação para prosseguimento do procedimento de usucapião Extrajudicial”.
A presente dúvida decorre de impugnação da própria parte requerente após rejeição do seu requerimento pelo Oficial, a qual não foi reconsiderada, com prosseguimento nos termos do item 421.4, Cap. XX, das NSCGJ:
“421.4. A rejeição do requerimento poderá ser impugnada pelo requerente no prazo de quinze dias, perante o oficial de registro de imóveis, que poderá reanalisar o pedido e reconsiderar a nota de rejeição no mesmo prazo ou suscitará dúvida registral nos moldes dos art. 198 e seguintes da LRP e item 39 deste capítulo”.
No mérito, a dúvida é procedente.
No caso concreto, a certidão atualizada da matrícula n. 251.551, do 11º Registro de Imóveis da Capital, revela que o imóvel usucapiendo encontra-se registrado sob a titularidade dominial de João Bruno Netto e Vanda do Nascimento Ramos Bruno, genitores dos requerentes.
Também consta da matrícula a averbação n. 08, datada de 22 de julho de 2022, referente ao bloqueio judicial determinado pelo Juízo da 45ª Vara Cível do Foro Central da Comarca desta Capital, no âmbito da ação declaratória de nulidade movida pelo espólio de Zaida Pereira Peruche em face de João Bruno Netto e Vanda do Nascimento Ramos Bruno (autos de n. 1120479-64.2021.8.26.0100).
Com efeito, enquanto não cancelado, o registro produz todos os seus efeitos legais, ainda que, como dito, por outra maneira, haja prova de que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido, nos exatos termos do art. 252 da Lei de Registros Públicos:
“Art. 252 – O registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido.”
Diante da existência de averbação na matrícula do bloqueio judicial determinado no curso de uma ação anulatória de título aquisitivo do imóvel, fica clara a controvérsia acerca da origem e a natureza da posse e dos demais requisitos legais para a declaração de domínio por usucapião uma vez que o objeto tornou-se litigioso, circunstância suficientemente apta para obstar o procedimento de usucapião extrajudicial.
Desse modo, resta evidente a configuração de conflito em relação ao imóvel (fatos controvertidos), o que impede o prosseguimento do processamento do pedido de usucapião na via extrajudicial.
Além disso, constata-se que os requerentes são filhos dos titulares de domínio.
Com efeito, a usucapião não pode servir de alternativa imediata à transmissão regular do domínio, sob pena de se afastar, por via oblíqua, eventual incidência tributária (imposto de transmissão), bem como os vínculos decorrentes da aquisição da propriedade, o que não pode ser admitido. Assim, na espécie, não pode ser acolhida a soma da posse exercida pelo antecessor proprietário.
É exatamente o que prescrevem os itens 419 e subitens, do Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo: a via da usucapião somente se justifica quando inviável a escrituração ordinária das transações, confira-se (nossos destaques):
“419. Considera-se outorgado o consentimento mencionado no Caput do item 418. deste provimento, dispensada a notificação, quando for apresentado pelo requerente justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova da quitação das obrigações e de certidão do distribuidor cível expedida até trinta dias antes do requerimento que demonstre a inexistência de ação judicial contra o requerente ou contra seus cessionários envolvendo o imóvel usucapiendo.
(…)
419.2. Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei.
(…)
419.4. A análise dos documentos citados neste item e em seus subitens será realizada pelo oficial de registro de imóveis, que certificará no procedimento, de maneira fundamentada, conforme seu livre convencimento, acerca da verossimilhança e idoneidade do conteúdo e da inexistência de lide relativa ao negócio objeto de regularização pela usucapião.“
Do mesmo modo, dispõe o artigo 410, § 2º, do Provimento CNJ n. 149/2023 (destaque nosso):
“Art. 410. Considera-se outorgado o consentimento exigido nesta Seção, dispensada a notificação, quando for apresentado pelo requerente justo título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica com o titular registral, acompanhado de prova da quitação das obrigações e de certidão do distribuidor cível expedida até 30 dias antes do requerimento que demonstre a inexistência de ação judicial contra o requerente ou contra seus cessionários envolvendo o imóvel usucapiendo.
§2º. Em qualquer dos casos, deverá ser justificado o óbice à correta escrituração das transações para evitar o uso da usucapião como meio de burla dos requisitos legais do sistema notarial e registral e da tributação dos impostos de transmissão incidentes sobre os negócios imobiliários, devendo registrador alertar o requerente e as testemunhas de que a prestação de declaração falsa na referida justificação configurará crime de falsidade, sujeito às penas da lei”.
No presente caso, à evidência, não se apresentou qualquer óbice efetivo à correta escrituração da transação pelos meios ordinários.
Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a dúvida para manter a decisão de indeferimento do requerimento de usucapião extrajudicial.
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 11 de dezembro de 2024.
Renata Pinto Lima Zanetta
Juíza de Direito
(DJe de 13.12.2024 – SP)