1ª VRP|SP: Registro de Imóveis – Formal de Partilha – Exigência de qualificação completa de herdeira ausente – Princípio da especialidade subjetiva – Excepcionalidade na qualificação por filiação – Incindibilidade do título – Improcedência da dúvida.
Sentença
Processo nº: 1183485-40.2024.8.26.0100
Classe – Assunto Dúvida – Registro de Imóveis
Suscitante: Samira Dourar Ahamin e outros
Suscitado: 12º Oficio de Registro de Imoveis da Capital
Juíza de Direito: Dra. Renata Pinto Lima Zanetta
Vistos.
Trata-se de dúvida inversa suscitada por Samira Dourar Ahamin, Dunia Dourar Ahamin e Samia Dourar Ahamin em face do Oficial do 12º Registro de Imóveis de São Paulo, diante de negativa em se proceder ao registro de formal de partilha dos bens deixados pelo falecimento de Dourar Ahmin (processo n. 1009388-97.2014.8.26.0005), envolvendo o imóvel objeto da matrícula n. 152.539 daquela serventia.
Sustentam que são filhas e herdeiras de Creusa Ahamim, falecida em 11 de janeiro de 2020, e de Dourar Ahamim, falecido aos 17 de maio de 2008; que, uma vez inventariados os bens dos “de cujus”, apresentaram o título a registro; que o mesmo foi devolvido com exigência para qualificação da herdeira Fairuz Dourar Mustafá Ahmin, filha de um relacionamento anterior de Dourar Ahmin; que, ao que se sabe, Fairuz se mudou para o Estado da Palestina ainda criança e as requerentes perderam o contato com a irmã paterna, de modo que a exigência não pode ser atendida; que, nestes termos, pedem o afastamento do óbice para que se promova o registro do formal de partilha com relação aos seus quinhões, visto que Fairuz encontra-se em local incerto e não sabido (fls. 01/11).
Documentos vieram às fls. 12/62.
O Oficial se manifestou, informando que o acesso ao fólio real do título foi adiado com a exigência de que conste a qualificação completa da herdeira Fairuz Dourar Mustafá Ahamin; que, em respeito ao princípio da especialidade subjetiva, a qualificação do proprietário, quando se tratar de pessoa física, referirá ao seu nome civil completo, sem abreviaturas, nacionalidade, estado civil, profissão, residência e domicílio, número de inscrição no CPF, número do RG de sua cédula de identidade ou, à falta deste, sua filiação e, sendo casado, o nome e qualificação do cônjuge e o regime de bens no casamento, bem como se este se realizou antes ou depois da Lei n. 6.515/1977, de acordo com o artigo 176, § 1º, inciso III, “a” da Lei n. 6.015/1973, e item 61, Cap. XX, da NSCGJ (fls. 70/72). Juntou documentos (fls. 73/467).
O Ministério Público ofertou parecer, opinando pela manutenção do óbice registrário (fls. 472/474).
É o relatório.
Fundamento e Decido.
O Registrador dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
No sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Assim, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
É o que prevê o item 117, Cap. XX, das NSCGJ: “Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais“.
Os títulos judiciais não estão isentos de qualificação para ingresso no fólio real.
O E. Conselho Superior da Magistratura já decidiu que a qualificação negativa não caracteriza desobediência ou descumprimento de decisão judicial (Ap. Cível n. 413-6/7). Neste sentido, também a Ap. Cível n. 464-6/9, de São José do Rio Preto:
“Apesar de se tratar de título judicial, está ele sujeito à qualificação registrária. O fato de tratar-se o título de mandado judicial não o torna imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal. O exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial, mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus dados com o registro e a sua formalização instrumental”.
Logo, não há dúvidas de que a origem judicial não basta para garantir ingresso automático dos títulos no fólio real, cabendo ao oficial qualificá-los conforme os princípios e as regras que regem a atividade registral.
No mérito, a dúvida é improcedente.
O artigo 176 da Lei de Registros Públicos exige qualificação adequada do proprietário (nome, domicílio e nacionalidade), sendo que, em se tratando de pessoa física, deverá haver indicação de estado civil, profissão, número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de identidade.
Para casos de dificuldade na obtenção de dados personalíssimos dos parentes com o qual se perdeu o contato há muito tempo, como no caso, a regra do artigo 176, §1º, III, 2, “a”, da Lei de Registros Públicos, traz um abrandamento da interpretação do princípio da especialidade subjetiva ao admitir que, na falta dos números de RG e CPF, o herdeiro adquirente seja qualificado por sua filiação.
A filiação, por sua vez, é provada pela certidão do assento de nascimento registrado no Registro Civil, podendo-se admitir certidões de casamento e óbito, cujos registros são integrados ao do nascimento, conforme dispõem os artigos 1.603 do Código Civil e 106 da Lei de Registros Públicos.
No caso concreto, a herdeira Fairuz Dourar Mustafá Ahamin pode ser qualificada com base na filiação (Dourar Ahmin e Jalila Mohamad) constante de sua certidão de nascimento (fls. 21), em caráter excepcional.
Foi justamente com base nesta informação que a partilha pôde ser homologada.
Assim e ainda que não se conheça a qualificação completa da herdeira indicada, visando possibilitar regularização da propriedade, concluo como possível o ingresso do título, notadamente à vista da homologação judicial da partilha após reconhecimento sobre a impossibilidade de identificação da herdeira em questão, cuja filiação pode ser indicada (certidão de nascimento de fls. 21, citação por edital de fls. 184 nos autos do processo n. 1009388-07.2014.8.26.0005).
Vale destacar, por fim, que o ingresso também se justifica pela incindibilidade do título.
Ora, referindo-se ele a imóveis autônomos, não é possível o registro parcial ou isolado de apenas algumas das transmissões determinadas na partilha, pois a cindibilidade dos sujeitos presentes em um mesmo título infringe o princípio da continuidade registral.
Essa questão já foi apreciada em caso análogo pelo E. Conselho Superior da Magistratura, de relatoria do Des. Luiz Tâmbara (Ap. Cível n. 96.477-0/3):
“É sabido ser o formal de partilha um título de natureza judicial que, após julgamento dotado de definitividade, instrumentaliza a atribuição de quinhões aos sucessores e, em consequência, confere eficácia à extinção de um estado de indivisão patrimonial. Decorre da própria essência do ato, a persistência de transferências inseparáveis quando incidentes sobre um mesmo imóvel, pois não há como manter um estado de indivisão limitado, ou seja, parcela de um mesmo bem foi atribuída a um sucessor e o restante permanece, fictamente, compondo um monte já desfeito. A inscrição analisada ostenta, por isso, natureza múltipla, não se admitindo o registro isolado de apenas uma das transmissões, ainda que só um dos sucessores requeira o registro.
Há, em outras palavras, uma interdependência das estipulações constantes do título judicial de maneira que todas devem ser levadas, acopladamente, ao fólio real.
O registro isolado poderia ser admitido se um mesmo formal reunisse atos não conjugados pelo seu vínculo de interrelacionamento, mas justapostos, independentes entre si e separáveis um do outro.
Tal hipótese, na espécie, porém, não se materializa, em se cuidando de um formal de partilha relativo a partes ideais de um mesmo imóvel”.
Neste sentido, este juízo já decidiu em casos semelhantes, como o dos autos do processo n. 1154634-25.2023.8.26.0100
Diante do exposto, JULGO IMPROCEDENTE a dúvida suscitada para afastar o óbice apontado na nota devolutiva do título, anotando-se a filiação da herdeira Fairuz Dourar Mustafá Ahamin consoante os dados de sua certidão de nascimento (fls. 21).
Deste procedimento não decorrem custas, despesas processuais ou honorários advocatícios.
Oportunamente, ao arquivo.
P.R.I.C.
São Paulo, 17 de dezembro de 2024.
Renata Pinto Lima Zanetta
Juíza de Direito
(DJe de 18.12.2024 – SP)