CSM|SP: Apelação Cível – Registro de Imóveis – Dúvida Registral – Recusa de registro de escritura pública de compra e venda, com abertura de matrícula – Necessidade de retificação da transcrição original – A recusa fundamenta-se nos princípios da especialidade objetiva, da disponibilidade e da segurança jurídica – Precedentes e jurisprudência do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – Recurso improvido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1002789-69.2024.8.26.0565, da Comarca de São Caetano do Sul, em que é apelante MARIA HELENA ZANINI, é apelado 2º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO CAETANO DO SUL.
ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento ao recurso, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), ADEMIR BENEDITO E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 16 de dezembro de 2024.
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
APELAÇÃO CÍVEL nº 1002789-69.2024.8.26.0565
APELANTE: Maria Helena Zanini
APELADO: 2º Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São Caetano do Sul
VOTO Nº 43.654
Registro de imóveis – Dúvida – Recusa de registro de escritura pública de compra e venda, com abertura de matrícula.
I. Caso em exame
1. Trata-se de recurso interposto pela recusa de registro de escritura pública de compra e venda, com abertura de matrícula, em razão da descrição insuficiente do imóvel, que se encontra em área maior, objeto de transcrição com marcos imprecisos e desfalques (perda das características originais).
2. Divergência entre a descrição do título e a da transcrição que impede o registro, pelo que exigida apuração da área maior remanescente para a individualização correta.
3. Apresentação, em verdade, de duas escrituras de compra e venda, com qualificação incompleta.
II. Questão em discussão
4. A questão em discussão consiste em saber se a descrição insuficiente da área maior em que inserido o imóvel e a divergência entre o título e a transcrição são impeditivos do registro.
III. Razões de decidir
5. A recusa de registro funda-se nos princípios da especialidade objetiva, da disponibilidade e da segurança jurídica.
6. Necessidade de apuração da área maior remanescente para individualização correta do imóvel, que está nela inserido.
7. Necessidade de exame exaustivo do título apresentado, o qual é formado por todos os documentos que o integram, formulando-se exigências de uma só vez e encaminhando-se as razões da dúvida e todo o seu conteúdo ao juízo corregedor para revisão, sob pena de responsabilidade funcional (artigo 198 da Lei de Registros Públicos e itens 38 e 39, Capítulo XX, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça).
IV. Dispositivo e tese
9. Recurso a que se nega provimento.
10. Tese de julgamento: “1. A descrição insuficiente da área maior em que inserido o imóvel e a divergência entre a transcrição e o título são óbices ao registro. 2. Necessidade de perfeita descrição do imóvel de modo a permitir sua exata localização e individualização”.
Legislação e Jurisprudência Relevantes Citadas:
– Lei n. 6.015/1973, arts. 176, § 1º, II, § 2º, § 15, 225, § 2º, e 236.
– TJSP; Apelação Cível 0005615-39.2015.8.26.0068; TJSP; Apelação Cível 1000035-06.2018.8.26.0068; TJSP; Apelação Cível 1086003-10.2015.8.26.0100.
Trata-se de apelação interposta por Maria Helena Zanini contra a r. sentença de fls. 61/63, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 2º Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de São Caetano do Sul, que manteve a recusa em se proceder ao registro do título apresentado, o qual envolve o imóvel objeto da transcrição n. 6.747 do 9º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo (prenotação n. 165.153 – fls. 01/04).
O Oficial informou que se apresentou a registro escritura pública de compra e venda lavrada em 01 de agosto de 1962 no Livro 589, p. 153/155, pelo 17º Tabelião de Notas da Comarca de São Paulo, a qual indica que o espólio de Francisco Rodrigues Seckler, representado pela inventariante Brazilia Teixeira Seckler, alienou a José Pereira de Carvalho imóvel consistente em um lote de terreno, situado à projetada travessa Adelina n. 14, posteriormente rua Becha e atualmente rua Padre Mororó, na Vila São José, bairro Cerâmica, antigo Bairro dos Meninos, medindo 10,00m de frente para a aludida rua Padre Mororó, por 60,00m da frente aos fundos, em ambos os lados, tendo nos fundos as mesmas metragens da frente, encerrando a área de 600,00m2; que tal escritura foi devolvida com exigências, pois o imóvel, com origem na transcrição n. 6.747 do 9º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo, não possui descrição suficiente para abertura de matrícula, conforme exige o artigo 176 da Lei n. 6.015/73 (protocolo n. 162.666, de 30 de outubro de 2023, prazo de validade: 01/12/2023 – fls. 27/28); que a escritura indica que o imóvel se refere à 6ª parte do sítio denominado “Cercado de Dentro”, mencionando apenas as confrontações e omitindo as medidas perimetrais e a área superficial do terreno, além de não descrever adequadamente as vias públicas abertas (ruas e travessas), o que inviabiliza o controle da disponibilidade qualitativa e quantitativa; que a certidão negativa de ônus, expedida pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de Santo André, demonstra que houve parcelamento da área (alienações, tendo como origem a transcrição n. 6.747).
O Oficial informou, ainda, que a regularização do imóvel depende do registro de outra escritura de venda e compra, a qual foi lavrada em 15 de outubro de 1969 no Livro 25, p. 75, do 2º Tabelionato de Notas de São Caetano do Sul, pela qual o espólio de José Pereira de Carvalho alienou a Manoela Marques Zanini o prédio residencial situado na rua Padre Mororó, n. 481, e seu respectivo terreno com área de 505,00m2.
Tal escritura foi apresentada quando da reentrada do título, mas ainda não qualificada (protocolo n. 165.153 – fl. 04, dúvida suscitada pelo Oficial em 15 de abril de 2024); que os proprietários promoveram o arruamento da área, mas não depositaram a planta, com aprovação pela Prefeitura Municipal e demonstração das divisões de lotes e quadras e abertura de ruas, para averbação à margem da referida transcrição; que a ausência desses documentos impede a abertura da matrícula, sob pena de se comprometer o controle das disponibilidades qualitativa e quantitativa da área maior, certo que, sem eles, não é possível verificar se ainda há área disponível considerando-se as alienações anteriores; que, em relação às matrículas abertas anteriormente para outros imóveis originários da mesma área maior, que inclui o terreno objeto do título recusado, os atos foram realizados porque, aparentemente, não havia desfalques que impedissem tais desmembramentos; que, devido aos desmembramentos já realizados, novos registros agora dependem da apuração do remanescente disponível; que o título, objeto da presente suscitação de dúvida, está prenotado na serventia sob n. 165.153, com arquivamento de seus documentos no original (fls. 01/04).
Esclareceu, por fim, que a parte não aceitou a negativa, insistindo que: i) luta para a regularização de sua moradia e tem em mãos documentos hábeis para tanto, pois apresentou duas escrituras lavradas por Tabeliães; ii) a escritura de 1962 contém as medidas perimetrais necessárias para abertura da matrícula, apresentando todas as informações sobre o imóvel, sendo que, na época, o Tabelião realizou exame rigoroso dos documentos apresentados, que serviram como base para a descrição detalhada do imóvel na escritura e; iii) a abertura da rua Padre Mororó se deu no ano de 1957, antes da lavratura da escritura, o que não interfere nas medidas do terreno.
A MM. Juíza Corregedora Permanente considerou imprescindível a apresentação de documentos suficientes para identificação completa e perfeita do imóvel, como medidas perimetrais, área superficial e vias públicas, tudo em conformidade com o artigo 176, § 1º, inciso II, item 3, b, da Lei n. 6.015/73; que a falta inviabiliza o registro e a abertura de matrícula; que a parte não apresentou prova concreta sobre a viabilidade do ingresso, o qual, se feito, impossibilitaria controle da disponibilidade e ofenderia o princípio da especialidade objetiva (fls. 61/63).
A parte apelante sustenta que apresentou as escrituras públicas de compra e venda referentes ao imóvel situado na rua Padre Mororó, n. 183, no bairro São José, em São Caetano do Sul, com origem na transcrição n. 6.747; que tais escrituras, lavradas em 01 de agosto de 1962 e 15 de outubro de 1969, contêm todas as informações necessárias para a abertura de matrícula, como localização, medidas e confrontações; que o Oficial reconheceu a presença dessas informações no item 1 da inicial da suscitação de dúvida, mas manteve a recusa em proceder à abertura da matrícula sob a alegação de que a certidão da transcrição n. 6.747 do 9º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo não contém as medidas perimetrais e a área superficial do terreno, além de não mencionar a área atingida pela abertura de vias públicas, o que torna necessários outros meios jurídicos para regularização da propriedade; que a recusa é indevida, pois a matrícula deve ser aberta com base nas escrituras públicas que contêm todos os requisitos exigidos pela Lei n. 6.015/73, lavradas por Tabelião com fé pública, e não no conteúdo da transcrição; que tem direito à abertura da matrícula com base nas informações constantes nas escrituras, podendo, posteriormente, averbar eventuais alterações, como a nomenclatura de vias e a numeração (certidão emitida pela Prefeitura Municipal); que o § 15 do artigo 176 da Lei n. 6.015/73 permite a abertura de matrícula quando há segurança quanto à identificação do imóvel e ainda que ausentes elementos de especialidade objetiva ou subjetiva; que a negativa do Oficial é abusiva e contrária à legislação aplicável, especialmente porque não solicitou a abertura da matrícula com base na transcrição n. 6.747, mas sim no registro das escrituras públicas lavradas regularmente pelo 17º Tabelião de Notas de São Paulo e pelo 2º Tabelião de Notas de São Caetano do Sul com todas as informações exigidas por lei; que, mesmo que se justificasse a observância da transcrição, que entende já dispensada pela lavratura das escrituras, o parágrafo único do artigo 171 da Lei n. 6.015/73 fundamenta sua pretensão à abertura da matrícula e ao registro das escrituras apresentadas (fls. 66/72).
O Oficial se manifestou às fls. 77/78.
A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 86/88).
Por força da decisão de fls. 89/90, o feito foi redistribuído a este C. Conselho Superior da Magistratura.
É o relatório.
Inicialmente cumpre ressaltar que o Registrador, titular ou interino, dispõe de autonomia e independência no exercício de suas atribuições, podendo recusar títulos que entender contrários à ordem jurídica e aos princípios que regem sua atividade (artigo 28 da Lei n. 8.935/1994), o que não se traduz como falha funcional.
De fato, no sistema registral, vigora o princípio da legalidade estrita, pelo qual somente se admite o ingresso de título que atenda aos ditames legais.
Por isso mesmo, o Oficial, quando da qualificação registral, perfaz exame dos elementos extrínsecos do título à luz dos princípios e das normas do sistema jurídico (aspectos formais), devendo obstar o ingresso daqueles que não se atenham aos limites da lei.
Neste sentido, o item 117 do Capítulo XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça (NSCGJ):
“Incumbe ao oficial impedir o registro de título que não satisfaça os requisitos exigidos pela lei, quer sejam consubstanciados em instrumento público ou particular, quer em atos judiciais”.
No mérito, o recurso não comporta provimento.
Vejamos os motivos.
No caso concreto, vê-se que, em verdade, foram levadas a registro duas escrituras públicas de compra e venda referentes ao imóvel situado na rua Padre Mororó, n. 183, no Bairro São José, São Caetano do Sul, com origem na transcrição n. 6.747, lavradas em 01 de agosto de 1962 e 15 de outubro de 1969 (protocolo n. 165.153 – razões da dúvida de fls. 01/04).
Sucede, porém que, ao que tudo indica a confusa explicação de fls. 01/04, a qual se refere inicialmente à prenotação anterior, de n. 162.666, para concluir que a dúvida é relativa à prenotação de n. 165.153, apenas a escritura pública de compra e venda lavrada em 01 de agosto de 1962 no Livro 589, p. 153/155, do 17º Tabelionato de Notas de São Paulo (fls. 23/26), foi qualificada negativamente pelo Oficial com remissão à nota de devolução expedida em 05/12/2023, protocolo n. 162.666, de 30/10/2023 (fls. 27/28):
“Foi apresentada para registro a escritura de venda e compra, lavrada ao 1º/08/1962, no 17º Tabelião de Notas São Paulo (capital), nas páginas 153/155, do livro 589, tendo por objeto o prédio 183, da Rua Padre Mororó, havido em área maior, pela transcrição nº 6.747 do 9º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo (capital).
O registro da escritura exige a prévia abertura da matrícula do imóvel, o que é feita nos termos do artigo 176 da Lei nº 6.015/73.
Da certidão de propriedade da transcrição nº 6.747, consta que, o Sr. Francisco Rodrigues Seckler, adquiriu uma 6ª parte do Sitio denominado Cercado de Dentro, mencionado apenas as confrontações, sem mencionar as medidas perimetrais e a área superficial do terreno (fl. 7).
Consta, ainda, a certidão, que a abertura de algumas vias públicas (ruas e travessas), sem descrever a área atingida nas aberturas das referidas vias públicas. A descrição do referido imóvel é precária, não sendo possível conhecer a sua figura geodésica.
Da certidão negativa de ônus, expedida pelo Primeiro Oficial de Registro de Imóveis de Santo André, descreve as transmissões de imóveis, tendo como origem a transcrição 6.747.
A ausência das medidas perimetrais do imóvel, descrito na transcrição nº 6.747, e das aberturas das vias públicas, feitas a margem da referida transcrição, impede que seja promovido o controle da disponibilidade qualitativa e quantitativa do imóvel.
Portanto, não é possível proceder a abertura do imóvel descrito na escritura de venda e compra, devendo o interessado obter o registro do presente imóvel, através de outros meios jurídicos, previsto na legislação brasileira”.
Em suas razões de dúvida, o Oficial também observou que a regularização da propriedade depende do registro da escritura de venda e compra lavrada em 15 de outubro de 1969, no livro 25, p. 75, do 2º Tabelião de Notas de São Caetano do Sul, no qual o Espólio de José Pereira de Carvalho alienou à Manoela Marques Zanini o prédio residencial situado à Rua Padre Mororó, n. 481, e seu respectivo terreno com área de 505,00 m², a qual foi apresentada, mas não analisada pela serventia.
Constata-se, assim, possível falha na qualificação, a qual, nos termos do artigo 198, caput, da Lei de Registros Públicos, e do item 38, Capítulo XX, das NSCGJ, deve ser completa e exaustiva, com apontamento de todas as exigências pertinentes ao título apresentado de uma única vez, título este que é composto por todos os documentos que o integram:
“Art. 198. Se houver exigência a ser satisfeita, ela será indicada pelo oficial por escrito, dentro do prazo previsto no art. 188 desta Lei e de uma só vez, articuladamente, de forma clara e objetiva, com data, identificação e assinatura do oficial ou preposto responsável, (…)”.
“38. É dever do Registrador proceder ao exame exaustivo do título apresentado. Havendo exigências de qualquer ordem, deverão ser formuladas de uma só vez, por escrito, de forma clara e objetiva, em formato eletrônico ou papel timbrado do cartório, com identificação e assinatura do preposto responsável, para que o interessado possa satisfazê-las ou requerer a suscitação de dúvida ou procedimento administrativo”.
Constata-se, ainda, possível falha na instrução do presente feito à vista da falta de apresentação da nota devolutiva relativa ao protocolo vigente, com remissão à nota emitida em relação à prenotação anterior (artigo 198 da Lei n. 6.015/73 e item 39, Cap. XX, NSCGJ) :
“Art. 198. (…)
§1º O procedimento de dúvida observará o seguinte:
I – no Protocolo, o oficial anotará, à margem da prenotação, a ocorrência da dúvida; (…)
IV – certificado o cumprimento do disposto no inciso III deste parágrafo, serão remetidos eletronicamente ao juízo competente as razões da dúvida e o título”.
“39. Caso o interessado não se conforme com a exigência ou não lhe seja possível cumpri-la, o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, será remetido ao juízo competente para dirimi-la, observando-se o seguinte:
I – (…);
V – certificado o cumprimento dessas providências todas, o oficial remeterá, ao juízo competente, por meio eletrônio, digitalizando-os, o título, os documentos que o acompanham e as razões de dúvida, com certidão da matrícula, da transcrição ou da inscrição em questão.
(…)
X – a inobservância destas disposições ensejará a aplicação das penas previstas no artigo 32 da Lei n. 8.935, de 18 de novembro de 1994, nos termos estabelecidos pela Corregedoria Nacional de Justiça”.
De fato, conforme orientação firmada por este Conselho Superior da Magistratura, à vista da natureza administrativa do processo de dúvida, a qualificação é devolvida integralmente ao juízo corregedor.
Nesse sentido a Apelação Cível n.33.111-0/3, de relatoria do Des. Márcio Martins Bonilha, que destaca em seu voto:
“Inicialmente, cabe ressaltar a natureza administrativa do procedimento da dúvida, que não se sujeita, assim, aos efeitos da imutabilidade material da sentença. Portanto, nesse procedimento há a possibilidade de revisão dos atos praticados, seja pela própria autoridade administrativa, seja pela instância revisora, até mesmo de ofício (cfr. Apelação Cível 10.880-0/3, da Comarca de Sorocaba).
Não vai nisso qualquer ofensa ao direito de ampla defesa e muito menos se suprime um grau do julgamento administrativo. O exame qualificador do título, tanto pelo Oficial Delegado, como por seu Corregedor Permanente, ou até em sede recursal, deve necessariamente ser completo e exaustivo, visando escoimar todo e qualquer vício impeditivo de acesso ao cadastro predial.
Possível, portanto, a requalificação do título nesta sede, ainda que de ofício, podendo ser levantados óbices até o momento não arguidos, ou ser reexaminado fundamento da sentença, até para alteração de sua parte dispositiva”.
Na mesma linha: CSMSP – Apelação Cível: 1006711-57.2017.8.26.0309; Data de Julgamento: 28/03/2018; Data DJ: 07/05/2018; Relator: Des. Geraldo Francisco Pinheiro Franco; CSMSP – Apelação: 1008593-69.2019.8.26.0152; Data de Julgamento: 16/03/2020; Data DJ: 14/04/2020; Relator: Des. Ricardo Mair Anafe; CSMSP – Apelação Cível : 1024566-08.2020.8.26.0224; Data de Julgamento: 15/04/2021; Data DJ: 07/05/2021; Relator Des. Ricardo Mair Anafe.
Vejamos, então, as regras aplicáveis à hipótese.
Segundo estabelece o artigo 176, § 1º, inciso II, item 3, b, da Lei n. 6.015/73:
“Art. 176 – O Livro nº 2 – Registro Geral – será destinado, à matrícula dos imóveis e ao registro ou averbação dos atos relacionados no art. 167 e não atribuídos ao Livro nº 3.
§ 1º A escrituração do Livro nº 2 obedecerá às seguintes normas: (…)
II – são requisitos da matrícula: (…)
3) a identificação do imóvel, que será feita com indicação:
(…)
b – se urbano, de suas características e confrontações, localização, área, logradouro, número e de sua designação cadastral, se houver”.
Na forma do artigo 236 da mesma lei, “nenhum registro poderá ser feito sem que o imóvel a que se referir esteja matriculado”.
Como o imóvel a que se refere o título apresentado ainda é objeto de transcrição, para seu registro, há necessidade de abertura de matrícula, o que envolve o cumprimento dos requisitos legais.
Não se ignora que as escrituras remontam à década de 60, época em que não havia o rigor legal de hoje quanto à precisão do conteúdo do ato de registro, o que explica o motivo das omissões levantadas pelo Registrador.
Ciente desta circunstância, o legislador, ao editar a Lei n. 6.015/73, previu a regra de transição disposta no § 2º do art. 176:
“§2° Para a matrícula e registro das escrituras e partilhas, lavradas ou homologadas na vigência do Decreto n° 4.857, de 9 de novembro de 1939, não serão observadas as exigências deste artigo, devendo tais atos obedecer ao disposto na legislação anterior”.
Não se ignora, ainda, o disposto no § 15 do artigo 176 da Lei n. 6.015/73, segundo o qual:
“ainda que ausentes alguns elementos de especialidade objetiva ou subjetiva, desde que haja segurança quanto à localização e à identificação do imóvel, a critério do oficial, e que constem os dados do registro anterior, a matrícula poderá ser aberta nos termos do § 14 deste artigo”.
Contudo, a flexibilização legal somente se opera quando há segurança quanto à localização e à identificação do imóvel à vista dos dados do registro anterior, sob pena de ofensa à segurança jurídica que se espera do sistema.
No caso concreto, o Oficial já evidenciou que, pela divergência entre os dados constantes na transcrição, notadamente pelos inúmeros desfalques sofridos e pela falta de elementos de caracterização atuais, e os dados do título, não se pode ter certeza quanto à localização e à identificação do bem, o que confirma a necessidade de retificação da transcrição da área maior em que inserido.
De fato, a transcrição n. 6.747, de 30 de abril de 1942 do 9º Oficial de Registro de Imóveis da Capital (fls. 07/09 – área maior), descreve o imóvel como “uma 6ª parte do Sítio denominado Cercado de Dentro, cujo sítio tem as divisas seguintes em terras, confrontando: começa na ponte sobre o rio Dos Couros, (também chamado Meninos) na divisa entre São Paulo e São Bernardo e vão pela estrada de São Paulo a Santos, até os Barreiros; daí por diante vai por um valo e estrada de São Bernardo e São Caetano, dividindo com terras que foram do Mosteiro de São Bento, até o córrego Utinga e daí em diante por êste abaixo, dividindo com terras do mesmo mosteiro São Bento, até o rio dos Couros (também chamado meninos) e por êste acima até a ponte onde começou; no sítio descrito existem 08 casas, uma olaria, cercas e plantações que não pertencem ao espólio. Avaliada por 24:000$000- havido em 1.855. Sítio denominado “Cercado de Dentro”, em São Caetano, Distrito de SANTO ANDRÉ”.
Tal bem foi adquirido por Francisco Rodrigues Seckler por formal de partilha datado de 28 de novembro de 1941 e aditado em 30 de março de 1942, o qual foi extraído do inventário dos bens deixados por Anna Joaquina do Espírito Santo (2ª Vara da Família e das Sucessões de São Paulo).
Entretanto, em uma das escrituras levadas a registro (escritura de compra e venda lavrada em 01 de agosto de 1962 no Livro 589, p. 153/155, do 17º Tabelião de Notas de São Paulo), o imóvel está assim descrito: ”um lote de terreno, situado à projetada Travessa Adelina nº 14, posteriormente Rua Becha e atualmente rua Padre Mororó, na vila São José, bairro da Cerâmica, antigo bairro dos Meninos, no distrito e município de São Caetano do Sul, dêste Estado, medindo dez (10) metros de frente para a aludida Rua Padre Mororó, por sessenta (60) metros da frente dos fundos em ambos os lados, tendo nos fundos as mesmas metragem da frente, encerrando a área de seiscentos (600) metros quadrados, confinando do lado direito com propriedade de Serafim da Fonseca Martins, do lado esquerdo com propriedade de Ciro Adão e pelos fundos com um córrego; imóvel esse havido pelo de cujus, em maior área, por força da transcrição nº 6.747 do Registro de Imóveis da 9ª Circunscrição Imobiliária da Capital” (fls. 23/26).
A transcrição n. 6.747 indica as confrontações da “6ª parte adquirida do sítio denominado Cercado de Dentro”, mas nada menciona sobre as medidas perimetrais e a área superficial do terreno. Indica, ainda, a abertura de algumas vias públicas (ruas e travessas), mas sem descrever a área atingida pela abertura das referidas vias públicas.
A certidão expedida pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de Santo André, por sua vez, evidencia o parcelamento desta área ao certificar diversas alienações, todas transcritas no ano de 1954, ainda sob o regime do antigo Decreto n.4.857/39 (fls. 12/18).
Em razão destas alienações anteriores, que levaram a destaques ao longo do tempo, a transcrição n. 6.747 do 9º Oficial de Registro de Imóveis da Capital perdeu suas características originais.
Há notícia, ainda, e como já consignado, de arruamento da área, mas sem depósito da planta aprovada pela Prefeitura Municipal, que deveria demonstrar as divisões de lotes e quadras e a abertura das ruas.
Vê-se, assim, que a descrição atual da área original, maior, é absolutamente precária e impossibilita a sua configuração geodésica, o que traz consequências para a perfeita identificação do imóvel objeto das escrituras apresentadas e de sua concreta localização na área maior em questão, em que inserido.
A transcrição é o retrato de uma época, mas os sucessivos desfalques exigem que previamente se apure o remanescente para que se possa saber com um mínimo de segurança: a) se o título que se pretende registrar se encontra na força da transcrição original; b) caso positivo, onde se situa dentro da transcrição e qual a descrição da área remanescente.
O reflexo de tudo isso é a impossibilidade de controle efetivo da disponibilidade e da especialidade na transcrição de origem.
Tal dissonância impede o registro pretendido na forma do artigo 225, § 2º, da Lei de Registros Públicos:
“Consideram-se irregulares, para efeito de matrícula, os títulos nos quais a caracterização do imóvel não coincida com a que consta do registro anterior”.
Não há, em consequência, abuso ou equívoco na qualificação parcialmente efetuada pelo Oficial, o qual não pode se pautar apenas pelos dados constantes do título.
Em verdade, o processo registral envolve a coordenação entre o que já consta do registro e o que é apresentado a ingresso.
No que diz respeito ao princípio da especialidade, suas regras “impedem que sejam registrados títulos cujo objeto não seja exatamente aquele que consta do registro anterior, sendo necessário que a caracterização do objeto do negócio repita os elementos de descrição constantes do registro. Quando se tratar, por exemplo, de alienação de parte de um imóvel, necessário será que a descrição da parte permita localizá-la no todo e, ao mesmo tempo, contenha todos os elementos necessários à abertura da matrícula (conf. Jorge de Seabra Magalhães, ob. cit., p. 63)” (Narciso Orlandi Neto, Retificação do registro de imóveis, Sã Paulo: Editora Oliveira Mendes, 1997, p. 68).
Note-se que também há divergência entre as descrições que constam nas escrituras apresentadas (a lavrada em 1962 e a lavrada em 1969), as quais deveriam ser registradas em sequência para a regularização do domínio do imóvel.
Em outras palavras, também haveria obstáculo ao acesso da segunda escritura ao fólio real, mesmo que fosse possível a abertura de matrícula com base na descrição constante da primeira escritura.
É importante observar que o próprio alvará judicial transcrito pelo Tabelião que lavrou a segunda escritura de venda em 15 de outubro de 1969 revela que o imóvel adquirido em 1962 foi afetado por desapropriação que alterou sua descrição inicial, a tornar necessário aditamento para retificação, conforme consta à fl.35 destes autos:
“Adite-se o presente alvará, para que fique consignada a descrição exata da área a ser alienada, tudo nos termos da petição e despacho seguintes: (…) vem requerer a V. Excia a retificação do alvará expedido, para o fim de constar do mesmo a área alienada, abaixo descrita, excluindo-se daquela que consta do alvará, a parte que é objeto de desapropriação e que não foi vendida”.
Na sequência, o documento descreve um imóvel com medidas perimetrais divergentes daquelas que constaram na escritura lavrada em 1962 e que, de acordo com a escritura lavrada em 1969, encerra uma área de 505 metros quadrados.
Ou seja, existe evidência concreta de que a abertura de matrícula com base na descrição trazida na escritura lavrada em 1962 viola a área disponível, importando em sobreposição de área pública que foi objeto de desapropriação.
Tudo isso confirma a necessidade de retificação da área original, maior, para que, dentro dela, seja possível identificar o imóvel ora em debate, para posterior análise da possibilidade de ingresso das escrituras, tudo com a finalidade de regularização do domínio.
Dizendo de outro modo, ingresso imediato não é mesmo possível pela falta das medidas perimetrais e da área superficial do terreno da área maior remanescente em que inserido o imóvel objeto das escrituras, o qual, com isso, também não tem descrição completa. Falta indicação de marcos seguros que permitam levantar de onde será destacado o imóvel em questão, sob pena de ofensa aos princípios da especialidade objetiva e da disponibilidade.
Importante reiterar que tais princípios visam garantir a segurança jurídica dos registros públicos, evitando sobreposição de áreas ou incertezas quanto à titularidade e às dimensões do imóvel.
Nas palavras de Afrânio de Carvalho, “significa que toda inscrição deve recair sobre um objeto precisamente individuado”; para tanto, há requisitos a serem observados, dos quais depende a viabilidade da inscrição. “Esses requisitos são os dados geográficos que se exigem para individuar o imóvel, isto é, para determinar o espaço terrestre por ele ocupado” (Registro de Imóveis, 4ª edição, Rio de Janeiro: editora Forense, 1997, p. 203).
Por isso mesmo, o imóvel deve estar perfeitamente descrito de modo a permitir sua exata localização e individualização, sem se confundir com qualquer outro.
Não basta, por certo, a indicação das medidas perimetrais e da área do imóvel em escritura de compra e venda, tampouco a especificação de seus confrontantes. É que sem apuração da área remanescente em que inserido não é possível assegurar que a parte disponível coincide com o imóvel descrito no título, em todas as suas características.
A questão não é nova, sendo muitos os precedentes deste C. Conselho Superior da Magistratura:
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Escritura pública de venda e compra – Acesso negado – Lote destacado de área transcrita – Ausência de perfeita identificação tabular – Princípios da especialidade e da disponibilidade – Dúvida procedente – Recurso não provido” (Apelação nº 188-6/9, da Comarca de Barueri, Rel. Des. JOSÉ MÁRIO ANTONIO CARDINALE).
“REGISTRO DE IMÓVEIS – Dúvida julgada procedente – Transcrição imprecisa que compromete a segurança do sistema – Venda e compra celebrada com herdeiros dos titulares tabulares – Sujeição do registro ao princípio da continuidade – Desmembramento irregular de lote, a exigir retificação (apuração do remanescente) – Irrelevância dos erros praticados no âmbito do serviço extrajudicial (notarial e registral) – Sentença mantida – Recursos improvidos” (Apelação nº 0005615-39.2015.8.26.0068, Comarca de Barueri, Rel. Des. MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS).
“REGISTRO DE IMÓVEIS. Escritura de compra e venda. Área maior transcrita, com marcos imprecisos e contendo diversos desfalques, perdendo suas características de especialização objetiva. Necessidade de retificação. Apuração de remanescente. Dúvida procedente. Recurso desprovido” (Apelação nº 1000035-06.2018.8.26.0068, da Comarca de Barueri, Rel. Des. GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO).
Na Apelação n. 1086003-10.2015.8.26.0100, o exame da questão foi aprofundado:
“(…) é inviável, em relação ao título alcançado pela desqualificação registral, o controle da disponibilidade quantitativa e qualitativa, assim como resta configurada a ofensa ao princípio registral da especialidade objetiva. Aliás, impõe evitar a disposição de direitos de extensão e conteúdo em aberto descompasso com a descrição tabular; impedir o risco de sobreposições. Caso contrário, far-se-á tábula rasa do princípio da segurança jurídica.
O escrito público contém dados de definição geodésica insuscetíveis de fiscalização em relação ao todo e às parcelas segregadas. A amarração geográfica do imóvel, com sua exata localização dentro da gleba maior, ficou comprometida. Não se pode afirmar que forma uma nova unidade imobiliária, perfeitamente situada no perímetro da área mais extensa. A prévia retificação desta, portanto, com apuração do remanescente, é indispensável.
A propósito, gleba maior, com descrição imperfeita, não tem aptidão para, antes do ajustamento de sua identificação, partejar novas unidades imobiliárias, com áreas menores. Esse é o entendimento consagrado na jurisprudência administrativa da E. CGJ e do C. CSM. Aliás, em parecer do hoje Des. Francisco Eduardo Loureiro, lavrado em 22.9.1996, sublinhou-se:
… Se o todo tem descrição imperfeita, intuitivo que as partes segregadas não podem ter medidas certas. A criação de novas unidades com descrição completa depende de prévio acertamento do registro anterior através de procedimento de retificação de área.
… como é elementar, a disponibilidade não se apur somente de forma quantitativa, mas também, e sobretudo, qualitativa. Não basta saber quanto se destacou e quanto sobrou. Deve ser conhecido onde foi o destaque e onde está o remanescente. Deve ser conhecida qual a figura do destaque e qual a figura do remanescente”.
Convém pontuar, ainda, como bem destacou a I. Procuradora em seu parecer de fls. 86/88, que a parte apelante invocou, em sua defesa, o parágrafo único do artigo 171 da Lei n. 6.015/73, mas ele não se aplica à hipótese, já que se refere a atos relativos a vias férreas (fls. 71/72):
“Art. 171. Os atos relativos a vias férreas serão registrados na circunscrição imobiliária onde se situe o imóvel.
Parágrafo único. A requerimento do interessado, o oficial do cartório do registro de imóveis da circunscrição a que se refere o caput deste artigo abrirá a matrícula da área correspondente, com base em planta, memorial descritivo e certidão atualizada da matrícula ou da transcrição do imóvel, caso exista, podendo a apuração do remanescente ocorrer em momento posterior”.
Finalmente, quanto aos descerramentos passados de matrículas de outros imóveis oriundos da área maior em que também inserido o imóvel objeto do título recusado, insta salientar que, ao que se pode depreender, tais matrículas partiram das descrições lançadas no registro anterior, conforme certificado pelo 1º Oficial de Registro de Imóveis de Santo André (fls.12/18), e foram abertas porque não havia outros desfalques que impedissem os desmembramentos.
Além disso, eventuais erros pretéritos não justificam sua perpetuação, mediante admissão de novo título a registro que claramente viola os principios registrais da especialidade objetiva e da disponibilidade.
Entretanto, não há registro anterior descrevendo especificamente a área destacada pela escritura lavrada em 1962, o que é imprescindível para o regular descerramento de nova matrícula.
Frise-se que a retificação ou eventual cancelamento de matrículas abertas com ofensa a princípios registrários escapam dos estreitos limites do processo de dúvida, que tem por objeto a questão da registrabilidade do título.
Desta forma, para a própria segurança do registro imobiliário e dos efeitos dele irradiados e com a finalidade de se preservar a especialidade registrária, sem retificação prévia da área maior (apuração da descrição do imóvel remanescente da transcrição n. 6.747, com indicação de área e limites atuais), inviável a inscrição de novos títulos na tábua registral, com abertura de matrículas.
Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento ao recurso
FRANCISCO LOUREIRO
Corregedor Geral da Justiça e Relator
(DJe de 24.01.2025 – SP)