CSM|SP: Direito civil – Apelação – Registro de imóveis – Permuta de imóveis – Recolhimento de ITBI – Inexigência de ITCMD, por inexistir negócio gratuito – Apelação provida.

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1016128-54.2023.8.26.0590, da Comarca de São Vicente, em que é apelante MIRIAN MARIA PESSOA CRETELLA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMOVEIS E ANEXOS DA COMARRCA DE SÃO VICENTE.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação para afastar a exigência da comprovação do recolhimento do ITCMD, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 23 de janeiro de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1016128-54.2023.8.26.0590

APELANTE: Mirian Maria Pessoa Cretella

APELADO: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de São Vicente

VOTO Nº 43.684

Direito civil – Apelação – Registro de imóveis – Permuta de imóveis – Recolhimento de ITBI – Inexigência de ITCMD, por inexistir negócio gratuito – Apelação provida.

I. Caso em Exame

1. Apelação interposta contra sentença que manteve a qualificação negativa da escritura pública de permuta de ¾ da nua propriedade do imóvel, devido à falta de comprovação do recolhimento do ITCMD. A apelante argumenta que o ITBI foi devidamente recolhido e que não há variação patrimonial que justifique a cobrança do ITCMD.

II. Questão em Discussão

2. A questão em discussão consiste em determinar se a permuta de imóveis com valores venais distintos, mas sem torna, configura fato gerador do ITCMD.

III. Razões de Decidir

3. A permuta de imóveis com valores venais distintos, mas convencionados de igual valor, sem torna e outra contraprestação, não caracteriza doação, não havendo liberalidade que justifique a incidência do ITCMD.

4. A exigência de ITCMD extrapola a qualificação registral, pois não há previsão legal para tal incidência sem evidência de simulação ou fraude, que não pode ser presumida.

IV. Dispositivo e Tese

5. Recurso provido.

Tese de julgamento: 1. Na permuta de imóveis com valores fiscais diferentes, aos quais foi atribuído valor idêntico pelas partes, sem torna, não caracteriza ato de liberalidade, a afastar a incidência de ITCMD, desde que não haja evidência de simulação ou fraude.

Legislação Citada:

CF/1988, art. 155, I; art. 156, II. CC, art. 538.

Lei Estadual 10.705/2000, art. 2º, II.

Cuida-se de apelação interposta por MIRIAN MARIA PESSOA CRETELLA contra a r.sentença de fls. 224/227, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis de São Vicente, que, em procedimento de dúvida, manteve a qualificação negativa da escritura pública lavrada em 22 de dezembro de 2014, visando o registro da permuta de ¾ da nua propriedade do imóvel da matrícula 160.117 da Serventia, uma vez desatendida a exigência de comprovação do recolhimento do ITCMD.

O recurso visa a reforma da sentença, sustentando que o ato jurídico oneroso representado no título é passível de incidência do ITBI, devidamente recolhido ao cofre público municipal, e não ITCMD. A escritura pública de permuta envolve outros sete imóveis, em diferentes municípios e todas as demais Serventias registraram o título regularmente, sem qualquer objeção, especialmente quanto à questão do recolhimento do ITCMD. No título foi estabelecido o valor do negócio jurídico, certo e determinado, levando em conta diversos fatores, sobretudo subjetivos, coincidente com o valor de aquisição, de modo que não há que se falar em variação patrimonial e caracterização de doação. Ressaltou que os precedentes do Conselho Superior da Magistratura tratam de casos diferentes, nos quais as partes declararam na escritura pública de permuta valores diversos aos bens permutados e silenciaram sobre a torna. No presente caso, os valores atribuídos pelas partes permutantes foram rigorosamente iguais e respeitou o custo de aquisição de cada imóvel para fins de incidência do imposto de renda, de modo que não há variação patrimonial tributável. Deste modo, recolher adicionalmente o ITCMD configuraria flagrante bitributação (fls. 235/246).

A Douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso (fls. 289/290).

É o relatório.

A apelação merece ser provida, afastando-se a exigência de recolhimento do ITCMD para registro do título.

De acordo com os autos, o apelante apresentou ao Oficial de Registro de Imóveis de São Vicente a escritura pública de permuta de ¾ da nua propriedade do imóvel objeto da matrícula 160.117, lavrada em 22 de dezembro de 2014 perante o 1º Tabelião de Notas e Protesto de Letras e Títulos de Bauru, Livro 1355, fls. 289/296 (fls. 30/37).

O título recebeu a prenotação nº 523.235 e a seguinte nota devolutiva:

“Trata-se de escritura pública que visa ao registro da permuta de ¾ da nua propriedade do imóvel da matrícula 160.117, deste Registro de Imóveis.

No entanto, prevalece a exigência contida na Nota de Exigência anterior, que, inclusive já foi objeto de apreciação em sede de Procedimento de Dúvida Registral, que, por sua vez, foi julgada procedente a fim de negar o ingresso do título no fólio real. Abaixo, transcrevo a Nota supra citada:

Examinando a referida escritura, verificou-se que as partes da nua propriedade dos imóveis, apesar de terem sido avaliadas com valores iguais com intuito de equipará-los, possuem, na realidade, valores venais distintos.

Logo, como os referidos valores são diferentes e não houve torna do valor excedente recebido por JOAQUIM GERALDO CRETELLA FILHO, configurou-se aqui um acréscimo patrimonial não oneroso por parte desta.

Assim, deverá ser apresentada a(s) guia(s) e a(s) declaração(s) do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação ITCMD, devidamente recolhido perante a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, relativa à doação operada pela presente permuta, ou a declaração na qual conste a isenção do referido tributo neste caso.”

Idêntica dúvida já havia sido analisada pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis e Anexos de São Vicente, conforme sentença de fls. 45/47. Da sentença foi interposto recurso de apelação a este E. Conselho Superior da Magistratura, mas a dúvida foi julgada prejudicada porque o recurso foi interposto em nome do Advogado e se concluiu pela ausência de interesse jurídico na ação administrativa (acórdão de fls. 49/51).

Logo, o mérito propriamente dito não foi analisado por este C. Conselho Superior da Magistratura.

Em síntese, entendeu o Oficial que incide o ITCMD no presente caso, de acordo com a interpretação do art. 538 do Código Civil e art. 2º, inciso II, da Lei Estadual 10.705/2000, e, neste caso, esclareceu que a parte deveria buscar o afastamento da incidência ou declaração de isenção do ITCMD nas vias ordinárias ou perante o Fisco Paulista.

A despeito da controvérsia que envolve o tema da permuta de imóveis com valores venais distintos e sem torna, os pormenores trazidos pela apelante apontam que não há razão para a exigência de recolhimento de ITCMD para o caso em exame, uma vez já recolhido o ITBI, devendo prevalecer o posicionamento do interessado que se insere no limite da razoabilidade interpretativa, a semelhança do entendimento de outros Oficiais de Registro, que promoveram o registro do mesmo título nas respectivas Serventias (1º RI de Bauru, 2º RI e 15º RI de São Paulo, conforme certidões imobiliárias de fls. 132/188) em relação aos demais imóveis que integraram o negócio jurídico da permuta.

Vejamos.

De acordo com a leitura da escritura pública de permuta (fls. 30/37), inegável que os valores venais dos imóveis integrantes do negócio jurídico são diferentes, mas as partes atribuíram valores e preços idênticos, de modo que não houve torna, ou seja, pagamento de resíduo de uma parte a outra em dinheiro.

A escritura pública de permuta descreve 7 imóveis: 1) Prédio residencial descrito na matrícula nº 21.643 do 1º Oficial de Registro de Imóveis de Bauru, consistente no lote 07 da quadra J do Loteamento Samambaia Parque Residencial, com 396,35 m2 de área construída, com valor venal de R$ 1.326.415,50, ao qual foi atribuído o valor R$ 498.150,65; 2) prédio descrito na matrícula nº 4.377 do 15º Oficial de Registro de Imóveis da Capital, consistente no lote 46 da quadra 64 do Loteamento Jardim Leonor, com valor venal de R$ 1.958.120,00, ao qual foi atribuído o valor de R$ 498.150,65; 3) Apartamento nº 21 no Edifício Icaraí em São Vicente, com 106 metros quadrados, descrito na transcrição 3.376 do Oficial de Registro de Imóveis de São Vicente, com valor venal de R$ 195.439,68; ao qual foi atribuído o valor de R$ 100.000,00; 4) Apartamento no 8º andar do Edifício Rio Araguaia em Perdizes, São Paulo, com 158,688 metros quadrados, descrito na matrícula 53.262 do 2º Registro Imobiliário da Capital, com valor venal de R$ 512.437,00, ao qual foi atribuído o valor de R$ 120.000,00; 5) Prédio Residencial com 164,98 metros quadrados de área construída e seu respectivo terreno identificado como lote 17, quadra M do Loteamento Samambaia Parque Residencial, com área de 840 metros quadrados, descrito na matrícula 27.134 do 1º RI de Bauru, com valor venal de R$ 678.680,50, ao qual foi atribuído o valor de R$ 139.075,32; 6) Prédio e respectivo terreno nesta Capital, descrito na matrícula 4.376 do 15º RI da Capital, com 870 metros quadrados a Rua Enrico de Martino, Jardim Leonor, com valor venal de R$ 1.938.709,00, ao qual foi atribuído o valor de R$ 300.000,00; 7) Apartamento no 7º Andar do Edifício Mondrian, com 94,68 metros quadrados, descrito na matrícula 64.831 do 10º RI da Capital, com valor venal de R$ 432.392,00, ao qual foi atribuído o valor de R$ 198.150,65.

Pelo negócio jurídico da permuta descrito no título, estabeleceu-se a seguinte configuração: 1) À Carlos Eduardo Cretella foi atribuída a totalidade da nua propriedade do imóvel da matrícula 21.643 do 1º RI de Bauru; 2) À Joaquim Geraldo Cretella Filho atribuída a totalidade da nua propriedade do imóvel da matrícula 4.377 do 15º RI da Capital; 3) À Mirian Maria Pessoa Cretella atribuída a totalidade da nua propriedade dos imóveis objeto da transcrição 3.376 do RI de São Vicente, das matrículas nºs 53.262 e 11.766, do 2º RI da Capital e da matrícula 27.134 do 1º RI de Bauru; 4) À Gloria Maria Crettela Lazzari a totalidade da nua propriedade dos imóveis da matrícula 4.376 do 15º RI da Capital e da matrícula 64.831 do 10º RI da Capital.

Para efeitos tributários, as partes igualaram os valores dos bens, atribuindo aos montantes permutados o valor de R$ 498.150,65, declarando expressamente que não houve torna ou reposição de nenhuma espécie. Repita-se: não houve torna ou qualquer contraprestação pecuniária entre os negociantes.

Sendo assim, a permuta de bens não deixa dúvida sobre o caráter oneroso do negócio a atrair a incidência do Imposto sobre Transmissão “Inter Vivos” de bens imóveis ITBI, já recolhido pela parte interessada, segundo os valores apresentados pelos respectivos municípios.

Por outro lado, poder-se-ia sustentar a ocorrência de uma doação disfarçada, a justificar a exigência do ITCMD defendida pelo Oficial, em razão da discrepância entre o valor atribuído aos bens permutados e o seu valor venal, a descaracterizar a onerosidade do contrato e qualificando o negócio como doação, o que configuraria a hipótese de incidência do imposto sobre a Transmissão “causa Mortis” e Doações ITCMD, prevista no art. 2º, II da Lei Estadual 10.705, de 28 de dezembro de 2000.

Segundo a Constituição Federal, é da competência dos estados e do Distrito Federal exigir o ITCMD:

“Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;”

A Constituição diz ainda ser da competência dos municípios a cobrança do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI):

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (…) II – transmissão ‘inter vivos’, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;”

Quanto à definição legal da permuta e da doação de acordo com o que preceitua o artigo 538 do Código Civil, entende-se por doação “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra.”

Portanto, para que se esteja diante de doação, é preciso que haja ato de mera liberalidade, não oneroso.

Na hipótese em exame, ao que tudo indica, o Oficial extrapolou o poder qualificador do título, transformando indevidamente uma permuta sem torna, convencionada de maneira legítima e regular, em doação, o que, à toda evidência, desborda dos limites da qualificação registraria, que deve se limitar estritamente à legalidade na questão tributária, sob pena de se admitir, por interpretação do Registrador, a criação de hipótese de incidência do ITCMD sem a respectiva previsão legal.

Muito embora vigore, para os registradores, ordem de controle rigoroso do recolhimento do imposto por ocasião do registro do título, sob pena de responsabilidade pessoal (art. 289 da Lei n. 6.015/73; art.134, VI, do CTN e art. 30, XI, da Lei 8.935/1994), a questão não é trivial e há várias nuances possíveis no exame do negócio jurídico da permuta em questão.

O primeiro ponto diz respeito à impossibilidade de consideração do valor venal do IPTU como parâmetro exclusivo para controle da igualdade entre os bens permutados. Caso analisado dentro de um mesmo município, poderia se afirmar certa isonomia, na medida em que os valores estabelecidos coadunam com a mesma fórmula aritmética de elementos (potencial construtivo, zoneamento, etc). No entanto, em caso de municípios diferentes, inquestionável que sempre haverá uma discrepância porque os parâmetros utilizados por cada município são distintos.

O segundo ponto está no fato de que o contrato de permuta encerra uma relação jurídica simbiótica, isto é, a vontade de trocar um bem pelo outro, com objetivos subjetivos únicos e diferenciados, inerentes de cada negócio jurídico.

Segundo a doutrina:

“Cuida-se de um contrato bilateral oneroso, pelo qual as partes transferem, reciprocamente, quaisquer objetos diversos do dinheiro de sua propriedade para a outra. Assumem, pois, os permutantes ou tradentes, obrigações recíprocas, com sacrifícios e vantagens comuns, mesmo que, eventualmente, os bens tenham valores diversos (o que, aliás, acontecerá no mais das vezes).” (Código Civil Comentado, Coordenador Ministro Cezar Peluso, 14ª ed., São Paulo: Manole, 2020, p. 573)

No caso, como afirmado pela apelante, o valor de mercado dos imóveis pouco influenciou no encontro de vontade dos permutantes, vez que pesaram outros interesses práticos. Os interessados são irmãos, com laços de parentesco e que desejaram colocar fim ao estado de inconveniência do condomínio em todos os imóveis integrantes da permuta, em diferentes cidades do Estado (Bauru, São Paulo e São Vicente) e com diferentes características, sendo inegável reconhecer as preferências individuais, por diferentes razões, até mesmo de foro íntimo.

Adicionalmente, o negócio jurídico envolveu várias partes e 7 imóveis, o que exige a mensuração do proveito econômico com maior cuidado.

É nesse contexto que, sob o aspecto das relações privadas, o preço dos bens envolvidos em um contrato de permuta pode não ser integrativo do negócio jurídico.

Assim sendo, pode-se concluir que nas permutas em que não há torna, em que os valores atribuídos são idênticos, ainda que com valores fiscais diferentes, não incide o ITCMD, uma vez que não há, em princípio, qualquer negócio jurídico sendo celebrado que não a simples permuta, não ocorrendo qualquer tipo de liberalidade entre as partes e a exigência de ITCMD só está justificada se houver evidências concretas de simulação ou fraude do ato.

No caso, como a permuta foi convencionada tendo por objeto imóveis por valores iguais, sem qualquer reposição pecuniária, não se admitindo a presunção de situação de simulação ou fraude, não há como condicionar a inscrição do título ao recolhimento deste tributo.

Daí o provimento da apelação.

Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO à apelação para afastar a exigência da comprovação do recolhimento do ITCMD.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator 

(DJe de 03.02.2025 – SP)