CSM|SP: Direito Civil – Apelação Cível – Registro de Imóveis – Sociedade em Conta de Participação – Negativa de registro de escritura pública de permuta – Recurso improvido.

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1019483-77.2024.8.26.0577, da Comarca de São José dos Campos, em que é apelante ESDRAS CONSTRUTORA E INCORPORADORA LTDA, é apelado 1º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Negaram provimento à apelação, com observação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), CAMPOS MELLO E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 23 de janeiro de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1019483-77.2024.8.26.0577

APELANTE: E. C. e I. LTDA

APELADO: 1 O. de R. de I. e A. da C. de S. J. dos C.

VOTO Nº 43.678

Direito civil – Apelação cível – Registro de imóveis – Negativa de registro de escritura pública de permuta – Recurso improvido.

I. Caso em Exame

1. Apelação interposta contra sentença que negou o registro de escritura pública de permuta com torna e constituição de alienação fiduciária em garantia. A apelante alega que as quotas de sociedade em conta de participação permutadas são de titularidade do sócio ostensivo e podem ser objeto de negócios jurídicos, pedindo a reforma da sentença para registro da escritura.

II. Questão em Discussão

2. A questão em discussão consiste em determinar se as quotas de uma Sociedade em Conta de Participação, que não possui personalidade jurídica, podem ser consideradas bens para fins de permuta e se a operação tem por escopo a comercialização de unidade autônoma futura sem o registro da incorporação.

III. Razões de Decidir

3. A permuta exige que bens sejam trocados, mas quotas de sociedade sem personalidade jurídica não podem ser consideradas bens individualizados.

4. A permuta de imóvel por participação societária esconde a real intenção de comercializar unidades autônomas sem prévio registro da incorporação imobiliária, em violação e fraude às normas cogentes da L. 4.591/64.

IV. Dispositivo e Tese

5. Recurso desprovido.

Tese de julgamento: 1. Quotas de sociedade sem personalidade jurídica não são bens para fins de permuta. 2. A comercialização de unidades autônomas sem registro de incorporação é vedada.

Legislação Citada:

Código Civil, art. 104, II; art. 991; art. 992; art. 993.

Lei nº 4.591/64, art. 32; art. 65.

Trata-se de apelação interposta por Esdras Construtora e Incorporadora Ltda. contra a r. sentença de fls. 137/140, proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do 1º Registo de Imóveis e Anexos de São José dos Campos, que negou o registro de escritura pública de permuta com torna e constituição de alienação fiduciária em garantia.

Alega a apelante, em síntese, que as quotas permutadas não são de propriedade da Sociedade em Conta de Participação (SCP), que não possui personalidade jurídica, e sim do sócio ostensivo, que ostenta a titularidade  dos direitos e obrigações decorrentes da sociedade, de modo que as quotas representam direitos que podem ser objeto de negócios jurídicos. Sustenta que o uso de quotas como forma de pagamento é prática comum no mercado e deve ser admitido como válido. Afirma que o princípio da autonomia permite que as quotas de participação do sócio da Sociedade em Conta de Participação sejam tratadas como ativos com valor econômico, podendo, portanto, ser objeto de permuta. Diz, ainda, que a primeira nota devolutiva não abordou questão relativa à inviabilidade da permuta envolvendo as quotas. Pede, ao final, a concessão de tutela de urgência e de efeito suspensivo à sentença, bem como a sua reforma para que seja determinado o registro da escritura pública (fls. 159/182).

O pedido de tutela de urgência e o efeito suspensivo requeridos foram negados (fls. 198/199).

A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 205/206).

É o relatório.

De início, cabe frisar que o apresentante de um título não tem direito adquirido à inscrição caso cumpra as exigências constantes na nota devolutiva.

Embora idealmente o registrador deva formular eventuais exigências de uma só vez[1], em nota devolutiva única, é evidente que lhe cabe, ao constatar irregularidade no título não vislumbrada no primeiro exame, indicá-la em uma segunda nota devolutiva, e não simplesmente ignorar a falha percebida.

Por esse motivo, pouco importa se na primeira nota devolutiva exigiu-se tão-somente o reconhecimento de firma das testemunhas do instrumento (fls. 107/108); constatada irregularidade em momento posterior era dever da Oficial indicá-la (fls. 102/104).

A escritura pública de permuta apresentada a registro tem como partes, de um lado, E. Carone Empreendimentos Imobiliários Ltda., e de outro, Esdras Construtora e Incorporadora Ltda. (fls. 40/51). De acordo com o instrumento, E. Carone Empreendimentos Imobiliários Ltda. entregará a Esdras Construtora e Incorporadora Ltda. imóvel de sua propriedade, matriculado sob nº 85.520 no 1º Registro de Imóveis de São José dos Campos, avaliado em R$ 38.525.000,00, e recebeu desta última trinta e quatro quotas de uma Sociedade em Conta de Participação, avaliadas em R$ 20.000.000,00, e o valor de R$ 18.525.000,00 a ser pago nas condições descritas na escritura (fls. 40/51).

A desqualificação, mantida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente, se deve ao fato de o objeto da permuta envolver quotas de sociedade que não possui personalidade jurídica. Segundo a Oficial e o MM. Juiz Corregedor Permanente, o negócio jurídico infringe o art. 104, II, do Código Civil[2], por dois motivos distintos: em primeiro, porque sociedade em conta de participação não possui nem capital social nem autonomia patrimonial, de forma que o objeto da avença não pode ser tido como possível; em segundo, porque há indícios de que cada uma das trinta e quatro quotas da sociedade em conta de participação corresponde a uma unidade futura de empreendimento imobiliário, de forma que a negociação delas estaria ocorrendo sem o registro da incorporação imobiliária. O objeto da avença seria ilícito, portanto.

E a dúvida realmente é procedente.

De acordo com Nelson Rosenvald, “denomina-se permuta, troca escambo, barganha ou permutação a relação transacional pela qual uma das partes se obriga a entregar um bem para receber outro, que será entregue pela contraparte” (Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência : Lei n. 10.406 de 10.01.2002 / coordenador Cezar Peluso. – 11. Ed. Rev. E atual. – Barueri, SP : Manole, 2017, p. 554).

Embora a torna em dinheiro não a descaracterize, a permuta exige que bens sejam trocados. Isso, no entanto, não ocorre no caso em análise, em que um bem imóvel é trocado por quotas de sociedade em conta de participação. Com efeito, quotas de sociedade sem personalidade jurídica, cuja constituição independe de qualquer formalidade (art. 992 do Código Civil), não podem ser considerados bens singulares e passíveis de individualização.. Como o objeto social de uma sociedade em conta de participação é exercido unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome e sob sua responsabilidade (art. 991 do Código Civil), não há como conceber que parte do capital social dessa sociedade não personificada, cujo contrato social produz efeito apenas entre os sócios (art. 993 do Código Civil), possa ser considerada bem identificado ou identificável para fins de permuta.

Sobre a sociedade em conta de participação, ensina Marcelo Fortes Barbosa Filho:

Celebrado o contrato de sociedade e adotada a fórmula típica prevista para a conta de participação, não se produz qualquer exteriorização, pois, em se tratando de um sociedade despersonificada, uma sociedade-contrato, que efetiva todo relacionamento com terceiros é o sócio ostensivo (…). As relações internas, dada sua natureza contratual, restam regradas pelas cláusulas acordadas, limitando-se os efeitos do negócio celebrado às partes, ou seja, aos sócios. Os terceiros se mantêm alheios à conta de participação, não podendo extrair dela eficácia” (Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: Lei n. 10.406 de 10.01.2002 / coordenador Cezar Peluso. – 11. Ed. Rev. E atual. – Barueri, SP : Manole, 2017, p. 954/955).

Essa falta de exteriorização dos atos societários, com terceiros alheios à conta de participação, mostra que as quotas sociais indicadas na escritura não se caracterizam como objeto individualizado possível, determinado ou determinável para um contrato de permuta.

O segundo óbice, relacionado aos indícios de que as quotas da sociedade em conta de participação correspondem a unidades futuras de empreendimento imobiliário, também se sustenta.

Na suscitação da dúvida inversa, a ora apelante destacou:

“Considerando as práticas de mercado relativas ao negócio jurídico firmado, as quotas societárias são definidas como participações do patrimônio especial da SCP, para fins, posteriores, de liquidação da sociedade e distribuição dos lucros e resultados, convertendo-se cada quota em uma unidade imobiliária ao final do empreendimento, a qual fará jus o sócio participante que a possuir, desde que esteja regular com os aportes” (fls. 12).

E o próprio instrumento público levado a registro, em que as quotas de Sociedade em Conta de Participação são indicadas em numeração não sequencial (“quotas de nºs 211, 212, 215, 216, 217, 218, 221, 222, 223, 224, 227, 228, 230, 234, 236, 240, 242, 246, 248, 252, 254, 258, 380, 416, 417, 418, 419, 420, 421, 422, 427, 428, 429 e 430” – fls. 41), levam à conclusão de que a permuta de imóvel por participação societária esconde a real intenção dos contratantes, que é a comercialização de unidades autônomas de empreendimento imobiliário futuro.

Antes do registro da incorporação, porém, a vedação a esse tipo de comercialização é conhecida. Nesse sentido o art. 32 da Lei nº 4.591/64:

Art. 32. O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: (…) Aliás, a Lei nº 4.591/64 protege os adquirentes de futuras unidades autônomas a tal ponto, que a comercialização delas sem o prévio registro da incorporação é considerada crime contra a economia popular:

Art. 65. É crime contra a economia popular promover incorporação, fazendo, em proposta, contratos, prospectos ou comunicação ao público ou aos interessados, afirmação falsa sôbre a construção do condomínio, alienação das frações ideais do terreno ou sôbre a construção das edificações.

PENA – reclusão de um a quatro anos e multa de cinco a cinqüenta vêzes o maior salário-mínimo legal vigente no País.

§ 1º lncorrem na mesma pena:

I – o incorporador, o corretor e o construtor, individuais bem como os diretores ou gerentes de emprêsa coletiva incorporadora, corretora ou construtora que, em proposta, contrato, publicidade, prospecto, relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou aos condôminos, candidatos ou subscritores de unidades, fizerem afirmação falsa sôbre a constituição do condomínio, alienação das frações ideais ou sôbre a construção das edificações;

II – o incorporador, o corretor e o construtor individuais, bem como os diretores ou gerentes de emprêsa coletiva, incorporadora, corretora ou construtora que usar, ainda que a título de empréstimo, em proveito próprio ou de terceiros, bens ou haveres destinados a incorporação contratada por administração, sem prévia autorização dos interessados.

Percebe-se, desse modo, que o registro da escritura de permuta daria ensejo à alienação de quotas que correspondem a futuras unidades autônomas, sem que a apelante, incorporadora, tenha registrado a incorporação imobiliária.

Caso acolhido o registro, nada impediria que o credor da entrega das unidades futuras passasse a cede-los a terceiros, em verdadeiro negócio indireto em fraude às normas cogentes da L. 4.591/64.

A alegação de que o registro pretendido caracteriza modelo de negócio diverso não convence. Com efeito, a Lei nº 4.591/64 em momento algum dispensa a inscrição da incorporação imobiliária na hipótese de o incorporador pretender alienar futuras unidades autônomas. Não há previsão no sentido de que a operação relativa à venda de futuras unidades autônomas possa ser realizada por meio de negociação de quotas de sociedade que sequer possui personalidade jurídica. E o fato de isso ocorrer na prática, como é alegado na suscitação da dúvida e no recurso, não é motivo para que se permita que a irregularidade constatada seja objeto de inscrição no registro imobiliário.

Finalmente, considerando o pleito formulado pelo Ministério Público a fls. 103 e seu indeferimento na sentença (fls. 138/139), remetam-se cópias das principais peças do processo ao Ministério Público, para apuração de eventual cometimento de crime, e à Secretaria de Assuntos Jurídicos da Prefeitura Municipal de São José dos Campos.

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação, com observação.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Nesse sentido, o item 38 do Capítulo XX das NSCGJ: “É dever do Registrador proceder ao exame exaustivo do título apresentado. Havendo exigências de qualquer ordem, deverão ser formuladas de uma só vez, por escrito, de forma clara e objetiva, em formato eletrônico ou papel timbrado do cartório, com identificação e assinatura do preposto responsável, para qu satisfazê-las ou requerer a suscitação de dúvida ou procedimento administrativo”.

[2] Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I – agente capaz;

II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III – forma prescrita ou não defesa em lei. (Acervo INR – DJe de 03.02.2025 – SP)