CSM|SP: Registro de Imóveis – Escritura pública de divórcio e partilha – Excesso de meação afastado in concreto – Patrimônio considerado em sua totalidade – Precedentes desta E. Corte na jurisdição contenciosa – Cessão patrimonial onerosa não configurada – Vedação de tributação com efeito de confisco – Princípio da legalidade temperada – Afastamento da incidência da legislação municipal – Dúvida julgada improcedente – Recurso provido.

ACÓRDÃO  

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1134789-70.2024.8.26.0100, da Comarca de São Paulo, em que é apelante CONSUELO ITALA PONTIROLLI LUZZATI SANDRI, é apelado 4º OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS DA CAPITAL.

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação e julgaram improcedente a dúvida, com determinação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

São Paulo, 4 de fevereiro de 2025.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

APELAÇÃO CÍVEL nº 1134789-70.2024.8.26.0100

APELANTE: Consuelo Itala Pontirolli Luzzati Sandri APELADO: 4º Oficial de Registro de Imóveis da Capital

VOTO Nº 43.661

Registro de Imóveis – Escritura pública de divórcio e partilha – Excesso de meação afastado in concreto – Patrimônio considerado em sua totalidade – Precedentes desta E. Corte na jurisdição contenciosa – Cessão patrimonial onerosa não configurada – Vedação de tributação com efeito de confisco – Princípio da legalidade temperada – Afastamento da incidência da legislação municipal – Dúvida julgada improcedente – Recurso provido.

Trata-se de apelação interposta por Consuelo Itala Pontirolli Luzzati Sandri, contra a r. sentença de fls. 102/106, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do 4º Registro de Imóveis da Capital, que, mantendo a exigência apresentada pelo Oficial, negou o registro na matrícula nº 182.605 daquela Serventia de escritura pública de divórcio com partilha de bens.

A apelante sustenta, em síntese, que a partilha convencionada entre os ex-cônjuges foi igualitária quando considerada a totalidade do patrimônio conjugal. Alega que o imóvel em questão não constitui parcela excedente da meação, estando apenas compreendido na metade que lhe coube, não havendo, portanto, incidência de ITBI. Ao final, requer seja afastada a exigibilidade de recolhimento do ITBI para o registro do título (fls. 122/130).

A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 162/165).

É o relatório.

O dissenso versa sobre a registrabilidade de escritura pública de divórcio com partilha de bens na matrícula nº 182.605 do 4º RI desta Capital, condicionada, pelo Oficial, à comprovação do recolhimento do ITBI, diante do excesso de meação por ele apontado, referente ao patrimônio imobiliário, caracterizado em favor da apelante (fls. 1/4 e 122/130).

O registrador, ao suscitar a dúvida, invocou o inciso VI do art. 2º da Lei Municipal nº 11.154/1991, de acordo com o qual estão compreendidos na incidência do imposto “o valor dos imóveis que, na divisão de patrimônio comum ou na partilha, forem atribuídos a um dos cônjuges separados ou divorciados …, acima da respectiva meação ou quinhão, considerando, em conjunto, apenas os bens imóveis constantes do patrimônio comum …” (fls. 2).

O ITBI, tributo de competência municipal, previsto no art. 156, II, da CF, possui como hipóteses de incidência a transmissão onerosa inter vivos de imóveis ou de direitos reais sobre imóveis e a cessão onerosa de direitos a sua aquisição. Agora, se efetivada a título gratuito, a transferência pode dar ensejo à incidência do ITCMD, imposto referido no art. 155, I, da CF, cuja instituição cabe aos Estados e ao Distrito Federal.

A jurisprudência administrativa deste E. Tribunal, expressa em precedentes deste C. Conselho Superior da Magistratura, constatado o excesso de meação, apurado em conformidade com a legislação municipal (por conseguinte, à luz da partilha desigual do patrimônio imobiliário), admite a exigência correspondente à comprovação do recolhimento do ITBI, se ocorrente compensação patrimonial, traço da onerosidade da operação econômica, e a pertinente demonstração do recolhimento do ITCMD, se ausente reposição, logo, se desnudada a atribuição patrimonial sem prestação correspectiva[1].

Dizendo em termos mais simples, se o excesso de meação ocorreu mediante pagamento de torna, o negócio é oneroso e incide o ITBI. Ao contrário, se o excesso de meação ocorreu sem qualquer contraprestação, vale dizer, a título gratuito, incide o ITCMD.

Sobre o tema, o E. Supremo Tribunal Federal, há mais de seis décadas, ainda antes da Lei do Divórcio, aprovada em 1977, editou a Súmula 116, admitindo o imposto de reposição, in verbis: “em desquite ou inventário, é legítima a cobrança do imposto de reposição, quando houver desigualdade nos valores partilhados.

In casu, enquanto casados sob o regime da comunhão parcial de bens (fls. 21), a recorrente e Victor Garcia Sandri adquiriram o imóvel descrito na matrícula nº 182.605 do 4º RI desta Capital (fls. 77/81), que passou a compor o patrimônio coletivo do casal, patrimônio de mão comum. A esse respeito, assinala Orlando Gomes:

Em relação ao patrimônio comum, a posição jurídica dos cônjuges é peculiar. Não são proprietários das coisas individualizadas que o integram, mas do conjunto desses bens. Não se trata de condomínio propriamente dito, porquanto nenhum dos cônjuges pode dispor de sua parte nem exigir a divisão dos bens comuns. Tais bens são objeto de propriedade coletiva, a propriedade de mão comum dos alemães, cujos titulares são ambos os cônjuges[2]“.

Por ocasião da partilha do patrimônio amealhado durante o matrimônio (quando da especificação da porção do patrimônio comum composta pela meação de cada um dos cônjuges), os bens imóveis do casal foram avaliados em R$ 13.448.739,92, cabendo à ora recorrente, com exclusividade, o imóvel matriculado sob nº 182.605, avaliado em R$ 13.158.938,00 (fls. 19). Mesmo assim, de acordo com a escritura pública (fls. 20/39), considerando os vários outros bens partilhados, a divisão de patrimônio foi igualitária (fls. 36/37).

No entanto, na aferição do patrimônio coletivo, da massa de bens pertencente coletivamente ao casal, dessa universalidade de direito, marcada pela unidade, “complexo de relações jurídicas … dotadas de valor econômico” (cf. art. 91 do CC), conjunto de direitos e obrigações, de situações jurídicas subjetivas patrimoniais ativas e passivas suscetíveis de avaliação pecuniária[3], e, consequentemente, no momento da partilha, na apreciação do excesso de meação, é de rigor considerar a totalidade dos bens, todos os elementos integrantes desse patrimônio, e, assim, além dos bens imóveis, também, os móveis e o passivo, as obrigações e as dívidas pendentes de liquidação.

Nessa senda, em controvérsias envolvendo excesso de meação e cobrança de ITBI (conforme o caso, ITCMD), posicionou-se este Tribunal, em precedentes de suas C. Câmaras de Direito Público, que também devem ser levadas em conta as obrigações do casal (Remessa Necessária Cível nº 1012763-39.2020.8.26.0576, rel. Des. Mônica Serrano, j. 10.2.2021, na Apelação/Remessa Necessária nº 1038844-42.2020.8.26.0053, rel. Des. Raul De Felice, j. 29.11.2021, na Apelação Cível nº 1071093-12.2021.8.26.0053, rel. Des. Silva Russo, j. 12.1.2023, na Remessa Necessária nº 1058944-81.2021.8.26.0053, rel. Des. Marcelo Theodósio, j. 8.2.2023, na Apelação/Remessa Necessária nº 1026398-02.2023.8.26.0053, rel. Des. Silva Russo, j. 18.9.2023, na Apelação/Remessa Necessária nº 1001526-73.2022.8.26.0176, rel. Des. Ricardo Chimenti, j. 1º.11.2023, na Apelação/Remessa Necessária nº 1074978-63.2023.8.26.0053, rel. Des. Tania Mara Ahualli, j. 16.4.2024, na Apelação Cível nº 1070881-20.2023.8.26.0053, rel. Des. João Alberto Pezarini, j. 3.7.2024, e na Apelação nº 1010120-86.2024.8.26.0053, rel. Des. Ricardo Chimenti, j. 26.7.2024.

Esse, aliás, já foi o entendimento deste C. Conselho Superior da Magistratura, na Apelação nº 1060800-12.2016.8.26.0100, rel. Des. Pereira Calças, j. 6.6.2017, precedente no qual, em atenção à partilha definida em inventário, abrangendo imóveis, valores em dinheiro e quotas sociais, cabendo então aqueles exclusivamente a um dos herdeiros, restou afastada a compreensão fragmentada de patrimônio e, daí, a incidência do art. 2.º, VI, da Lei n.º 11.154/1991, foi excluída, de forma a dispensar a comprovação de recolhimento de ITBI, pois não reconhecida a transmissão onerosa inter vivos de bens imóveis.

Sob essa perspectiva, a exigência impugnada deve ser afastada. O excesso de meação reconhecido pelo Oficial, baseado na legislação municipal, escora-se em uma intelecção fraturada, em visão seccionada da noção de patrimônio. Ao concretizar, via lei ordinária, a hipótese de incidência constitucionalmente eleita, em particular, ao cuidar da tributação do excesso de meação, atendo-se somente à partilha dos imóveis, o ente tributante não observou, em sua exatidão, o princípio da capacidade econômica[4], abrindo espaço para sua vulneração em situações concretas, aqui sucedida.

Nota-se que o excesso de meação apontado pelo registrador decorre da compreensão equivocada de patrimônio constante na Lei Municipal. Se, por outro lado, o patrimônio for entendido como uma universalidade de direito envolvendo todas as relações de natureza econômica do casal, a leitura da escritura mostra que a partilha foi igualitária (fls. 36/37).

Dentro desse contexto, a exemplo do que foi decidido por este C. Conselho Superior da Magistratura no julgamento da apelação nº 1053923-75.2024.8.26.0100, j. em 19.9.2024, de minha relatoria, justifica-se afastar a aplicação da legislação municipal, nada obstante pontualmente, reconhecendo a impertinência da exigência impugnada, solução amparada no princípio constitucional da capacidade econômica e na proibição do confisco e, de mais a mais, em uma interpretação sistemática da ordem jurídica, voltada a resguardar sua unidade, integridade, coerência e racionalidade, e a realizar os valores e fins constitucionais. A legalidade, pondera Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, comporta mitigação em sua rudeza; ao se aplicar a lei, aduz, “não se pode deixar de considerar as circunstâncias da questão em foco. Muitas vezes, por estatuir de forma genérica, a lei prescinde de aspectos especiais, que se verificam por ocasião da sua atualização na hipótese, e na qual a aplicação da norma no seu exato rigor a tornaria injusta, e, então, ponderando-se sobre essa situação excepcional, cumpre amenizá- la[5]“.

Aliás, a legalidade, assinala Juarez Freitas, “evoluiu do legalismo primitivo e hipertrofiado para a posição – por assim dizer – balanceada e substancialista (superado, ao menos em teoria, o automatismo imoderado no cumprimento das regras)[6]“. Sob essa lógica, prossegue, “não prosperam as orientações preconizadoras … de obediência irracional do agente público à lei ou – o que seria pior – à voluntas legislatoris. É que não se confundem … o texto da lei com a juridicidade normativa[7]“. Trata-se da legalidade temperada.

Adiante, em raciocínio a prestigiar os fundamentos deste voto, acentua: “deve haver respeito à legalidade, sim, mas encartada no plexo de ponderações que a qualifiquem como sistematicamente justificável (interna e externamente). … A legalidade temperada requer a observância cumulativa de princípios em sintonia com a teleologia constitucional, para além do textualismo estrito[8]“. Assim, conclui: “o princípio da constitucionalidade representa o coroamento do processo evolutivo da legalidade, fazendo com que o controle sistemático acolha o imperativo de evoluir da legalidade para a constitucionalidade, num processo circular, que transcenda reducionismos simplistas[9]“.

Sob esse ângulo, substancialista, enfoque orientador da motivação articulada, o princípio da legalidade não está a obstar, mas sim a determinar a inscrição da escritura pública. A propósito, não se realiza na aplicação mecânica, automática e irrefletida da letra fria da lei, expressa em regra isoladamente considerada. Ao contrário, a conformidade por ele exigida, acentuam, com propriedade, Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, é com o Direito, a ordem jurídica encarada em sua totalidade, não com um pedaço seu, uma tira sua, com uma norma extraída de texto específico[10].

Calha pontuar, de toda forma, que não se declara, aqui, seara inadequada, a inconstitucionalidade de dispositivos legais, em especial, dos que amparam a exigência ora afastada. Aliás, os precedentes administrativos deste C. Conselho Superior da Magistratura desautorizam declaração em tal sentido[11]. In casu, portanto, apenas se está a admitir a inscrição da escritura, dispensando a comprovação do recolhimento do ITBI. A partir de uma interpretação conforme, afasta-se a incidência de norma válida, pois não incidente sobre determinada situação de fato.

Incorpora-se, nesse sentido, orientação jurisdicional prevalecente desta E. Corte, expressa nos precedentes acima listados, de maneira a roborar a segurança jurídica e a função instrumental dos serviços de registro.

Em conformidade com a solução dada na Apelação Cível n.º 0000424-82.2011.8.26.0543, rel. Des. Renato Nalini, j. 7.2.2013, ao invés de sujeitar a recorrente a um processo contencioso, comprometendo a regularização de seu direito real, a publicidade de seu direito, a estabilidade das relações jurídicas e a confiabilidade do sistema registral, transfere-se o ônus ao Município, a quem caberá, então na via judicial, afirmar a constitucionalidade da legislação municipal, demonstrando que houve efetiva partilha desigual.

Diante do exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação e, assim, afastando a exigência impugnada, julgo improcedente a dúvida, determinando o registro da escritura pública de fls. 20/39. Sem prejuízo, dê-se ciência ao Município de São Paulo.

FRANCISCO LOUREIRO

Corregedor Geral da Justiça e Relator

Notas:

[1] Cf., v.g., Apelação Cível n.º 1112232-31.2020.8.26.0100, rel. Des. Ricardo Anafe, j. 16.6.2021, Apelação Cível n.º 1052995-32.2021.8.26.0100, rel. Des. Ricardo Anafe, j. 3.11.2021, Apelação Cível n.º 1128936-51.2022.8.26.0100, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 24.4.2023, Apelação Cível n.º 0000183-50.2020.8.26.0137, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 18.5.2023, Apelação Cível n.º 1001724-73.2021.8.26.0038, rel. Des. Fernando Antonio Torres Garcia, j. 17.11.2023, Apelação Cível n.º 1130468-26.2023.8.26.0100, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 16.2.2024, e Apelação Cível n.º 1176233-20.2023.8.26.0100, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 25.4.2024.

[2] Direito de Família. Atualizada por Humberto Theodoro Júnior. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 196

[3] Francisco Amaral, ao cuidar das coisas coletivas, dividindo-as em universalidades de fato e universalidades de direito, enquadrando nestas os bens conjugais, destaca seu caráter unitário, a união ideal que as particulariza, “formando uma entidade complexa que transcende as coisas componentes, com uma única denominação e um só regime jurídico, embora mantendo a individualidade prática e jurídica dos seus elementos” (Direito Civil: introdução. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 327-328)

[4] Conforme justa advertência de Misabel Abreu Machado Derzi, “… a capacidade econômica objetiva não se esgota na escolha da hipótese de incidência, já constitucionalmente posta, na quase totalidade dos impostos. É necessária a realização de uma concreção paulatina, que somente se aperfeiçoa com o advento da lei ordinária da pessoa jurídica competente. … E será, no quadro comparativo entre a Constituição e as leis inferiores (complementares e ordinárias), que a questão da capacidade econômica objetiva ganhará importância” (Limitações constitucionais ao poder de tributar. In: Tratado de Direito Constitucional. Ives Gandra da Silva Martins, Gilmar Ferreira Mendes, Carlos Valder do Nascimento (coords.). 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 264. v.2)

[5] Princípios gerais de Direito Administrativo: introdução. 3.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 423.

[6] O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 5.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 59.

[7] Ibid.

[8] Ibid., p. 61.

[9] Ibid., p. 63.

[10] Processo administrativo. 3.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 115-116.

[11] Apelação Cível n.º 43.694-0/0, julgada em 06.02.1998, relator Desembargador Sérgio Augusto Nigro Conceição; Apelação Cível n.º 85-6/9, julgada em 23.10.2003, relator Desembargador Luiz Tâmbara.

(DJe de 13.02.2025 – SP)